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Reduzir circulação do transporte público é errado e pode agravar disseminação de coronavírus

Aumentos de preços da passagem, diminuição de linhas e aglomeração nos ônibus e trens são consequências do modelo que depende de superlotação para ser viável financeiramente. Crise atual, em que é preciso evitar ao máximo concentração de pessoas, é momento para reavaliar fórmula de remuneração e pensar em alternativas para garantir direito ao transporte para população. Na Finlândia, motoristas de ônibus liberaram as catracas.

Por Daniel Santini, autor do livro “Passe Livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização

Como uma das principais medidas para tentar evitar a disseminação do coronavírus no Brasil, governantes de diferentes Estados intensificaram na última semana a tática de reduzir a quantidade de ônibus e trens em circulação. A premissa de que é preciso limitar o uso do transporte coletivo para evitar a disseminação é acertada. Qualquer um que depende das redes públicas para chegar ao trabalho sabe como é o aperto diário que milhões vivem todos os dias. Não tem máscara, álcool gel, armadura ou traje espacial que contenha o vírus em meio à concentração inacreditável de pessoas que diriariamente se apertam nos ônibus, vagões, estações e paradas das metrópoles.

É preciso evitar aglomerações. A premissa é correta, mas a estratégia adotada na maioria das cidades brasileiras tem sido desastrosa, para dizer o mínimo. Cortar linhas quando o cenário é de superlotação é uma medida violenta e não ataca a causa do problema. Em todo o Brasil, mesmo com os alertas do risco de disseminação rápida do vírus, pessoas continuam se esmagando coletivamente em trens e ônibus, simplesmente por falta de opções. Mesmo com as recomendações de isolamento, não tem sido poucas as imagens de sistemas lotados e filas intermináveis para embarque em metrópoles de todo o país. Quem não pode trabalhar de casa, depende do que ganha a cada dia para sobreviver ou não tem garantia caso falte no emprego, precisa manter a rotina, com ou sem corona.

Nesse contexto, melhor do que tentar forçar a redução do uso cortando linhas ou restringindo a circulação, o correto seria reduzir somente quando a demanda diminuísse. É preciso fazer isso e manter um monitoramento ativo, procurando ajustar o sistema com generosidade para garantir que trens e ônibus circulem sempre com o mínimo possível de passageiros. Mas como manter a rede em circulação com trens e ônibus rodando praticamente vazios em sistemas que dependem da receita das catracas para operar?

Sempre lotados

A crise atual explicita um dos principais problemas na maneira como os sistemas de transporte estão configurados no Brasil. A remuneração para empresas que prestam o serviço é, na maioria dos casos, por passageiro e não por viagem. Com isso, a obsessão é em ter sempre a rede operando no limite. Quanto mais passageiros, mais lucro. A fórmula faz com que as rotas mais tranquilas, em que todo mundo viaja sentado, sejam vistas como pouco produtivas. É essa a base de raciocínio que levou a Prefeitura de São Paulo a cancelar ou encurtar linhas de ônibus na reformulação destrutiva adotada recentemente, para citar um exemplo recente.

Mesmo com a população crescente, a regra nos últimos anos tem sido cortar, cortar, cortar. De 2013 a 2019, a população de São Paulo cresceu de 11.821.876 para 12.252.023 habitantes, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, o preço da passagem subiu de R$ 3,00 para R$ 4,40, a quantidade de linhas diminuiu e o número de passageiros transportados por ano na rede municipal caiu de 2.924.212.465 para 2.636.565.724, conforme dados da SPTrans, empresa que gerencia o sistema. Em 2013, a frota de ônibus do município era de 14.805. Em 2020, encolheu para 13.979.

A lógica de manter sistemas que se sustentam, total ou parcialmente, pelo valor arrecadado na catraca é o que faz com que seja tão difícil para gestores públicos imaginar manter linhas operando com folga, mesmo em um contexto de crise humanitária tão grave. Há exemplos de que isso seria possível. Em Copenhague, na Dinamarca, em vez de reduzir, em um primeiro momento o metrô aumentou a circulação de trens – uma medida para garantir que ninguém fique esperando na plataforma ou que os vagões circulem lotados. Foi só depois que as medidas de isolamento avançaram é que gradualmente a circulação de trens diminuiu.

E os trabalhadores?

Reduzir a concentração de pessoas no transporte público é também um cuidado com quem opera o sistema. Metroviários de São Paulo e Belo Horizonte  pressionam e ameaçam parar justamente pela falta de medidas preventivas. Na Finlândia, em protesto, motoristas de ônibus passaram a abrir somente a porta de trás dos ônibus, permitindo que passageiros entrassem sem pagar, uma forma de evitar contato na hora de vender passagens.

Pois não seria hora de pensar em uma mudança de paradigma e em abandonar a fórmula que faz com que o sistema dependa de lotação máxima para ser viável? Que tal desistir da receita das catracas, acabar com a cobrança direta de cada passageiro, adotar tarifa zero como política universal e custear a passagem com recursos de outras fontes? Que a crise atual, que nos faz olhar com espanto para trens e ônibus lotados em função do risco de contágio em massa, sirva também para sensibilizar sobre o absurdo que é ver gente circulando espremida todos os dias. Que torne visível e inaceitável o que, de tão constante, passou a ser considerado normal. A violência, quando repetida sem interrupção, anestesia e provoca uma letargia coletiva.

Argumentos não faltam. Abolir catracas é também uma forma de aumentar espaço nos ônibus com a retirada das barreiras de controle. Tal mudança, é claro, precisa vir acompanhada de um plano para que cobradores sejam absorvidos em outras funções, como por exemplo auxiliando a regular a demanda, reorganizando o sistema e fiscalizando a operação. Deixar de cobrar em um contexto de grave crise econômica é também uma política social imediata de auxílio a quem mais será afetado pelo avanço do coronavírus.

Uma sociedade doente

Aproveitar para avançar com mudanças em um momento em que toda sociedade é forçada a olhar para o transporte coletivo é também uma forma de tentar reverter uma tendência grave em curso, a do colapso do transporte coletivo no Brasil. São Paulo é um exemplo, talvez o principal, mas não o único. Em todo o país as redes estão sendo substituídas gradualmente por transporte motorizado individual ou por sistemas baseados no trabalho precarizado, a tão famosa uberização. Na economia do compartilhamento, jovens endividados se equilibram para conseguir pagar motos compradas em prestações infinitas e motoristas continuam nas ruas em jornadas extenuantes mesmo com a ameaça de contágio a cada passageiro transportado.

Passageira de ônibus BRT com máscara descartável. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A crise de saúde, aliás, explicita também a limitação do novo modelo de transporte de pessoas e mercadorias baseado em trabalho precarizado que transformou a mobilidade das cidades rapidamente nos últimos anos. Quando motoristas de Uber e aplicativos similares, e entregadores que atendem pedidos de delivery, começarem a ficar gripados, quem vai convencê-los a ficar em casa de maneira preventiva em função do risco de espalhar um vírus mortal? Quem ganha por entrega ou corrida, precisa circular e não tem opção que não trabalhar para sobreviver.

Não é hora de pensar em formas mais justas de se organizar o transporte e até em sonhar com um sistema público de entrega de alimentos, que opere de maneira parecida com a dos aplicativos atuais, mas com trabalhadores contratados formalmente e no qual a taxa hoje absorvida pelas empresas seja encaminhada para políticas sociais? Que a crise seja também um momento para repensar a responsabilidade das corporações multinacionais que lucram com a maneira como esses novos sistemas de mobilidade estão configurados. Que sirva para pensar em garantias sociais e políticas públicas, para ampliar direitos e possibilitar uma segurança mínima para quem, mesmo precarizado, tem se arriscado para garantir um mínimo de circulação para uma sociedade doente.

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* Daniel Santini é coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo e autor do livro Passe Livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização, agora também disponível em versão digital. Baixe seu exemplar em PDF.

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