Um vírus não é capaz de fazer uma revolução: pode até destruir um velho mundo que já vinha em desagregação, mas não construir um mundo novo – essa é uma tarefa destinada apenas à ação coletiva e consciente de massas em movimento.
Por Victor Marques*
Essa não é a primeira pandemia global a acometer a humanidade, e não será a última. Muitas das nossas melhores mentes, ao redor do mundo, estão nesse exato momento engajadas em entender melhor como o vírus age e como combatê-lo, testando tratamentos promissores e buscando desenvolver uma vacina. O colapso civilizacional não é o cenário mais provável. Eventualmente sairemos da fase aguda da crise e a vida cotidiana recuperará uma aparência de normalidade.
Nada disso, no entanto, deve nos distrair do fato de que estamos diante de uma daqueles raros eventos definidores, que acontecem a cada uma ou duas gerações e que marcam época. Nem minimizar a magnitude do sofrimento humano já em curso e que se prolongará pelos próximos meses – seja devido à COVID-19 seja em consequência do desastre econômico que a epidemia traz consigo.
No momento em que escrevo, o número de casos confirmados em todo o mundo beira meio milhão, e com mais de 20 mil mortes (ao finalizar o texto e enviá-lo para publicação, os casos confirmados já haviam ultrapassado a marca de um milhão, com mais de 50 mil mortes). Se o mês de março começou com a Itália ultrapassando a China como país mais afetado pelo vírus, acumulando até aqui 14 mil falecimentos, e chegando a cerca de mil mortos em um único dia no pior momento (com a Espanha seguindo logo atrás na curva de contágio), no início de abril são os Estados Unidos que se consolidam como o novo epicentro da pandemia, com cerca de 250 mil casos confirmados, chegando a mais de mil mortes nas últimas 24h. Lá, a COVID-19 já é a terceira principal causa de morte, de acordo com o CDC, perdendo apenas para doença cardíaca e câncer.
O nome oficial do vírus que tem provocado esse estrago é SARS-coV2, ou “coronavirus de síndrome respiratória aguda grave 2”. A infecção pelo SARS-coV2 tem se mostrado menos letal do que a do outro coronavírus que desencadeou o surto de SARS de 2003 na Ásia, embora também muito mais contagiosa. Um tempo longo de incubação (por volta de 5 dias, mas podendo chegar a mais de 15), assim como uma certa proporção de transmissores assintomáticos ou com sintomas leves, facilitou que o vírus se espalhasse rapidamente por um mundo acelerado e hiper-conectado, com casos confirmados em quase todos os países. Apesar do surto de SARS de 2003 apresentar uma fatalidade bem mais elevada (em torno de 11%), o número de casos fatais ficaram, ao todo, em apenas 774. Compare com os mais de 5 mil casos de mortes pelo SARS-coV2 confirmados apenas nas últimas 24h.
O artigo publicado por uma equipe de pesquisa do Imperial College de Londres, em 16 de março, dá uma ideia da extensão quantitativa da problema. Os resultados do modelo, que levaram a uma mudança na estratégia dos governos dos EUA e Reino Unido, foram publicizados no Brasil pelo biólogo e comunicador científico Átila Iamarino, e são efetivamente horripilantes. Na simulação em que nada é feito para conter a transmissão, estima-se que 80% da população dos Estados Unidos seria infectada, e que cerca de 1% dos infectados viria a óbito – o que se traduziria, em números absolutos, em 2,2 milhões de mortos só nos Estados Unidos. Mas, sem medidas de mitigação, o número de pessoas que precisariam de tratamento intensivo (respiradores, sobretudo) excederia em 30 vezes a capacidade hospitalar, aumentando a taxa de mortalidade e aumentando o número absoluto de mortos para 4 milhões. Extrapolando grosseiramente para a população global, o equivalente seria 90 milhões de mortes em todo mundo. Aplicando um modelo similar para o Brasil, a estimativa é de 1,1 milhão de mortos caso não fossem aplicadas medidas de isolamento e distanciamento físico.
Claro que nenhum governo do mundo, em sã consciência, ficaria parado e deixaria a epidemia simplesmente seguir seu curso. Por isso, o estudo também analisa o cenário com fortes medidas de mitigação: casos sintomáticos em isolamento (e suas famílias em quarentena), proibição de grandes aglomerações e distanciamento social dos setores populacionais mais vulneráveis (especialmente os idosos). Essas medidas de fato “achatam a curva” na simulação, mas ainda bem distante do que seria necessário: o número de casos continua a ultrapassar consideravelmente a capacidade do sistema de saúde, e o resultado é 2 milhões de mortes (nos Estados Unidos). Por fim, o estudo explora ainda uma outra estratégia: a de supressão, que envolve distanciamento social para toda a população, fechamento de escolas e universidade, assim com da maior parte dos locais de trabalho. E a estratégia de supressão, como aliás a China já havia demonstrado na prática (com o lockdown em Wuhan), funciona – após um pico de casos, a curva desce rapidamente e o número de mortos se mantém na casa dos milhares. Pelo menos enquanto durar o lock-down, o que acontecerá uma vez que as medidas sejam relaxadas ainda é incerto.
Há poucas semanas, vários governos, dentro os quais o do Reino Unido se destacava, tinham como política oficial (em explícita divergência frente a linha defendida pela OMS) que não seria possível conter a epidemia, e que inevitavelmente 80% da população acabaria sendo infectada, quando então o país como um todo adquiriria uma “imunidade de rebanho” (análoga ao que acontece com as campanhas em massa de vacinação), e o vírus ficaria enfim sob controle. Partindo desses pressupostos, seria possível apenas uma estratégia de mitigação: reforçar os hospitais para receber o aumento da demanda de casos críticos, tentar isolar os grupos de maior risco (a ideia de uma “isolamento vertical”), e achatar a curva com medidas leves para induzir a mudança comportamental da população (evitar apertos de mão, precauções de higiene, reduzir aglomerações, etc.), mas sem sacrificar a economia. Essa estratégia pode ser apelidada de “levar no queixo”, inspirada pela declaração de Boris Johnson em um momento de brutal honestidade: “talvez devêssemos levar no queixo [a epidemia], de uma só vez, e permitir que a doença se espalhe pela população, sem tomar tantas medidas draconianas”.
Qual racionalidade estava por trás dessa estratégia? 1. A suspeita de que uma estratégia de supressão radical pudesse até funcionar no curto prazo, mas que a cura poderia ser pior que a doença: ao impedir que as pessoas trabalhem, o confinamento em massa desencadearia uma crise econômica, levando a um vertiginoso aumento do desemprego e uma consequente queda acentuada na renda; 2. A avaliação de que seria difícil manter uma quarentena eficaz por tempo suficiente: após duas semanas de isolamento social as pessoas começam a apresentar fadiga em relação às medidas extremas e começam a desobedecê-las – os governos liberais do ocidente não teriam capacidade de forçá-las; 3. Quanto mais tempo as medidas de supressão estiverem em vigência (o lockdown de Wuhan entrou em vigor no dia 23 de janeiro, e começou a ser levantado em 26 de março), mais estrago econômico causarão, mas caso sejam levantadas cedo demais, um segundo pico seria inevitável.
O estudo do Imperial College levou ao governo britânico a alterar publicamente sua posição, e abandonar a meta da “imunidade de rebanho”. Mas os pronunciamentos do presidente do Brasil, e de seu ministro da saúde, levam a crer que essa continua sendo a estratégia oficial do governo brasileiro. Mandetta prevê que o sistema de saúde entrará em colapso em abril, e que a taxa de contágio do vírus começará a diminuir quando 50% da população tiver sido infectada. Bolsonaro, por sua vez, afirma que é hora de voltar a normalidade, e que não há necessidade de fechamento de comércio ou confinamento em massa. Respondendo à orientação presidencial, a base do bolsonarismo partiu para a ofensiva, pressionando os governadores, e até promovendo carreatas, para que a vida econômica retorne à normalidade.
Uma coisa é certa, no entanto, nos países em que a epidemia começou a se disseminar só duas estratégias foram capazes de impedir uma escala em massa de mortes: o lockdown (a paralisação por tempo estendido da circulação de pessoas e da ampla maioria das atividades não-essenciais) ou o rastreamento inteligente (que envolve testagem em larga escala, checkpoints de medição de temperatura, e até o uso de dados pessoais para detectar as cadeias de transmissão – medidas usadas em locais que foram sucedidos na contenção como Singapura, Hong Kong e Coréia do Sul).
No momento, é difícil avaliar a escala temporal do problema: umas tantas semanas de quarentena será o suficiente para evitar o pior cenário em relação a saúde pública, ou estamos falando de um período prolongada, talvez mais de um ano, em que a vida funcionará muito longe da normalidade a que estamos acostumados? Será que veremos explosões de vários surtos ao longo de tempo, e seremos obrigados a alternar entre momentos de mais fechamento e momentos em que as medidas de distanciamento serão relaxadas? Quando teremos uma vacina pronta para uso em massa, ou pelo menos tratamentos eficazes o bastante para aliviar a pressão sobre os sistemas de saúde? A pandemia morrerá por si só depois de um tempo, ou o novo coronavírus se juntará ao repositório de outros coronavírus que provocam surtos sazonais em populações humanas? As expectativas mais otimistas colocam entre 12 a 18 meses para o desenvolvimento de uma vacina que possa ser utilizada em massa, na escala global. É possível que nesse meio tempo atividades como o turismo, as aglomerações artísticas e esportivas, as viagens internacionais, os grandes eventos e convenções globais, para além do funcionamento das escolas e universidades, terão que funcionar em condições consideravelmente distintas das que estavam em vigência antes da eclosão da pandemia.
A economia política do vírus
O que falta ao modelo da equipe do Imperial College, trágico como já parece, é uma consideração detida das variáveis econômicas – os custos e as limitações econômicas de implementar de maneira sustentada a estratégia de supressão.
Há várias maneiras pelas quais a pandemia do coronavírus já tem tido fortes efeitos disruptivos na economia global. Primeiro, já de início desorganizou as cadeias produtivas globais, uma vez que a maior parte das plantas industriais chinesas interromperam a produção ao menos temporariamente em algum momento do primeiro quadrimestre (mais de um terço ainda não volto a atividade plena). A produção industrial chinesa contraiu pela primeira vez em mais de 40 anos, e ficou em território negativo durante janeiro e fevereiro. Em um mundo de extrema interdependência econômica, isso afeta diversos setores no mais distintos países, que dependem de fornecedores chineses. E, no entanto, algo semelhante acontecerá – na verdade, já tem acontecido – com vários outros países sucessivamente, na medida em que precisam impor algo como um lockdown para conter a aceleração de curva de contágio. Em uma economia globalizada, a paralisação da produção em um país fatalmente desorganizará a produção em muitos outros, quanto mais densos os nós das cadeias logísticas de oferta maior será o efeito disruptivo em cascata. A indústria, claro, não foi a única porção da economia chinesa impactada: as vendas de varejo colapsaram, com crescimento negativo de 20%. Estimativas econômicas apontam para uma contração de cerca de 10% do PIB chinês no primeiro trimestre, fundamentalmente como efeito das medidas de supressão contra a epidemia.
A segunda maneira como a pandemia afeta a economia decorre no pânico das bolsas de todo mundo, conforme os mercados financeiros respondem a instabilidade e imprevisibilidade da situação e tentam precificar os efeitos recessivos (e os potenciais estragos nos balanços das empresas). Os Bancos Centrais têm agido agressivamente, despejando trilhões de dólares para salvar os mercados financeiros e garantir a liquidez. Cada país onde a epidemia se instalar – ou seja, boa parte do mundo, mais ou menos ao mesmo tempo – vai ter que lidar tanto como um choque de oferta, na medida em que os trabalhadores deixam de produzir impedidos pela medidas de distanciamento social, quanto com um choque de demanda, uma vez que os consumidores, confinados em casa, deixam de sair para fazer compras (ou ir ao cinema, ao salão de beleza, aos restaurantes, etc.).
A situação é um tanto pior porque a ameaça de uma nova crise global já pairava no ar antes mesmo do início da pandemia, com a economia mundial dando sinais de desaceleração, o comércio global com tendência de queda e o investimento já em baixa em boa parte dos países de capitalismo avançado (Itália e Alemanha, países centrais da zona do Euro, já estavam em território recessivo antes da pandemia, por exemplo). De certa forma, a pandemia age como um choque externo que intensifica algumas tendências já em andamento e revela a fragilidade (e as contradições) do mais longo, mas também mais anêmico, período de expansão econômica desde o fim da segunda guerra. A base dessa recuperação foi o endividamento e a constante injeção de liquidez, que permitiu a sobrevivência de empresas zumbis e manteve elevado o ânimo dos mercados financeiros turbinado pela recompra corporativa de ações.
A pandemia funciona como um choque externo que deixa a descoberto debilidades que a bonança financeira escondia como produz novas debilidades pelo congelamento de outras tantas atividades perfeitamente viáveis em condições normais. A recessão desencadeada pela pandemia, na medida em que deixa as empresas vulneráveis seja a falta de demanda seja ao desarranjo global das cadeias produtivas, podem rapidamente disparar uma cascata de insolvência, resultando numa crise da dívida corporativa, como abordada em matéria do Financial Times. Também as famílias, com a redução da renda e a perda de empregos, poderão se ver incapazes de servir as dívidas que acumularam, o que aumentará o stress sobre o sistema bancário. E tomemos o caso da Itália, que por uma cruel ironia é na zona do Euro tanto o país mais afetado pela COVID-19 como também o com o maior volume de dívida soberana – com um economia já em estagnação antes da epidemia, e sem autonomia monetária para lidar com a recessão. O Banco Central Europeu muito provavelmente terá que enfrentar a decisão entre salvar a Itália de uma crise da dívida soberana ou arriscar uma ameaça existencial à zona do Euro.
Em artigo para a Tribune Magazine, Jerome Ross se coloca a pergunta: “o que acontece quando se força um desligamento de quase toda a atividade produtiva e comercial em uma economia global já prejudicada por anos de crescimento anêmico e níveis recordes de endividamento?” Podemos estar prestes a descobrir. Tudo indica que não é possível evitar a recessão global. De certo modo, ela já está aqui. Segundo o secretário-geral da OCDE, Angel Gurria, a pandemia, “o maior choque econômico, financeiro e social do século XXI”, foi o gatilho para uma “grande crise econômica que pesará sobre nossas sociedades por anos”. Para Gurria, por mais necessários que sejam as medidas para conter a disseminação do vírus, elas empurram as economias nacionais para um “congelamento profundo” sem precedentes.
O Los Angeles Time resumiu o dilema com a dura chamada: “O coronavírus representa uma escolha terrível para os líderes globais: destrua sua economia ou perca milhões de vidas”. Os efeitos já se fazem sentir. O secretário do tesouro, Steven Mnuchin, chegou a falar de desemprego na casa dos 20%. A Goldman Sachs projeta uma queda do PIB de 24% no PIB dos Estados Unido, a maior economia capitalista do planeta, para o segundo trimestre (um declínio mais de duas vezes maior do que o pior já registrado). A previsão era então de que mais de 2 milhões de estadunidenses perderiam o emprego nas próximas semanas. A realidade, no entanto, já é muito pior. Em uma semana, os dados oficiais do próprio Departamento do Trabalho confirma que 3,3 milhões de trabalhadores deram entrada em pedido de seguro desemprego – não apenas o número recorde desde que se tem registro, como mais 4 vezes pior que o recorde anterior (650 mil, em 1982). E essa semana catastrófica foi seguida por uma ainda pior: hoje (2 de abril) o Departamento do Trabalho informou que um número adicional de 6,6 milhões de trabalhadores entraram com pedido de seguro desemprego na última semana – um número de duas a três vezes maior do que esperavam os analistas, e um crescimento súbito de 3000% com relação às semanas anteriores. William Rodgers, antigo economista chefe do Departamento de Trabalho, calcula que o desemprego pulou, em apenas duas semanas, de 3,5% a 17%, enquanto a Reserva Federal de St Louis estima que o desemprego pode atingir um pico de 32%, com 47 milhões de trabalhadores demitidos. No Brasil a Goldman Sachs prevê uma retração de 3,4% no PIB, e alerta para uma recessão na América Latina pior que a da crise da dívida da década de 80.
É um cenário que Mark Zadin, economista chefe da Moody´s Analytics, já chamava de um “tsunami econômico”. Distanciamento social implica distanciamento econômico – um congelamento temporário de boa parte das atividades humanas produtivas (seja nas fábricas, seja nos comércios e serviços). O confinamento em massa diminui bruscamente a demanda por bens e serviços, e interrompe a oferta de trabalho. O medo crescente na comunidade empresarial é que, para desacelerar a pandemia, se esteja provocando uma depressão econômica.
Se o artigo do Imperial College levou a uma mudança inicial no discurso dos governantes que estavam minimizando a crise da saúde causada pelo sars-cov2, levando a adoção de medidas de quarentena e confinamento mais alinhadas com a estratégia de supressão – foi o próprio Trump que então disse: “tudo mais voltará, as vidas não voltarão” – as consequências do distanciamento econômico em pouco tempo mudou o tom do discurso no andar de cima. O editorial do Wall Street Journal de 19 de março é sintomático dessa reorientação: “Repensando o shutdown do coronavírus – Nenhuma sociedade pode proteger a saúde pública por muito tempo à custa de sua saúde econômica”. O editorial argumenta que os governos precisam começar a ajustar imediatamente a estratégia de combate ao vírus, caso contrário o resultado será uma recessão econômica muito pior que a de 2008 e uma enxurrada de inadimplência e falências.
Foi isso que moveu Trump de gritar “DISTANCIAMENTO SOCIAL” (assim mesmo, em caixa alta) no twitter em 14 de março, a insistir em tuítes, a partir de 24 de março, que “A CURA NÃO PODE SER PIOR QUE A DOENÇA” (também em caixa alta, por sinal), e que as pessoas devem voltar ao trabalho, sugerindo o relaxamento das medidas de distanciamento social. Isso vem junto com uma onda de apelos patrióticos de influenciadores de direita para que os mais velhos se sacrifiquem para manter a economia de pé – o legado que deixariam para as próximas gerações. Por fim, Trump, sensibilizado com o caso de um amigo que havia entrado em coma com covid19, voltou atrás novamente e anunciou a extensão das medidas de distanciamento por todo o mês de abril.
Foram alguns dias de tensão com vários governadores, especialmente dos estados mais afetados, que expressaram de público o desacordo com Trump, na defesa de medidas mais restritivas de contenção. Andrew Cuomo, governador de Nova York, se expressou no twitter em termos que mais lembram falas de militantes anticapitalista: “Minha mãe não é dispensável. Sua mãe não é descartável. Não colocaremos um preço em dólar na vida humana. […] Ninguém deveria estar propondo darwinismo social em favor da bolsa de valores”. Cuomo, claro, não é nenhum socialista: como a direção do Partido Democrata, é historicamente favorável aos cortes nos serviços sociais, que continua aplicando apesar da epidemia. Retoricamente, no entanto, procurou se distanciar do “Partido da Morte” (expressão que Peter Fraser cunhou para se referir às alas mais descaradamente extreministas do populismo de direita).
Em princípio, é evidente que Cuomo está certo: não deveríamos ter que sacrificar ninguém, muito menos nossos avós, no altar da finanças – vidas não têm preço. Contudo essa boa ética se esborracha no implacável muro da realidade capitalista e sua dinâmica de acumulação insaciável, que se alimenta exatamente da vida humana. O paradoxo é que a vida humana depende desse mesmo circuito de acumulação para se reproduzir. As saúde das pessoas depende, de fato, da saúde da economia capitalista. Em condições capitalistas, sem lucros não há trabalho, sem trabalho não há dinheiro, e sem dinheiro se está condenado à miséria e à humilhação – ao sofrimento físico e psíquico. É assim porque, no capitalismo, a reprodução da vida passa pela circulação das mercadorias. Mas não precisa ser assim.
Se o distanciamento social, para combater a epidemia, implica por um lado em “distanciamento econômico”, por outro requer segurança econômica. E a razão é muito simples: as pessoas não obedecerão uma quarentena que as ameace matar de fome. Sem condições materiais para o isolamento social, não há isolamento social possível. Confinamento em massa sem uma rede pública de proteção social e abastecimento é cruel e, em última instância, inviável. E, no entanto, o confinamento em massa continua sendo a única forma que conhecemos de impedir que a explosão exponencial da curva dos afetados pelo novo coronavírus arrebente com a capacidade dos hospitais e produza uma avalanche de mortes trágicas e perfeitamente evitáveis (entre as vítimas do vírus, mas também de muitos outros que precisarão de acesso a UTI, ou outros serviços hospitalares, nesse período).
Trata-se, portanto, de um problema que desafia qualquer resposta fácil. O confinamento em massa, mesmo que não seja uma solução definitiva, nos ganhará um tempo valiosíssimo para compreender melhor o vírus, avaliar quais são os tratamentos mais eficazes, preparar nossos sistemas de saúde para a demanda crescente (inclusive implementando a reconversão industrial para produzir mais respiradores, máscaras, e material hospitalar em geral). Ganhar esse tempo é vital para nos deixar em melhor posição para enfrentar um segundo pico, quando as medidas de distanciamento forem relaxadas; ou, uma vez que o surto esteja sob controle, utilizar as políticas dos países do sudeste asiático que envolvem testagem em larga escala e rastreamento das cadeias de transmissão do vírus, tornando possível uma abordagem mais inteligente, e menos economicamente disruptiva, de contenção do contágio.
O que não se pode ignorar é que, em condições capitalistas, os custos econômicos da estratégia de supressão são de fato altos – e não apenas para os capitalistas, mas fundamentalmente para os trabalhadores que, deixados à própria sorte, estão em situação material de mais insegurança e vulnerabilidade. Frente ao dilema de escolher entre vida humana e economia, temos não apenas que deixar explícita que uma não existe sem a outra (uma catástrofe humanitária tem consequências econômicas e vice-versa), mas sobretudo recusar a escolha infernal, e reconhecer que o que o momento exige é a supressão da lógica capitalista – parcialmente e temporariamente, pelo menos.
Talvez a porção mais reveladora do editorial do Wall Street Journal mencionado antes é quando trata de explicar porque a solução chinesa não é viável para os Estados Unidos:
“Alguns meios de comunicação que não entendem o mundo dos negócios nos Estados Unidos dizem que a China conseguiu administrar um choque comparável à sua economia e agora está começando a sair do outro lado. Por que os EUA não podem fazer a mesma coisa? O que isso ignora é que o Estado chinês detém uma participação enorme nessa economia e optou por absorver as perdas. Nos EUA essas perdas serão arcadas por proprietários privados e pelos trabalhadores que dependem de uma economia privada funcional.”
A China, paralisando sua economia, conseguiu conter a disseminação da doença e poupar vidas – lá o número de mortos ficou em um patamar já bem menor do que em países muito mais ricos, e que tiveram mais tempo para se preparar, como Itália e Espanha. A lição a ser retirada é que, como afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, é possível realmente evitar a epidemia, “mas apenas com uma abordagem coletiva, coordenada e abrangente que envolve todo o mecanismo do governo”. Isso é, com algo análogo a um esforço de guerra.
Um esforço de antiguerra
A metáfora da guerra tem sido mobilizada, e não de hoje, por grupos de poder assentados na máquina estatal para inflar a própria legitimidade sob a narrativa de um inimigo comum excepcional, esperando assim que se crie um ambiente no qual a cidadania esteja mais disposta a tolerar (ou mesmo deseje ativamente) medidas autoritárias e a degradação dos espaços públicos democráticos. A imagem da guerra, contudo, tem também sido invocada, em desabafos assustadoramente gráficos, por médicos e demais trabalhadores da saúde que se expõem na linha da frente na batalha contra a pandemia.
As UTI´s se convertem em trincheiras, os enfermeiros na infantaria, os hospitais lotados são campos de batalha onde se corre contra o tempo, enquanto o inimigo não cessa de provocar baixas – o cenário é de desespero, devastação e terra arrasada. Como em uma guerra, os soldados precisam de mais recursos, muitas vezes escassos: mais camas, mais máscaras, mais respiradores. Sofrem de exaustão, de estafa física e mental, se traumatizam com a frequência com a qual precisam testemunhar sofrimento e morte. É preciso apoiá-los e armá-los de instrumentos adequados para lidar com a ameaça. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, abriu seu pronunciamento na reunião do G20, dia 26 de março, afirmando: “estamos em guerra com um vírus – e não estamos ganhando”. O apelo é que para uma ameaça da magnitude de uma guerra se possa montar um plano de “tempo de guerra”, um esforço concertado em larga escala a partir de uma estratégia comum.
Os paralelos são reais o bastante, assim como as desanalogias. Talvez o principal paralelo é que nas guerras totais (como foram a primeira e a segunda guerra mundial) mesmo as sociedades capitalistas se vêem obrigadas a suspender certas lógicas econômicas: a competição é suavizada pela necessidade de solidariedade social interna, a anarquia do mercado é substituída pelo foco no planejamento, os interesses particulares submetidos a um único interesse geral – uma tarefa a ser cumprida, custe o que custar: vencer a guerra. A guerra exige, precisamente, um “uma abordagem coletiva coordenada e abrangente que envolva todo o mecanismo do governo”, nas palavras do diretor chefe da Organização Mundial da Saúde Tedros Ghebreyesus.
Em tempos de guerra, para atingir o interesse geral qualquer limite orçamentário é solenemente ignorado – como dizia Keynes durante a segunda guerra mundial: gastar sem limites, até cumprir a tarefa. O enfrentamento à epidemia exige não apenas investimentos públicos massivos no sistema de saúde – tudo que for necessário para “cumprir a tarefa” – mas exige também um mecanismo típico de economia de guerra: a reconversão industrial, como vem insistindo no Brasil a economista Mônica de Bolle. Da mesma maneira que fábricas de eletrodoméstico passavam a produzir tanques e bombas, faz-se necessário agora que plantas indústrias privadas sejam requisitadas a produzir respiradores (uma arma de enfrentamento crucial para os casos graves, cuja escassez já se faz sentir no mercado mundial), assim como equipamentos de proteção individual para os trabalhadores da saúde, cuja demanda mundial crescente tem levado países a confrontos comerciais abertos e mesmo à suspensão de exportações. Essa é uma medida que governos do mundo todo, mesmo aqueles dirigidos pela direita dita liberal (como o do Reino Unido), já estão aplicando.
O blog oficial do Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou um artigo intitulado “Políticas econômicas para a guerra COVID-19” que abre com a afirmação: “a pandemia do COVID-19 é uma crise como nenhuma outra. Parece uma guerra, e de muitas maneiras é. Pessoas estão morrendo. Profissionais médicos estão na linha de frente. Aqueles em serviços essenciais, distribuição de alimentos, entrega e serviços públicos trabalham horas extras para apoiar o esforço”. Os autores ressaltam que a principal característica compartilhada entre a crise da pandemia com uma guerra é a exigência de “um aumento do papel do setor público”. Esse aumento, o argumento continua, pode envolver “ações intrusivas do governo [no mercado] para fornecer suprimentos essenciais por meio do recurso a poderes de guerra, com priorização de contratos públicos para insumos e bens finais críticos, e reconversão de indústrias ou nacionalizações seletivas”.
Por um outro lado, se na escala da ação coordenada exigida – e na exigência de uma racionalidade pública acima dos interesses mercantis privados – trata-se de um esforço coletivo análogo a de tempos de guerra, no conteúdo trata-se justamente do oposto. Aqui não há nenhum exército inimigo a ser liquidado, nenhuma fronteira a ser defendida: é uma luta pela vida, que, a princípio, diz respeito a toda a humanidade, e que mais bem deveria reforçar nossa capacidade de colaboração internacional e solidariedade entre todos os povos – é um problema de “saúde global”, que requer uma abordagem global integrada.
Crucialmente, como bem chamou atenção James Medway em artigo para a Tribune Magazine, “A economia de antiguerra”, trata-se também do oposto de uma economia de guerra. É o mesmo ponto que o economista Adam Tooze levantou em entrevista para a Vox: “Pensar no que precisamos como uma espécie de mobilização em tempo de guerra me parece errar completamente. Essa é uma tarefa muito mais peculiar. A tarefa é manter a economia respirando por aparelhos durante um período de coma induzido artificialmente enquanto abordamos o desafio da saúde pública”.
Enquanto tempos de guerra exigem mobilização total de uma economia operando em plena capacidade, com todos os recursos humanos e materiais empregados, o que precisamos agora é o contrário: desmobilizar amplos setores da economia, colocá-los como em hibernação, em modo de espera, para garantir o distanciamento físico. Trata-se, portanto, de um “decrescimento” emergencial forçado – ou seja, o que precisamos é, conscientemente, elevar a capacidade ociosa das empresas e garantir que os trabalhadores possam ter condições de reproduzir suas vidas por certo tempo sem precisarem oferecer sua mão de obra ao processo produtivo. Trata-se de uma disrupção gigantesca no mercado de trabalho, seja formal ou informal, que só poderá ser bem sucedida com uma adequada intervenção planejada governamental.
Para permitir que o auto-isolamento funcione, é preciso garantir dinheiro na mão das pessoas, ou abastecimento material direto, e o funcionamento contínuo dos serviços essenciais. Daí a absoluta urgência de uma renda mínima universal e de medidas como suspensão de todos os despejos, congelamento dos aluguéis, suspensão de qualquer corte nos suprimentos de água e energia. São essas medidas de segurança econômica que tornam o distanciamento social, na escala necessária, viável para a massa das pessoas trabalhadoras, e que fariam, portanto, da quarentena não um privilégio dos que podem, mas em um direito para todos. E é apenas como um direito para todos que ela pode ser bem sucedida em suas ambições sanitárias. Os gastos prioritários agora não seriam para “estimular” a economia, a finalidade padrão dos pacotes fiscais em tempos de crise – nós não queremos aquecê-la, queremos congelá-la. Um estímulo fiscal para reaquecer a economia será absolutamente crucial em um segundo momento, quando vencida a emergência sanitária é necessário reaquecer a economia, mas o fundamental da economia de anti-guerra é permitir que o trabalhador possa viver sem precisar ir trabalhar.
A imagem de um esforço de “antiguerra” é duplamente útil. Primeiro, identifica o elemento de verdade da metáfora da guerra – há uma simetria na escala do esforço coordenado exigido, assim como na magnitude da mobilização dos poderes públicos, que implica em suspensão da lógica mercantil ordinária. Esse esforço coletivo, contudo, não está a serviço da destruição e da morte, como nas guerras, mas na proteção e promoção da vida – não na eliminação de um inimigo externo comum, mas na promoção da vida em comum.
A retórica ufanista e xenófoba, a paranóia em relação ao outro, o encerramento chauvinista no endurecimento das fronteiras, a reverência às autoridades centrais e a renúncia à democracia, tão características de tempos de guerra, são reações regressivas inúteis e deslocada; fundamentalmente contra-produtivo. Segundo, a mobilização dos poderes públicos não significa, como na guerra, mobilização em massa dos corpos, como acontece durante as guerras. Trata-se aqui do oposto: da necessidade de uma desmobilização massiva, racional e planejada.
A nova desordem mundial
É tragicamente irônico, embora talvez inevitável, que no momento mesmo em que se faz urgente uma resposta global coordenada para enfrentar uma crise de saúde global sem precedente, o palco internacional esteja tão flagrantemente desprovido de lideranças inspiradoras e os governos nacionais se mostram tão incapazes de ação articulada multilateral. A decadência do multilateralismo não é de hoje: a última década tem visto um ceticismo crescente em face às promessas de uma “aldeia global” típicas dos anos 90 – ninguém mais, nem mesmo os tecnocratas dos mecanismos internacionais, parece acreditar nelas.
A centro-direita pró-globalização foi atropelada, e em muitos lugares aposentada compulsoriamente, pela ascensão de uma direita populista cujo inimigo declarado é o “globalismo” (na definição famosa do chanceler Ernesto Araújo, “a globalização econômica pilotada pelo marxismo cultural”, seja lá o que isso queira dizer). Essa direita tem se aproveitado da pandemia para agitar sua bandeira favorita: o fechamento de fronteiras. E fechadas elas foram. Nenhum populista de direita desperdiçou a possibilidade de levantar algum muro, por mais inútil que fosse na contenção ao vírus (pense no governo brasileiro fechando a fronteira terrestre com o Paraguai, ou endurecendo ainda mais a relação com a Venezuela).
Em pouco tempo, quase toda a liberal União Européia estava com suas fronteiras internas trancadas. E não foi só a circulação de pessoas que foi interrompida no mercado comum, logo países como a Alemanha estavam pondo de lado as regras do livre comércio para sustar uma carga de máscaras vendidas para a sufocada Itália – a justificativa: nós vamos precisar por aqui. A chocante incapacidade de ação comum, e mesmo de solidariedade mínima, dos países da União Européia não é muito auspiciosa para o destino do bloco, cuja robustez será novamente testada para o recrudescimento das forças centrífugas intensificadas por uma nova recessão profunda, e pela ameaça insistente de uma outra rodada de crise da dívida. Trump, como era de se esperar, aproveitou a crise para inflamar a xenofobia da sua base: apelidou o sarc-cov2 de “vírus chinês”, a COVID-19 de “kung flu”, tem insistido que a crise demonstra a importância de ter fronteiras fortes e que é hora de rever a logística da cadeias globais de valor, trazendo de volta as plantas produtivas das empresas americanas para dentro do território.
Para Steve Bannon, estrategista infame da direita alternativa, trata-se de um “vírus comunista”. As tensões entre Eduardo Bolsonaro, nomeado por Bannon como embaixador latino-americano d´O Movimento, e a embaixada chinesa no Brasil devem ser vistas no contexto de uma orientação concertada da direita populista mundial para explorar a pandemia no sentido de alimentar o sentimento antichinês. Há uma questão mais profunda: a relação simbiótica entre China e Estados Unidos no contexto da globalização econômica se mostrou o eixo do arranjo “globalista” das últimas décadas. A ironia é que nenhuma nação se beneficiou tanto do período neoliberal quanto a chinesa, se aproveitando dos fluxos globais de capital e da expansão da circulação de mercadorias com as cadeias logísticas de produção que passaram a estruturar o comércio mundial. O “nacionalismo econômico” professado pela direita populista é uma reação a esse arranjo, e uma tentativa de implodi-lo.
Se em 2008 a ação concertada e decisiva de grandes players globais garantiu que a crise financeira não escalasse em uma contração descontrolada da economia mundial, nada na mesma escala se observa hoje, frente a uma crise que é objetivamente de escala maior. Nessa mais de uma década, o tabuleiro político foi profundamente alterado, com a emergência de vários atores (à direita e à esquerda) com inserção eleitoral considerável que são abertamente críticos aos arranjos multilaterais contemporâneos. Há menos entusiastas da ordem liberal global, e mais simpatias soberanistas.
Crucialmente, a capacidade concreta de construir consensos no cenário internacional foi drasticamente reduzida, e um dos sintomas disso é justamente a falta de uma resposta coordenada à pandemia: o problema é obviamente global, mas cada governo tem implementado a sua própria estratégia, independente do que os outros estão fazendo. Isso ficou especialmente óbvio no enfrentamento sanitário à própria pandemia. Ao invés de uma resposta unificada sob orientação da OMS, cada governo respondeu, alguns de maneira notoriamente improvisada e vacilante, a sua própria maneira: alguns optam por conter, outros por mitigar, outros por suprimir, e muitos sequer conseguem se ater a uma única estratégia de longo prazo, ziguezagueando erraticamente ao sabor dos eventos e dos ânimos da opinião pública.
O resultado são estratégias desencontradas e contraditórias que tornaram um retorno a relações normais entre mais países mais demorado – como, por exemplo, um país que resolveu conter a epidemia deve ser comportar frente a um que optou por apenas mitigar, fechando suas fronteiras indefinidamente? É um fator a mais reforçando as tendências de desglobalização. Não é difícil concluir que a mesma postura ad hoc marcará as respostas econômicas, e que um crescimento do protecionismo é um desfecho provável à medida que cada país, imerso em (e sobrecarregado por) seus próprios problemas, tentará abocanhar para suas economias domésticas o máximo de estímulo dos imensos pacotes fiscais que estão pondo em prática.
A desordem global também se expressa nas crescentes tensões comerciais, e desconfianças políticas, conforme os Estados vão adotando a lógica do “cada um por si” no enfrentamento a pandemia. Os Estados Unidos têm se mostrado particularmente agressivos, pouco solidários, na guerra comercial por equipamentos de proteção, pagando mais caro para arrematar remessas destinadas a outros países, como a França e o Brasil. Alemanha, França, Rússia e Turquia estão já impondo limites a exportação de materiais médicos. Temendo talvez o pior cenário, de desabastecimento interno, alguns países começa a fazer o mesmo com alimentos. No curto prazo, os limites às exportações e a disputa por suprimentos médicos levará a desconfiança generalizada, ao ressentimento político, podendo escalar em uma espiral de retaliações e no recrudescimento do protecionismo. Ao longo prazo, pode levar a um pessimismo disseminado frente a globalização e ao modelo de cadeias globais de produção, e a reinvenção de políticas de auto-suficiência que coloquem a soberania alimentar e uma indústria médica doméstica como questões de segurança nacional.
Também não é difícil prever que a crise econômica, aliada ao pânico epidêmico, dará novo impulso ao “iliberalismo político”, aprofundando a tendência já em marcha desde a última crise global de corrosão interna das democracias liberais de tipo ocidental, que alguns analistas vinham apontando como uma “recessão democrática”. O famoso escritor e historiador israelense Yuval Harari chamou de “a primeira ditadura do coronavírus” o fechamento do parlamento de Israel, e a suspensão das cortes de justiça, por iniciativa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu (derrotado nas recentes eleições), que, alegando uma situação emergencial de combate a pandemia, tem governado autocraticamente por decretos. Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, conhecido por sua defesa explícita do “iliberalismo”, executou movimento semelhante, emplacando uma lei que permite a prolongação indefinida do estado de emergência e amplia os poderes do executivo.
A Hungria abandonou qualquer pretensão de manter as aparência, tornando-se uma ditadura em sentido estrito: sem parlamento funcionando, sem eleições, governo por decretos presidenciais e novas leis que penalizam com 5 anos de prisão quem disseminar “fake news” (é o próprio regime húngaro que determinará, claro, o que é fake news). Em seu último ato, o parlamento aprovou essas medidas excepcionais por tempo indeterminado. Orbán tem admiradores declarados, em entusiastas, na nova direita populista por todo o mundo, seja na Casa Branca seja em Brasília. Matteo Salvini, líder do partido Liga na Itália, aplaudiu Orban no twitter.
Como observou Paolo Gerbaudo em seu artigo “O coronavírus constrangeu Trump e Bolsonaro – Mas a direita global vai atacar de volta”, a pandemia coloca a direita populista em posição embaraçosa. A gravidade da situação parece exigir um nível de seriedade com o qual os líderes populistas, que cresceram em popularidade abraçando o papel de palhaço, não se sentem a vontade. O impulso inicial foi o negacionismo, a minimização da crise sanitária, a denúncia aos especialistas alarmistas. Ao contrário do aquecimento global, contudo, essa é uma emergência que logo se faz sentir. O negacionismo rapidamente deixa de ser uma resposta viável. Por outro lado, os movimentos populistas de direita se alimentam de um senso comum anti-intelectual, que também se mostra na prática explicitamente inadequado para esse tipo de crise, onde a ciência volta a ganhar um papel de destaque e os especialistas uma renovada autoridade.
O populismo reacionário não consegue explorar o medo do vírus da mesma maneira que ficou capaz de explorar outros medos (notoriamente, o medo dos imigrantes). Não a toa, a tática de Viktor Orban, por exemplo, foi desde o começo associar as duas “ameaças”, e colocá-las na conta de um cosmpolitanismo liberal globalista: “Estamos travando uma guerra de duas frentes: uma frente são os imigrantes e a outra é o coronavírus. Existe uma conexão lógica entre os dois, pois ambos se espalham com o livre movimento”. A desorientação pode se mostrar momentânea, e a tendência é que essa direita se reorganize em moldes ainda mais autoritários para aproveitar a crise.
O caminho, ao que tudo indica, será aquele já apontado pela Hungria e por Israel: reforço ao nacionalismo, retórica xenófoba de fechamento de fronteiras, enfraquecimento das instituições multilaterais, e fortalecimento autoritário dos executivos nacionais, com o enfraquecimento dos mecanismos de controle democrático e escrutínio público. Esse é um antigo truque que os neoliberais souberam explorar com primazia desde a década de 70: utilizar o sentimento de confusão e de urgência que acompanham os desastres (naturais ou sociais) para fortalecer as elites dominantes, concentrar riqueza e poder, e destruir as organizações da classe trabalhadora e suas conquistas institucionais.
Capitalismo de desastre ou socialismo democrático
Em seu livro de 2007, “Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre”, a jornalista e militante Naomi Klein chama atenção para a frase de Milton Friedman que aparece no prefácio de 1982 do best-seller neoliberal “Capitalismo e Liberdade”: “Somente uma crise – real ou percebida – produz mudanças reais. Quando essa crise ocorre, as ações tomadas dependem das idéias que estão circulando por aí”.
Friedman começa o prefácio apontando para a mudança corrente no clima intelectual de então, e recorda que na época do pós-guerra aqueles que lutavam contra o triunfo do Estado de Bem-estar social e das ideias keynesianas eram uma minoria, ridicularizada e tida por excêntrica. Não mais. A sólida vitória de Ronald Reagan em 1980, com o mesmo programa de Barry Goldwater (o candidato Republicano derrotado pelo Democrata Lyndon Johnson em 1964), era visto por Friedman um sinal de que os tempos estavam de fato mudando.
Nas últimas cinco décadas, os neoliberais se provaram virtuosos na habilidade de utilizar choques – naturais, criados ou percebidos – para avançar sua agenda. Uma crise após a outra foi explorada para concentrar riqueza e poder. A resposta, a começar pela crise política do Chile com a deposição do governo socialista democrático de Salvador Allende, tem sido sempre a mesma: desdemocratizar o Estado, destruir os serviços públicos, privatizar o bem comum, desregulamentar as finanças, reduzir as proteções trabalhistas, encolher a rede de proteção social, degradar a capacidade de ação coletiva social seja pela sabotagem ao planejamento público seja pelo ataque às organizações da classe trabalhadora e sua capacidade de barganha coletiva. Mais dinheiro para os de cima, menos direitos para os de baixo. É esse receituário que resume as “reformas estruturantes” e as políticas de choque neoliberal. Essas ideias têm circulado por aí, vitoriosas, aparentemente invencíveis, por tempo demais. Foram elas que orientaram os planos de salvamento dos bancos, e as políticas de austeridade subsequentes, centrais na resposta da maior parte dos governos à crise de 2008.
Quando o Partido Republicano dos Estados Unidos se apressou a apresentar cortes nos impostos dos mais ricos para combater o coronavírus, ou quando Paulo Guedes não se envergonhou em afirmar que “a vacina para o coronavírus é avançarmos na reformas”, é a esses cacoetes ideológicos que estão instintivamente retornando.
Durante os últimos anos, no entanto, um outro conjunto de ideias começou a circular – as ideias do socialismo democrático. Renda básica universal, nacionalização sob controle democrático de amplos setores da economia, expansão do sistema de saúde público, reversão dos cortes nos serviços sociais, perdão das dívidas (em especial médica e estudantil) das famílias, controle de aluguel, segurança alimentar, fim do trabalho precarizado e retorno da negociação coletiva, e, crucialmente, abandono das políticas de austeridade em favor do aumento dos investimentos públicos para criar empregos sindicalizados, reverter a crise ambiental e ampliar a oferta de bens comuns. Parte dessa agenda é um retorno a um programa algo clássico keynesiano da social-democracia tradicional; parte é uma aposta no futuro, animada por uma aguda consciência ecológica e o desejo de democratização massiva, radical, da economia e da política.
Agora essas ideias começam a influenciar as agendas dos governos, mesmo onde foram derrotadas eleitoralmente. A fatia mais suculenta do pacote trilionário assinado por Trump vai para as grandes corporações de sempre (500 bilhões), essa é a velha história. Mas 300 bilhões serão para transferência direta em dinheiro para as famílias, a maior parte dos adultos recebendo 1,200 dólares cada (e mais 500 por criança). Bernie Sanders ameaçou votar contra o salvamento das empresas se o pacote não incluísse também uma expansão dos benefícios aos desempregados (incluindo os trabalhadores em tempo parcial e os trabalhadores “uberizados”), e conseguiu o que queria: trata-se da maior expansão do seguro desemprego em toda a história dos Estados Unidos (250 milhões ao todo no pacote). Os democratas no senado agora apoiam a proposta de cancelar toda a dívida estudantil. E foi o próprio Trump foi quem ordenou a suspensão de todos os despejos e execuções de dívidas hipotecárias.
Estados Unidos e Reino Unido falam abertamente em ativar uma “economia de guerra”, exigindo das firmas privadas a reconversão industrial imediata. Trump usou o twitter para demandar, invocando o Industrial Defense Act, que a General Motors e a Ford comecem a fabricar respiradores (inclusive, reabrindo plantas industriais abandonadas para isso).
No Reino Unido, o jornal liberal The Economist publica editorial com o título: “O Vírus Significa que o Estado Grande Está de Volta” – em tom de aprovação:
“Companhias aéreas e companhias de trem podem ser nacionalizadas, disse Grant Shapps, secretário dos transportes. Montadoras, obrigadas há 80 anos [durante a Segunda Guerra Mundial] a montar Spitfires [aviões de guerra], foram requisitadas a fabricar respiradores. Os proprietários não podem despejar inquilinos durante a crise. A própria ideia de governo está sendo reabilitada. O esforço para reduzir o tamanho do Estado nasceu da crença de que o mercado é capaz de tomar decisões de maneira mais eficiente. As pandemias desafiam essa crença.” “Um novo consenso”, o editorial cita as palavras de um historiador entrevistado, “está nascendo”.
Um colunista do britânico Spectator relata que um dos ministros de Boris Johnson o confidenciou que o governo “por um bom ano ou talvez mais vai parecer bastante socialista” – e que se verão obrigados a implementar “a maior parte do programa de Jeremy Corbyn” (o líder trabalhista, tido como um esquerdista radical, que perdeu para Johnson nas eleições gerais do final do ano passado). Corbyn defendia, inspirado por autores da Teoria Monetária Moderna (MMT), que, assim como os bancos centrais irrigavam com liquidez as grandes instituições financeiras com a política monetária frouxo que ganhou o nome de “flexibilização quantitativa” (quantitative easing – QE), os governos poderiam usar o mesmo mecanismo monetário para ampliar o investimento público e reverter os efeitos sociais deletérios da austeridade – um “flexibilização quantitativa do povo”. Agora é, Jim O’Neill, um político conservador e antigo economista-chefe da Goldman Sachs (que chegou a participar do gabinete ministerial do governo Tory David Cameron), tem usado o mesmo nome de Corbyn – “QE do povo” – para uma proposta de transferência direta de dinheiro que permita às pessoas pagar as contas durante a crise.
Na França, o discurso de Macron é de quem quer ao menos aparentar que está renegando o credo neoliberal: “O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado-de Bem-Estar social (État-providence) não são custos ou encargos mas bens preciosos, vantagens indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado”. Concluí que decisões de ruptura serão necessárias nessa direção – e que ele as assumirá. Enquanto isso, o ministro das finanças, afirma que o governo está preparado para usar todos os meios possíveis para salvar as grandes empresas da crise econômica – inclusive nacionalizá-las.
O governo na Dinamarca partiu na frente fechando, já no começo do mês de março, um acordo com as empresas domésticas para que não demitam seus funcionários – em troca, o Estado arcaria com até 75% dos salários (outros países estão começando a seguir esquemas semelhantes). A Espanha, também duramente atingida pela epidemia, nacionalizou parte da rede hospitalar privada, e requisitou estabelecimentos farmacêuticos para uso público. Com um governo composto também pelo Podemos, uma formação populista de esquerda construída em torno de uma agenda antiausteridade após as ocupações de praças, tem respondido à crise como uma proposta de “escudo social”: moratória ao pagamento de hipotecas, proibição de corte dos serviços essenciais (água, luz, gás), benefícios para os trabalhadores autônomos e informais, e, mais recente, a proibição de demissões durante a crise sanitária.
Ao anunciar as novas medidas, Pablo Iglesias (fundador e líder do Podemos, mas falando agora na posição de vice-presidente espanhol), frisou que “é preciso aprender com os erros de 2008, e garantir que dessa vez sim as pessoas tenham a máxima segurança para enfrentar a crise”, e que a resposta à crise marca um ponto de inflexão histórico na política econômica da Espanha e da Europa: a rejeição dos dogmas da austeridade. A Itália, no momento o país mais afetado no mundo, proibiu demissões, suspendeu a cobrança de aluguel, de dívida hipotecárias e das contas de luz e água. Além de renacionalizar a companhia aérea Alitalia. Até a União Européia, uma das instituições globais mais entusiastas na imposição da austeridade, dessa vez, ao contrário da última crise, decidiu suspender temporariamente suas regras fiscais.
Se por um lado está claro que a gravidade objetiva da crise – tanto em seu aspecto sanitário quanto econômico – forçou ao abandono dos dogmas mercadológicos mais vulgares, afinal não há mesmo “libertários” em meio a uma pandemia, não faltará quem nos levante o saudável alerta de que a crise financeira de 2008 parecia também ter deslegitimado e desmoralizado o neoliberalismo, que, no entanto, volta como uma vingança nas brutais políticas de austeridade após um breve interregno de “keynesianismo de desastre”. Mas e se o neoliberalismo realmente foi de fato deslegitimado pela última crise, e a instabilidade e desordem que marcaram tanto o cenário internacional quanto os mapas eleitorais domésticos nos últimos anos forem sintomas mórbidos de uma época moribunda – que, como um zumbi, continua em pé mesmo depois de morta?
Os terremotos políticos seria portanto uma expressão superficial de um movimento mais profundo (e de longa duração) das massas para longe de suas fidelidades políticas tradicionais, sem que um novo arranjo consensuado tenha sido capaz de emergir das ruínas do antigo regime. Um segundo choque nessa escala, que será formativo para uma nova geração da classe trabalhadora que nunca tendo experimentado o otimismo liberal dos longos anos 90 só conhece uma realidade econômica marcada pela crise, estagnação e mercados disfuncionais. Se a crise não apenas exigirá medidas econômicas excepcionais por parte do governo, mas um longo período de turbulência e condições anormais, talvez estejamos lidando aqui – uma outra analogia com tempos de guerra pode ser levantada – com um evento histórico que definirá o início de um novo período.
Essa geração talvez esteja em situação semelhante a que Keynes descrevia em um artigo alguns anos após a crise de 29 (“Auto-suficiência nacional”): “O decadente capitalismo internacional (mas individualista), nas mãos do qual nos encontramos, não é um sucesso. Não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é virtuoso – e não entrega os bens. Em resumo, não gostamos dele e estamos começando a desprezá-lo. Mas quando nos perguntamos o que colocar em seu lugar, ficamos extremamente perplexos”.
Keynes chamava atenção para a dificuldade de se desembaraçar dos hábitos mentais e valores característicos do liberalismo econômico do século XIX: a insistência de que o mundo inteiro fosse organizado com base no capitalismo competitivo privado, a sacrossanta liberdade global de circulação do capital, a generalização de uma racionalidade auto-destrutiva do cálculo financeiro. Uma vez que o paraíso prometido por esse capitalismo globalizado havia se mostrado um inferno (a primeira guerra mundial, a pandemia de influenza de 1918, a grande depressão de 1929) o mundo estava entrando em uma fase “experimental”, com diversos experiências nacionais distintas abandonando o laissez-faire, deixando para atrás de modo pragmático e vacilante, sob o peso da realidade, os velhos dogmas econômicos. “Ainda não sabemos qual será o resultado”, dizia Keynes em 1933. Foi apenas a segunda guerra que concluiu a passagem para uma outra forma de capitalismo.
Não é incomum que novas medidas, extraordinárias, sejam introduzidas originalmente em tempos de guerra, tornando-se em seguida permanentes. O imposto de renda, por exemplo, foi introduzido nos Estados Unidos durante a guerra civil, e acabou constitucionalizado em 1913 (no Reino Unido foi introduzido como medida extraordinária para financiar a guerra contra Napoleão). Os neoliberais invocam a frase de Milton Friedman – “nada é tão permanente como um programa governamental provisório” – para justificar o temor de que respostas emergenciais, de “tempo de guerra”, para lidar com a pandemia – como maior tributação, estatizações e novos programas sociais – podem acabar ficando de vez.
Como reconhece a The Economist: “colocar a economia em modo de esforço de guerra é, supostamente, temporário. Uma análise de 500 anos de poder governamental, no entanto, sugere outro resultado: é provável que o Estado desempenhe um papel muito diferente na economia – não apenas durante a crise, mas muito depois”. O artigo recorda que a segunda guerra mundial reforçou as demandas por sistemas de bem-estar social “do berço à cova”, e que o modelo social-democrata do pós-guerra seria inimaginável se não fosse pelo esforço de guerra anterior, no qual o Estado administrou vastas áreas da vida econômica. Há uma analogia válida para nossa situação: nosso esforço deve ser também o de normalizar e tornar permanente qualquer medida de ampliação de seguridade social, de amparo material às famílias trabalhadoras e de aumento da capacidade de intervenção e planejamento público.
O que a experiência histórica dos tempos de guerra mostram é que a percepção popular do que o Estado é capaz de fazer ser é ela mesma radicalmente alterada pela execução das medidas extraordinárias. A interrupção dos “negócios como de costume” pode provocar alterações permanentes na imaginação política, nas expectativas da população e nos parâmetros de normalidade que regulam o senso comum. Se a resposta padrão para as demandas socialistas democráticas era, até pouco tempo atrás, a de que “não há dinheiro para isso”, a desculpa se torna bem menos crível em tempos de pacotes fiscais e monetários que se contam em trilhões. Fica mais difícil argumentar que “o dinheiro acabou” quando os Estados são obrigados a gastar somas imensas para salvar a própria economia capitalista.
Não é mais possível esconder que a austeridade era de fato uma escolha política, não uma espécie de necessidade natural inelutável. Ao final da segunda guerra mundial, boa parte do eleitorado europeu começou a se fazer a questão: se uma abordagem mais intervencionista estava correta em tempos de guerra, por que não tentá-la em tempo de paz? Foi assim que nasceu, por exemplo, o NHS britânico (Serviço Nacional de Saúde) em 1945, quando os Trabalhistas derrotaram de forma surpreendente Winston Churchill logo após o fim da guerra. Aneurin Bevan, um trabalhador mineiro sindicalista e ministro da saúde que fez do NHS uma realidade o chamava de “um verdadeiro pedaço de socialismo”: universal, público, de alta qualidade e totalmente gratuito no ponto de uso.
Não faltará, claro, forças políticas para defender, depois que fase aguda da pandemia e da crise econômica passarem, que políticas de austeridade ainda mais draconianas terão que ser impostas para “pagar a conta” da excepcional intervenção econômica. O “keynesianismo de coronavirus” seria apenas uma fase passageira que deveria ser seguida por uma nova rodada de neoliberalismo tanto mais selvagem. Outros setores da classe dominante tentarão usar a própria crise para socializar os custos e privatizar os ganhos, e acentuar a já abissal concentração de riqueza e poder – em mais um episódio de capitalismo desastre. As versões mais mórbidas da direita plutocrática (hiper- e/ou pós-neoliberais) irão insistir na doutrina, tipicamente bolsonarista, que a economia não pode parar, mesmo que isso signifique o sacrifício de vidas humanas.
Para o Partido da Morte talvez haja até algum ganho em eliminar setores mais vulneráveis, e improdutivos, de uma população excedente frente às necessidades atuais de acumulação do capital. Uma parte da nova direita populista, no entanto, usará a crise para se afastar tanto das receitas neoliberais tradicionais em economia, quanto dos mecanismos democráticos do liberalismo político. Viktor Orban, virtual ditador da Hungria no momento, é quem parece estar mais avançado neste caminho – por enquanto, seu estilo tem admiradores em vários países.
Como argumenta Walden Bell em seu artigo “O coronavírus e a morte da conectividade”, “muitos partidos de extrema direita, anteriormente identificados com propostas econômicas neoliberais, seqüestraram oportunisticamente partes da crítica antiglobalização que havia sido desenvolvida pela esquerda anti-establishment, como demandas de proteção dos meios de subsistência dos trabalhadores e de reindustrialização, mas dando-lhes uma orientação racista ou antimigrante” – uma aposta numa versão nacionalista, e reacionária, de desglobalização. Um “(nacional)socialismo de quarentena em um só país” pode ser a resposta de uma parte da direita frente a uma situação aguda, sob o pano de fundo de uma crise de legitimidade crônica do neoliberalismo: fechamento de fronteiras, aumento do dirigismo e planejamento estatal na economia, investimento na auto-suficiência nacional (em detrimento à integração no comércio mundial), abandono da austeridade e endurecimento da vigilância e do autoritarismo. Uma espécie de neo-iliberalismo.
Uma pandemia é uma situação objetivamente contrarrevolucionária. Tende a impedir que os movimentos proletários usem sua principal vantagem – a numérica – para fechar ruas e parar a produção. A greve e o protesto de rua são duas das principais ferramentas no arsenal de luta dos movimentos populares. Em quarentena, no entanto, boa parte da produção já está parada – produzindo um cenário que lembra uma greve geral sem política, uma greve geral passiva.
Os trabalhadores se vêm obrigado a deixar de oferecer sua mão de obra ao processo processo produtivo, mas não por uma ação coletiva de classe, mas devido a uma emergência sanitária impessoal. Ocupar as ruas se torna mais difícil quando é preciso manter distanciamento físico (embora já se possa testemunhar a irrupção espontânea de motins seja protestando por mais distanciamento social, seja em respostas aos efeitos do distanciamento social). Por fim, os Estados usam seus inflados poderes de exceção para vigiar as oposições, suprimir o dissenso e punir exemplarmente os “inimigos internos”. Nesse sentido, a semelhança com os períodos de guerra também é evidente.
Por outro lado, a guerra tem sido historicamente um poderoso fator de desestabilização de regimes políticos. Se em um primeiro momento a população tende a se alinhar com os governantes em uma unidade contra o inimigo comum, conforme os custos da guerra se fazem pesar sobre os cidadãos a legitimidade do poder político vai sendo progressivamente corroída. A maioria dos governos do mundo tem experimentado, pelo menos até agora, um aumento em popularidade, como costuma ocorrer em momentos de emergência nacional. No entanto, à medida que tempo vai passando é a magnitude da tragédia humana é absorvida, tendendo a se converter em uma espécie de trauma coletivo, é provável que cresça um ressentimento popular contra os poderes que foram incapazes de manter o “povo em segurança”. As elites estabelecidas podem ser culpabilizadas por terem agido pouco ou tarde demais, ou por não terem se preparado devidamente para uma ameaça que se anunciava há meses. Ou simplesmente por não terem conseguido manter a segurança material dos cidadãos conforme a crise econômica avança.
Eventualmente o pior momento da pandemia terá passado, e será a hora de reocupar as ruas. Pesquisas mostram que a política de rua tem ganhado em volume e intensidade na última década, no mundo todo – configurando já uma época de “protestos em massa”, só comparável ao final dos anos 60 e começo dos 70. Essa tendência foi abruptamente interrompida a medida em que porções cada vez maiores da humanidade passaram a entrar em lockdown. Devemos aproveitar esse período forçado de desmobilização para aumentar nosso nível de organização, nossa capacidade de ação coletiva, nossos vínculos de solidariedade. Afiar nosso potencial de formulação coletiva e intervenção estratégica. Ao isolamento social é bem possível que se possa seguir um novo momento de ascenso de massas e mobilização social de alta intensidade, que frustrará qualquer tentativa de retorno ao antigo normal. O desafio será então o de preservar a ampliação da capacidade de intervenção pública e de planejamento governamental, mas impondo uma radical democratização do aparato de governo.
Essencialmente, o que devemos aspirar é à construção de algo como um estado de antiguerra permanente – a substituição definitiva de uma lógica de acumulação por uma lógica de cuidado. Temos o que aprender com essa crise. Se a reconversão industrial se impõe agora como uma necessidade imediata para salvar vidas, será necessária também é uma escala ainda maior para enfrentar o aquecimento global, que exige a descarbonização da economia. Se a construção de hospitais de campanha e a injeção de recursos no sistema de saúde pública se tornam pauta do dia para evitar uma tragédia humanitária agora, temos que abandonar definitivamente o sub-financiamento e privatização dos serviços sociais, e garantir o tratamento médico como direito universal, oferecido por um sistema público robusto preparado para lidar com emergências e catástrofes. Se a exigência da quarentena em massa nos faz perceber como sociedade que não se pode deixar as pessoas materialmente desamparadas, é hora de reconhecer que o direito à vida envolve também um direito universal à segurança econômica, para além dos mecanismos de mercado.
Se precisamos de um estímulo fiscal massivo para reativar a economia depois de pô-la em coma no lockdown, esse investimento público deve ser direcionado a solução dos nossos problemas sociais anteriores à pandemia: a crise ambiental, a precarização do trabalho, o aumento da desigualdade. Se a contração econômica ameaça desencadear uma crise da dívida, talvez a melhor resposta seja o perdão da dívida para famílias (e países) em situação de aperto financeiro. E para as grandes empresas talvez faça mais sentido salvar os trabalhadores diretamente, socializando-as, do que salvar os proprietários e executivos.
A pandemia do novo coronavírus não será o fim do mundo, mas pode bem ser o fim de uma época. Suas consequências históricas permanecem em aberto, e dependerão da competência estratégica e capacidade organizacional dos atores coletivos em disputa. Se apenas uma crise, como diria Friedman, produz mudança real, essa pode ser a crise responsável por enterrar definitivamente o período neoliberal. Mesmo nesse caso, nada garante que o que virá depois seja melhor.
Um vírus não é capaz de fazer uma revolução: pode até destruir um velho mundo que já vinha em desagregação, mas não construir um mundo novo – essa é uma tarefa destinada apenas à ação coletiva e consciente de massas em movimento. Nesse interregno, parte de nosso trabalho será aquele que Milton Friedman, se estivermos dispostos a aprender algo de nossos inimigos, recomendou: “desenvolver alternativas às políticas existentes, manter essas ideias alternativas vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível se converta em politicamente inevitável”.
*Victor Marques é professor de filosofia na UFABC e prefaciador do livro “O velho está morrendo e o novo não pode nascer“
Análise ótima e muito precisa.