Por Hugo Albuquerque
Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir a outros, igualmente medirão a vós.
Mateus 7:2
Atena (apontando para Orestes.)
Ele foi absolvido de um crime de morte!
Os votos dividiram-se em somas iguais.
A crise política da Nova República já se fazia sentir no início da década. Tudo é para sempre, até que não é mais como diria Andrei Yurchak. Digamos, a Nova República foi vítima de seu próprio sucesso, gerar uma sociedade brasileira mais livre e menos desigual, somada ao seu maior defeito: a enorme dificuldade de se autorreformar e não sucumbir aos seus próprios vícios.
Pouco a pouco, o Judiciário tomou o protagonismo que antes cabia ao Legislativo e ao Executivo. O elemento togado surge quase como um deus ex-machina: Ele, do nada, surge como uma voz que altera o rumo das coisas: de repente, toda a justa insatisfação popular com nossos velhos problemas, a lentidão ou ausência de transformações estruturais, embora depois de uma década próspera, e a falta de espaço político seriam resolvidas por um Judiciário ativista, não por mais democracia.
No momento em que o julgamento se torna a instância máxima, a política se vai. O julgamento, ao substituir a ação política, ao mesmo tempo gera uma falácia, uma vez que um não pode substituir o outro, e uma encenação, uma vez que o problema alegado é o sistema, não são julgamentos, que apenas punirão aqueles que não se adéquam a esse sistema, que irão mudar nada.
Deixamos de realizar uma reforma política para numa ação salvacionista punir os maus. Mas quem são os maus? Para além do seletivismo do Mensalão ou da Lava Jato, nos quais para além de qualquer colateralidade os petistas foram julgados abaixo da Lei enquanto políticos de outros partidos, sobretudo à direita, acima, ou pelo menos tiveram seus direitos e garantias respeitadas.
Da hipertrofia e onipresença dos tribunais, e dos tribunais confundidos com aparatos policiais e acusadores, como no caso da Lava Jato, chegamos ao esgotamento institucional que conduz de um lado à candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro e da comoção pública que alimenta a candidatura petista de Fernando Haddad, o qual sucede um Lula preso antes de uma sentença definitiva e impedido de concorrer.
Bolsonaro é um assombro: é a abolição explícita dos direitos, de qualquer direito, seja social, seja das liberdades individuais mais comezinhas, inclusive as de cunho comportamental. Em que se pese a crise da Nova República, os erros que se elenque do governo Dilma, inegável dizer que o judicialismo que tomou conta do Brasil tem muito a ver com isso.
Há, contudo, raízes mais profundas e graves nisso. O nascimento da filosofia entre os gregos buscava, antes de qualquer coisa, confrontar o poder: a busca pela razão se reportava a problemas políticos concretos, sendo que o argumento racional era uma forma de combater a doxa – a opinião, a glória e a aclamação: no fim, um combate ao argumento arbitrário, desconectado do melhor da experiência humano e com seus próprios pressupostos.
O argumento do sofista, o discurso meramente retórico não era só uma fraqueza do espírito, mas algo fadado a servir ao poder. O primeiro alvo da filosofia é o argumento de autoridade. O argumento sem fundamento, validado apenas por quem o proferiu. O giro copernicano que a personagem de Sócrates promoveu foi, vejamos nós, a exigência de argumentos que sejam válidos por sua própria força, não pela força de quem o disse.
O Brasil contemporâneo é, contudo, o oposto disso: imerso no globalismo sem se descolonizar, vivemos o absurdo dos dois pólos, desde o mais arcaico ao mais moderno. Não é de se espantar, portanto, que o julgamento tenha tomado o lugar da ação política e a opinião solapado o posto da razão – e que os usos desses dois retrocessos mire a conservação da nossa ordem colonial, desigual, opressiva de corpos, povos e naturezas.
De um lado a vulgata kantista, de uma espécie de (pseudo) ética liberal fundada na tolerância para com os intolerantes, exatamente como José Guilherme Pereira Leite, lembrando o insuspeito Popper o fez neste espaço. Essa loucura se funda na ausência de fundamento da ditadura da mera opinião: da república de especialistas à pseudo-democracia de opinião na qual todos falam sobre tudo, o tempo todo, nas redes sociais. Do outro lado, dentro da mesma vulgata, o julgamento como apoteose da vida, seja na arte ou no direito – da crítica da incessante e vazia das redes sociais, nos seus compartimentos identitários, à eleição do Judiciário como elemento onipresente, temos o mesmo fenômeno.
Nesse sentido, não é de se espantar que o nascimento da luta pela razão no Ocidente, inclusive na e até contra a democracia, passe pelo confronto ao juízo como instância: da condenação do filósofo Sócrates na Grécia antiga à paixão de Cristo, passando por uma modernidade que não contente em não abolir o juízo, lhe entifica na forma de órgão de Estado.
Ou como Ésquilo, um dos pais fundadores do Teatro, nas Eumênides, a derradeira parte da trilogia Oresteia, o ensinamento que resta é de que é melhor a pior justiça do que a melhor vingança – e é justamente esse o sentido do voto de Minerva (Atena), que presidindo um júri composto dos cidadãos atenienses, prefere liberar um matricida diante do empate nos votos. É como se décadas antes, Ésquilo pudesse, na arte, ter profetizado a tragédia de Sócrates.
O próprio ensinamento bíblico, no qual, diferentemente de um juízo pós-moderno de tolerância, ou da lei universal kantiana – inócua, na medida em que jamais foi capaz de antever a possibilidade de masoquismo das sociedades humanas, por conta da qual se pode muito bem desejar o próprio mal e fazer isso com os outros: no Evangelho de Mateus não há uma lição em abstrato de que o uso de dois pesos e duas medidas seja imoral, mas que a conseqüência disso é, justamente, a catástrofe pelo precedente gerado.
Caímos, pois, na nossa pós-modernidade brasileira. Na qual um sofisticado dispositivo tolera intolerantes, uma vez que a sagrada opinião não pode ser violada, uma vez que a mera opinião, desavisada e sem fundamento, é o sustentáculo do estado de coisa em que vivemos e, do outro lado, diante do caos instalado por uma ordem pouco racional, o julgamento surge como elemento de organização.
No entanto, o julgamento levado ao seu extremo resulta na desconexão máxima: da vida, dos conceitos e das experiências, sendo a máxima expressão dessa opinião: a legitimidade da condenação do juiz – de Moro ao Senado na condução do Impeachment – reside na simples formalidade de ser proferida.
A única racionalidade possível e acusada nos dois casos, da prisão de Lula ao Impeachment de Dilma foi a absoluta legitimidade daqueles órgãos que os julgaram: mas tudo cai por terra, na medida em que decisões, igualmente legais e formais, passaram a beneficiar Lula, desde a decisão, em sede Habeas Corpus, para libertá-lo ou a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU, determinando que ele fosse candidato.
Ambas as decisões eram válidas, mas foram descumpridas, o que acusa a inexistência de qualquer razão ou, digamos, a única razão suscitada em toda essa história: a de formal de competência do órgão julgador. O que há é uma doxa de que Lula deve, não importa como ou porque, continuar preso e não disputa a corrida eleitoral que ele liderava.
Há tanto fundamento quanto no fato de Alexandre Frota ter se tornado, literalmente, um ator político nacional: depois de longa e pública carreira como ator pornô, se candidata hoje sob a égide da moral e dos bons costumes sem ter renegado o passado. E a aparente contradição em termos disso não é, nada mais, nada menos do que a afirmação do princípio máximo dos fascistas de Salò de Pasolini: o fascista, por excelência, é o amoral moralista, aquele que pode condenar os outros por aquilo que ele faz pública e impunemente.
O fascismo surge como negação máxima do cristianismo, não por ser uma afirmação do imanentismo panteísta e pagão como esteticamente se dizia, mas pela afirmação da Lei como instrumento a ser manuseado, seletivamente, a favor do seu grupo e contra os outros. Isso, curiosamente, foi e é gestado no ventre da modernidade política, sobretudo liberal.
Neste cenário de terra arrasada, com Lula preso e impedido de concorrer e Bolsonaro ocupando, ainda, a liderança pela falência da centro-direita “normal”, o que resta é uma situação de xeque-mate para os setores triunfantes do processo de destituição, ilegal, de Dilma Rousseff: terão poucos dias para ressuscitar seus candidatos, Geraldo Alckmin ou Marina, ou terão de dar um cheque em branco para o extremismo de Bolsonaro ou recusá-lo e tolerar um segundo turno entre dois candidatos que recusaram o atual processo destituinte: Haddad e Ciro, ambos ex-ministros de Lula.
Fernando Haddad que, por sinal, está em franca ascensão, movido pela procuração de Lula e do pacto deste com a plebe de onde se origina: Haddad está sob as bênçãos do povo, mas ao mesmo tempo sujeito a fazer recompensar esse apoio, caso eleito, já tendo o precedente da débâcle do segundo governo de Dilma como exemplo, ou mesmo sua passagem pela prefeitura de São Paulo; a seu favor, sua passagem excepcional pelo Ministério da Educação no governo de Lula. É a força do Lula Liberto! ao qual fez referência Jean Tible.
Ciro Gomes, progressista, insiste em um processo de reconstrução nacional, mas certamente dependerá de uma articulação de fatores e atores maior, caso consiga reverter a terceira colocação, sobretudo se o sistema renegar seu próprio suicídio, desinflando a bolha Bolsonaro; vá ele ou Haddad para o segundo turno, ambos dependerão um do outro, no mínimo durante as eleições.
A certeza é que o cenário atual a polarização política do Brasil pós-juízo final se desenha: ou o aprofundamento da via conservadora, transcendendo os limites da humanidade, ou a reversão do que está posto sob a égide da democracia social. Não há meio termo possível, nem para se vencer, nem para se evitar o desgoverno. E a exacerbação do juízo como mecanismo universal gerou o efeito inverso, qual seja, a ineficácia do julgamento como convencimento, sua implosão numa bifurcação que implica em violência pura ou em alguma forma de reconstituição democrática.
A questão é menos quem irá ao segundo turno e quem deve não ir. Mas entender como chegamos a este ponto limite e como podemos constituir algo novo, com realismo e sem perder de vista o horizonte utópico.
P.S.: aos amigos José Guilherme e Jean, pelo constante diálogo e troca de ideias.