Semelhante com nossos vizinhos latino-americanos, sangrando pelas consequências da radicalização do neoliberalismo, envolvimento do Estado na execução de ativistas se torna cada vez mais recorrente. Por pouco candidato da esquerda colombiana não teve o mesmo destino de Marielle Franco.
Por Hugo Albuquerque, editor da Autonomia Literária
Atualização de 28/03 de 2018: O atentado a balas contra a caravana do ex-presidente, e ora candidato à presidência, Luís Inácio Lula da Silva, independentemente de paixões partidárias e preferências ideológicas, é mais um fato gravíssimo que se insere no contexto de acirramento da violência política no país. É um fato terrível que precisa ser repudiado, mas retrata o estado de coisas que vive o país, sobretudo pelo desdém com o qual isso foi tratado inclusive por outros candidatos. Não é um fato trivial. Nem pode ser ignorado ou politizado.
O Brasil está chocado com a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL). Um crime brutal que ceifou a vida de uma jovem ativista, negra, feminista e periférica. Uma liderança vinda da favela que jamais deu as costas para o seu povo. Esse não foi, contudo, o único crime de repercussão na América Latina neste momento: há pouco, Gustavo Petro, candidato presidencial colombiano de esquerda, e líder nas pesquisas, por pouco não foi executado também, depois de um atentado sofrido durante a atual campanha. Petro está denunciando o caso à OEA, diante da imobilidade das autoridades.
A América Latina, que terá eleições presidenciais em seus três maiores países — Brasil, México e Colômbia — ainda este ano, vive tempos de cólera. Nos três, candidatos de esquerda lideram, mas neles vicejam uma estrutura na qual o sistema se fecha para impedir candidaturas populares, e a perseguir políticos que destoam minimamente do script, o que se funda na ação dos poderes instituídos. Mas, também, na ação de grupos criminosos paramilitares com uma relação ambígua e promíscua com os poderes constituídos.
Pois bem, o Rio de Janeiro está sob intervenção federal, mas uma intervenção que até as pedrinhas da rua sabem que é uma jabuticaba: feita a toque de caixa, sem planejamento e sem seguir o correto rito constitucional, ela simplesmente foi um modo de realizar um Estado de Sítio velado sob o qual ocorre, misteriosamente, a execução. Soma-se a isso um detalhe importante: Marielle era relatora da comissão parlamentar municipal que fiscalizaria a intervenção.
Na melhor das hipóteses, o comando da referida intervenção deve explicações à sociedade sobre como isso pode ter acontecido sob sua vigência. É o mínimo que se espera de uma intervenção que, supostamente, veio para dar mais segurança ao estado do Rio de Janeiro. Entretanto, como sabemos, ela não fará. O comandante da intervenção simplesmente disse que isso prova a necessidade da intervenção, uma fala absolutamente desnecessária e dolorosa neste momento.
É fato que inúmeras lideranças são mortas nas periferias e no interior do Brasil, fruto da redemocratização incompleta. A morte de uma parlamentar combativa, dedica à denúncia de violações, em um grande centro é uma novidade: significa que não só as pessoas são vítimas como, também, as autoridades democraticamente eleitas estão na mira, algo que não acontecia desde a Ditadura Militar.
Nesse sentido, a comparação com a Colômbia faz sentido: lá, a democracia formal foi mantida, alijando a possibilidade de candidaturas populares, enquanto sindicalistas e jornalistas foram sistematicamente perseguidos e executados. Enquanto o comando do país era alternado por frações da elite, tanto as forças estatais oficiais quanto grupos paramilitares envolvidos com o crime organizado mantiveram a população sob sua bota. O mesmo modelo foi adotado pelo México nos anos 1980.
Vejamos que graças ao esforço da comunidade internacional, um processo de paz está instaurado na Colômbia, o que enfraquece forças radicais e permitiria, pela primeira vez em muitos anos, que candidatos alternativos progressistas possam ser eleitos. Eis que Petro, um bem-sucedido ex-prefeito da Bogotá, capital do país, está em primeiro. E por isso quase foi morto. O recado é claro: as coisas não mudaram, nem podem mudar, tanto assim na Colômbia.
No México, por exemplo, o caso dos 43 estudantes mortos por cartéis nas proximidades da Cidade do México em virtude da sua atuação política contestatória. Em tese, não seria o Estado mexicano a praticar a violência, mas cartéis de tráficos, os quais, no entanto, faziam comodamente o papel desejado por oligarquias políticas regionais, incomodados com o ativismo dos jovens. A narrativa cínica do Estado mexicano, contudo, fracassou com a ONU apontando a tolerância do Estado mexicano com os cartéis para usa-los como instrumento de repressão política.
No caso do Brasil, os momentos de regularidade institucional sempre conviveram com a opressão das minorias, como se houvesse uma cidadania de duas categorias — mesmo após a abolição da escravidão. Em momentos ditatoriais, contudo, a repressão sempre se instalou contra qualquer dissidência política, mas isso se deu de forma bastante expressa e clara. Agora, a coisa toma novos contornos, com a tentativa de se manter uma democracia formal esvaziada, no qual a porta-giratória entre Estado e crime organizado parece estar em vias de instalar. A ordem puramente mafiosa é um modo de controle social profundo, capaz de não apenas poder terceirizar abusos como, ainda, manter as populações das áreas mais pobres sob uma sofisticada disciplina.
A intervenção federal no Rio, um Estado de Sítio mascarado, já era por si só indevido e inconstitucional, mas sua aplicação está se saindo pior do que o esperado. É necessário que a intervenção preste contas sobre sua atuação, ainda que de maneira canhestra, uma vez que se as forças armadas estão em missão devem assumir as responsabilidades que isso implica.
Esperar essa postura do Estado é quase como um conto de fadas. Essa deve ser a tarefa dos movimentos sociais. Encarar a intervenção de frente, forçando prestações de contas e cobrando atuação devida. Encarando as mazelas da segurança pública do Rio, o que tem efeitos para todo o país, entendendo que sem enfrentar isso, os efeitos não são apenas a continuidade da repressão a certas parcelas da nossa sociedade, mas uma piora do próprio regime. A massiva repressão social se tornando repressão política, da democracia muitas vezes apenas formal para a ditadura sob a forma do Estado-máfia.
O folclore da ação federal moralizadora contra os problemas do Rio, que já deveria ter caído por terra quando a intervenção não determinou a derrubada do governador, agora resta inclusive mais escancarada: as munições usadas na Execução de Marielle eram de um lote vendido exclusivamente para a Polícia Federal (PF). Por sinal, a munição do mesmo lote antes havia sido usada na maior chacina de São Paulo. Ainda que se apure que não houve participação da PF na execução, na menos grave das hipóteses, há um esquema criminoso que descaminha munição sua para esquadrões da morte pelo país.
Portanto, não é um mero problema humanitário, mesmo que se reconheça ele como grave, mas um modo de gestão que implica em uma nova economia exploratória e, também, uma nova forma de autoritarismo político.
O Brasil precisa ser passado a limpo enquanto ainda é tempo. Do contrário, depois pode ser tarde demais — como ensina a história de nossos vizinhos latino-americanos. Não devemos nos iludir: esses crimes estão num contexto maior, de largas repercussões políticas, no qual as oligarquias nacionais, em aliança com as potências do mundo ocidental, mantêm o planejamento neoliberal: uma sociedade de exploração, na qual a maior parte das pessoas vive miseravelmente, alijadas da riqueza que produzem, enquanto são frequentemente condenadas à morte caso protestem contra isso.