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Flipei: Novas liberdades contra a servidão voluntária.

Um dos bucaneiros de nossa tripulação descreve como anarquistas e comunistas resistiram a todos as adversidades, inclusive fascista, para realizar debates, encontros e uma grande festa

Por Gustavo Racy*

Os dias foram quentes em Paraty. Sob o sol, à margem esquerda do rio Perequê-Açú, curiosos, aficionados por política e interessados rondavam o triângulo composto pelo barco-livraria pirata, a barraca de cerveja e a Zona Autônoma de Leitura instalada no velho ônibus escolar da Rizoma. Tornado palco com o fim das palestras, o ônibus oferecia, madrugada adentro, um alento aos corpos que esfriavam com a súbita baixa da temperatura. Era preciso manter o ânimo, relembrar que a luta e a festa são rituais próximos e complementares.

Uma alegoria da realidade brasileira se formou, circunscrita a esse pequeno triângulo onde mentes e corpos puderam se expressar em toda sua diferença. E como sabemos, nosso país nunca foi dado à diferença. Não nos é permitido fugir à norma, experimentar o novo, não se justificar ou dar satisfação às instituições e às autoridades. Não. Pelo contrário. Num país de mente colonialista, impera a moral do escravo de Nietzsche: o ressentimento é o dom maior de um povo entregue à servidão voluntária.

Mas mesmo sob o sol escaldante, nem tudo nesta terra é ofuscado. O público que se juntou durante cinco dias para um ciclo de palestras e arte pode experienciar e ajudar a dar forma a um experimento social rico, desinibido e livre: a FLIPEI de 2019 extrapolou os limites da mídia tradicionalista, extrapolou a moral da burguesia rançosa e riu na cara dos neo-galinhas-verdes. Numa organização autônoma, livre, de anarquistas e comunistas desempenhando as mais variadas funções, imperou o espírito de Proudhon contra o filisteu e a “mais séria e bem ponderada declaração de fé” de que a associação livre e o combate à autoridade são necessários sempre.

Num Brasil pantanoso de bolsonarismo-morismo alfabetizado funcional, em que as resoluções diárias se dão sob o império da palavra de ordem, do grito e do açoite salvaguardados pelos aparatos ideológicos do Estado, o humor de embate, a reflexão crítica e a oratória polida, a dança, a música e a poesia, a cerveja e a cachaça mineira se misturaram a serviço de algo maior; um acontecimento, uma performance de experimentação, liberdade e compromisso.

Enquanto nós, bucaneiros, escancarávamos o ridículo da sociedade brasileira atual, a margem direita do rio nos mirava com rojões ao som de remixes funk do Hino Nacional. Enquanto nós pacientemente e bem-humoradamente deixávamos que o ridículo se desse, à margem direta do rio, nas vielas e casas caiadas do evento principal, o silêncio e a distância. Pois, o que pode a associação de pessoas baseada na liberdade? Arrisco a resposta: assustar. Assustar os partidários das estruturas rijas, racistas-elitistas do Estado contemporâneo, assustar os privilégios dos mercados (neste caso o editorial) que higienizam seus debates por patrocínio. Assusta, pois, a liberdade é uma conquista e uma responsabilidade que nem todos querem assumir.

No ápice político do evento, na sexta-feira, a tentativa de impedir a chegada de Glenn Greenwald, com a ciência das forças de segurança e da própria Flip, que fizeram vista grossa à violência direcionada a um evento literário, ilustra o processo de naturalização da realidade social que Erich Fromm havia diagnosticado já nos anos 1920. Mais do que um fenômeno puramente social, um processo psíquico que, na Pindorama, canaliza as frustrações da vida social num esforço libidinal narcísico de manutenção da ordem.

Micro-fascismo, fascismo cotidiano, simplesmente fascismo, consciente ou não. A normalização da violência contra a diferença é uma onda que alastra o mundo contemporâneo em geral.

Mesmo em mares tormentosos, entretanto, nós, bucaneiros, navegamos: ideias e afetos felizes não se afundam. O que pode a Flipei, sob a égide desta naturalização e normalização da violência e do silenciamento? Neste ano, ela pode corroer, destruir um pouco que seja, do estamento patriarcal, capitalista e racista da norma. Se todo ato de destruição é um ato criativo, isto se dá porque, como observou Walter Benjamin, o “caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio”. Sob este caráter destrutivo somos joviais e alegres, não queremos ser compreendidos, não vemos nada como duradouro, empregamos ânimos novos e, abrindo caminho, estamos sempre na encruzilhada. Como quando os fascistas do mutilado Millán Astray declamaram “morte à inteligência, viva a morte!” nós, como Unamuno, respondemos, enquanto eles exercem seus podres poderes, que vencer não é convencer. Sob ameaças, nós seguimos livres, respirando ar fresco e abrindo espaço por onde passamos. Por isso lutamos.

*Gustavo Racy, doutor em ciências sociais pela Universidade da Antuérpia. Sua pesquisa orbita a obra de Walter Benjamin, focando-se em problemas de cultura visual, teoria das ciências humanas e filosofia da história.

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