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Estado de Exceção Global: Equador, Chile, Bolívia Argentina e os Quatro Cantos do Mundo

Por Hugo Albuquerque | arte de Joice Fadelli sobre a foto icônica de Susana Hidalgo

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.”
Tese n. 8 sobre o Conceito de História de Walter Benjamin.

“Sigam vocês sabendo que, mais cedo ou mais tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. “
As últimas Palavras de Salvador Allende

Estamos testemunhando um estouro de decretações de Estado de Exceção pela América do Sul, primeiro no Equador e agora no Chile, a vitória em primeiro turno de Evo Morales na Bolívia e, agora, a fantástica mobilização popular nas eleições da Argentina que conduz o peronismo de volta o poder na Argentina, depois de anos de destruição neoliberal sobre Mauricio Macri — tudo isso acontecendo ao mesmo tempo da invasão terrestre da Síria por forças turcas para reprimir a minoria curda — que habita os dois lados da fronteira além de outras áreas do Oriente Médio –, as megamanifestações na Catalunha, o Brexit segue sem resolução, em razão da prisão de líderes separatistas, o continuado cerco à Venezuela o processo de impeachment contra Donald Trump, a implosão do partido de Bolsonaro — e consequentemente de sua governabilidade.

Não se tratam de fatos isolados, mas de um novo capítulo da luta de classes na era da globalização, no qual a crise de 2008, longe de ser resolvida, vê mais um de seus capítulos terminar: a extrema-direita global entra em curto-circuito, diante do divisionismo que produz internamente, bem como da guerra comercial, mas isso gera efeitos dos mais diversos. Na América do Sul, a breve tentativa de restauração neoliberal, seja por governos de plutocratas como de Piñera no Chile ou de Macri na Argentina — os dois únicos direitistas puro-sangue a ascender em seus países depois das suas sangrentas ditaduras militares — refluem, enquanto a Bolívia e Venezuela resistem contra tudo e contra todos.

O termo Estado de Exceção entra na ordem do dia: longe apenas de ser um instituto exclusivo ao direito constitucional, ele ronda, perturba e anima uma série de debates entre juristas, filósofos e cientistas políticos desde muito. Mas não se trata apenas da medida pela qual os poderes soberanos suspendem direitos para, assim, governar sob regime de emergência suas populações, tornando evidente a letalidade pressuposta à qualquer Estado: trata-se também, como nos ensina Walter Benjamin — acima citado e sobre quem em breve esta editora lançará A Revolução é o Freio de Emergência, do icônico Michel Lowy –, da própria revolução; a verdadeira exceção é a exceção à regra histórica da opressão, enquanto a outra, de natureza soberana, nada mais é que o desvelar da natureza do Estado, do poder soberano e do capitalismo, mudando tudo para que nada mude.

Todos esses fatos acima narrados ilustram a agonia do sistema global e da não resolução da crise de 2008, a qual decorreu do colapso da democracia liberal, seja na gestão econômica quanto política, sem resultar na criação de um novo sistema ou gerar uma nova ordem multilateral no globo. O resultado, a luta encarniçada da oligarquia global em manter sua confortável posição e, do outro lado, dos Estados Unidos, os fiadores dessa ordem mundial, em conservarem seu privilégio exorbitante, nos levam ao maior stress desde os anos 1930.

Se de um lado a democracia liberal não caiu, por outro lado, a bisonha ascensão de partidos de extrema-direita resulta em um bisonha situação de não resolução: se salvo a Hungria, a qual aprovou uma nova Constituição de cunho neofascista, nenhuma dessas forças conseguiu refundar seu Estado nem alterou as regras e princípios da democracia liberal, as quais permitiram sua eleições, mas não lhes permitem governar como desejam, gerando assim um enorme impasse — portanto, as diatribes de Jair Bolsonaro, eleito presidente brasileiro sob circunstâncias questionáveis em 2018, em relação ao STF e ao Congresso Nacional não são exclusividades brasileiras. Essas jabuticabas, pois, são globais.

Em que pese a derrota na recente eleição de Budapeste por parte da extrema-direita que há nove anos governa a Hungria, o premiê Viktor Orbán segue altamente bem avaliado enquanto os poloneses reelegeram a ultradireita. Ainda assim, que seja sublinhado as causas do sucesso aparente da nova extrema-direita do leste europeu: nos dois casos citados, diferentemente do que se passa na América do Sul, as forças neofascistas apostam em uma política econômica desenvolvimentista e uma política social includente para as maiorias étnicas, sociais e ideológicas — que funciona porque húngaros e poloneses estão dentro da União Europeia, mas não da zona do euro, o que lhes permite gozar de quase todas as vantagens do mercado comum europeu podendo, contudo, emitir a própria moeda e assim evitar as maldições bíblicas que se abateram sobre gregos, portugueses e espanhóis.

Uma política que lembra mais o velho fascismo, com suas políticas nacionais e desenvolvimentistas só que sob vestes pós-modernas, dentro de um colchão de ar incrivelmente vantajoso, separa a Polônia e a Hungria do neopinochetismo de Bolsonaro e Paulo Guedes, o qual se sustenta no ultraprivatismo mantido sobre o mais decidido autoritarismo de Estado — ou o governo de magnatas como Macri ou Piñera, os quais contêm uma espécie de thatcherismo, que possui sim ecos autoritários, mas possuem a dificuldade de assumir uma postura contrária à democracia constitucional e assim virar a mesa.

Seja um governo de direita tradicional como o de Piñera no Chile, ou de um esquerdista que capitulou à direita como Lênin Moreno, e aplica uma política ultraliberal, ou uma extrema-direita como a de Bolsonaro parecem não encontrar sorte. Só o último ainda não enfrenta grandes manifestações, mas segue sendo triturado nas instituições ao passo que coleciona fracassos econômicos seguidos, vide as constantes cortes na projeção de crescimento econômico.

No meio do caminho se encontra Donald Trump, o qual está à meia-distância no abismo que separa seus contrapartes europeus de direita radical para Jair Bolsonaro: com um crescimento econômico de duvidoso fôlego e qualidade, baixíssimo retorno social e a crescente instabilidade política, causada pelo populismo extremo do mandatário americano, o resultado é um dramático processo de impeachment — em um movimento de degeneração que antevimos no começo deste ano.

Muito longe de desenvolverem uma superação revolucionária do capitalismo, os socialistas de mercado asiáticos, contudo, parecem blindados da crise intrínseca aos países ocidentais, crescendo menos pela repressão de Estado que eles mantêm — mas que eles supõem, todavia, ser parte desse sucesso — e mais, ao contrário, pela maneira como eles são capazes de liberar o potencial criativo e produtivo das massas — num movimento que exigirá de suas direções políticas, dentro em breve, operar uma nova síntese, desta vez não entre planificação e mercado, mas entre democracia e partido.

É nesse sentido que para muito longe da aclamação dos contornos autoritários de regimes chineses e norte-coreanos, que eles miram, contudo, em políticas de inclusão e de desenvolvimento de uma ordem multilateral, enquanto húngaros e poloneses, criticados porém normalizados dentro da ordem liberal, assumem as concessões sociais para suas maiorias étnicas apenas como uma tática de governança, a qual está voltada a uma ordem que não quer nem pode tolerar a ideia de liberdade ou de melhoria de vida em caráter universal — ou, que seja, uma ordem global justa e diversa.

Voltemos, pois, ao Estado de Exceção efetivo de Benjamin: para além da exceção como ato possível do Estado por meio da figura do Poder Soberano, e seu arbítrio natural, de suspender ocasionalmente direitos para entender a dimensão material disso, que depende antes na construção de uma sociedade de classes, na qual a maior parte das pessoas são, no fundo, oprimidos, escravos, servos ou “trabalhadores” — conforme a época e o lugar –, cuja condição subjetiva enquanto tal os permite ser matáveis ou sacrificáveis já de início.

Quando Benjamin aponta a continuidade da opressão, e que o “estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral” aponta para o regime de exploração do trabalho é sempre um regime de opressão, independentemente, se sua faceta é mais ou menos simpático — por sinal, o fascismo não aparece como um elemento alheio ao liberalismo, mas como um mecanismo desesperado de sobrevivência do sistema capitalista, não à toa, nascido a partir de dispositivos constitucionais liberais — nos anos 1930, mas também agora. A disrupção global é imensa.

O resultado disso é uma versão dark e pós=apocalípica de repressão estatal, mas também a ascensão virtuosa, potente de movimentos como a Primavera Árabe e do movimento occupy nos Estados Unidos, que chegou no Brasil na forma das Jornadas de Junho em 2013: rebeliões intensas marcadas por repressão policial e judicial, enquanto as forças rebeldes dificilmente conseguem se constituir institucionalmente — ou não serem cooptadas como aconteceu com o Syriza, partido da esquerda radical grega conforme narra o bravo Yanis Varoufakis, em seu Adultos na Sala, lançamento da Autonomia Literária deste mês.

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É tolo crer que só agora houve o divórcio entre capitalismo e a democracia, uma vez que mesmo a democracia liberal, ou sua versão fim da história, é uma resultante de forças cravada pela reivindicação social: a universalização dos direitos políticos, ou sua geração em algum grau, jamais concedida de bom grado pelo sistema capitalista em qualquer parte — e seu exercício, quando não gerado por duros embates, se deu pelo temor de sua derrocada em nível internacional.

Os levantes multitudinários em Equador e Chile assustam, sobretudo o segundo que não se contentou com o recuo e as concessões do governo e, desde já, se levanta pela destituição de Piñera da presidência, passo visto como central para uma nova constituinte — que deve abolir a Constituição pinochetista ainda em vigor, ainda que com penduricalhos sociais emendados ao longo do tempo — e um novo modelo econômico, que supere o ultraprivatismo de um país quase desprovido de serviços e instituições públicas e, ainda, com uma economia pouco diversa, não industrializada e voltada para a exportação.

O levante chileno é uma espécie de evento quântico para a extrema-direita brasileira, a qual sob o comando real de Paulo Guedes, o superministro da economia bolsonarista, se constituiu, precisamente, sob experiência de neopinochetismo tardio no Brasil, com aval dos Estados Unidos e “do mercado”. O Brasil que tenta se refundar no Chile do passado não sabe, nem pode, explicar a insurreição do Chile do presente.

Em um país no qual tudo é privado, a população enormemente endividada e a desigualdade social grassa, o “modelo chileno”, talvez a mais bem-sucedida engenharia para fazer uma economia periférica ser funcional e colonial ao mesmo tempo acusa o golpe: a guerra comercial deflagrada por Trump contra os chineses abala o comércio do pacífico, mas o próprio modelo também acusa seu próprio esgotamento.

As manifestações chilenas, lotando as alamedas de Santiago, sua capital, parecem a realização da profecia de Salvador Allende quando de seu discurso final em um sitiado Palácio de la Moneda quando pouco antes de morrer vaticinou: Sigam vocês sabendo que, mais cedo ou mais tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

Também é assombroso para Bolsonaro ver a força do peronismo de esquerda, sob a liderança de Alberto Fernandez e as bençãos de Cristina Kirchner, voltar ao poder na Argentina, o que merece uma análise mais detida, mas expressa nas urnas o que está acontecendo nas ruas de Chile e Equador — e talvez apenas a iminência de uma eleição que pudesse destituir Macri tenha evitado manifestações iguais ou maiores na Argentina. Na Bolívia, a persistência de Evo Morales no poder, leva agora a direita a cravar uma tese semelhante a de Aécio Neves no Brasil de 2014: não reconhecer a derrotada e tumultuar a política.

Voltamos, portanto, ao ciclo de 2010-2015 e o protagonismo sulamericano está dado. Estamos vivos, estamos vencendo, o que não muda o fato de dores e alegrias, choros e gargalhadas se entrecruzarem pelos quatro cantos do mundo: e era justamente esse o nome do que conhecemos por Império Inca.

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