Com a democracia brasileira em chamas, Bolsonaro, candidato da extrema-direita é esfaqueado em um ato de intolerância semelhante aos que ele defende. O que se pode dizer diante dessa surpreendente, e paradoxal, episódio?
Por José Guilherme Pereira Leite*
Talvez eles proíbam os seus seguidores de escutar os argumentos racionais, tidos como enganosos, e os ensinem a responder argumentos usando seus punhos e suas pistolas. Nesse caso, em nome da tolerância, deveríamos clamar pelo nosso direito de não tolerar o intolerante. (Karl Popper, A sociedade aberta e os seus inimigos)
“Repudio qualquer coisa que pareça com Jair Bolsonaro, portanto inclusive o meter-se uma faca em Jair Bolsonaro”. Fosse eu um candidato à Presidência da República, neste momento da vida nacional, esta teria sido a minha “Nota Condenatória”.
Me parece que este seja o melhor modo de verbalizar o que precisa ser verbalizado agora e, ao mesmo tempo, deslocar a maldita “contradição perfomativa” inerente à defesa de uma democracia principista, contradição que constitui o tema central do “Paradoxo da Tolerância” (Karl Popper), de alguns dos melhores escritos de Habermas (“Consciência Moral e Ação Comunicativa”, por exemplo) e de algumas passagens importantes da tradição crítica. Contradição que, na última quinta-feira, fundiu os miolos da Bancada Globo News, de vários analistas políticos soi disant, e de inúmeros amigos da rede.
Explico-me.
Existe uma contradição inerente à vida democrática e à defesa do direito de expressão, a saber: se tomamos tais valores em termos axiomáticos absolutos, temos que assumir o paradoxo daí derivado, isto é: defender a democracia defendendo o direito à representação de todas as posições possíveis constitui uma defesa frágil da democracia já que, eventualmente, isto envolve a obrigação de defender o direito de representação daqueles que falam ou agem contra a própria democracia.
Tal defesa, hiper-ampla, pode parecer correta ou confortável em termos lógicos ou retóricos, sendo porém estúpida e suicida em termos políticos e sociais objetivos. Trocando em miúdos, uma das grandes perguntas motrizes para Habermas e alguns frankfurtianos foi uma pergunta do mais alto interesse histórico, considerando a barbárie e o holocausto engendrados pelo nazismo, que estarão para sempre em nosso retrovisor. Pergunta que assim poderia expressar-se: é cabível que um democrata defenda os direitos políticos de um Hitler?
No pensamento social, um dos desdobramentos teóricos desta questão, nas últimas décadas, foi o desenvolvimento e o aprofundamento de uma reflexão que passou a fazer a crítica de algo dito “democracia formal”, definido exatamente como sendo o regime que responde “sim” à pergunta acima e está sujeito portanto à sua própria liquidação. Para os críticos do “formalismo” (Popper, Habermas etc.) a resposta deveria ser “não”, isto é, “como democrata não posso defender os direitos políticos de um Hitler”. Isto porque, para tais pensadores, o imperativo ético-moral deve se sobrepor ao imperativo lógico, sem mais delongas.
Jair Bolsonaro não deve ser morto, esfaqueado ou agredido. Nessa perspectiva, entretanto, sua candidatura não deveria ser permitida pelo ente coletivo a que chamamos de “Justiça Eleitoral” pois se trata claramente de uma afronta intolerante à noção estruturante de tolerância, uma afronta portanto à própria democracia.
Tal “Justiça” calou-se desde o início em face dessa incongruência, preferindo claramente a acepção formalista da demarcação democrática. A normalização de uma tal candidatura é evidentemente uma monstruosidade típica do formalismo performático e contraditório de uma sociedade que perdeu completamente – ou prefere esquecer – os parâmetros de seus próprios compromissos e limites. Bolsonaro na urna é a imagem perfeita de um estado e de um Estado, irracionais e bizantinos.
*José Guilherme Pereira Leite é professor universitário, sociólogo e doutorando em Filosofia pela USP
Esta é a reflexão é dedicada a Felipe Camarneiro