As reflexões do antropólogo Jean Tible, autor do livro Marx Selvagem, fazem parte de um conjunto de textos que a editora Autonomia Literária vai publicar nos próximos dias dos seus leitores, autores e colaboradores sobre auto-crítica e reorganização da esquerda
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A vitória, por uma expressiva votação, de um candidato que defendeu abertamente durante a campanha a perseguição, tortura, prisão, morte e exílio de opositores é trágica – para o Brasil e o mundo. Vincent Bevins, jornalista com experiência no Brasil e na Indonésia, chega a dizer que Bolsonaro é mais extremista em seu discurso e posições políticas que Duterte (!). Minha impressão ao ouvir seu discurso para correligionários no domingo anterior à votação é que se tratava de um Pinochet sem auto-censura, ébrio em seu próprio autoritarismo.
E tudo isso com legitimidade das urnas com uma margem confortável (55% contra 45% do Haddad). Obviamente não se tratou de uma disputa justa, já que o candidato favorito da população, Lula, foi tirado do pleito ao ser preso na sequência de um processo kafkiano. O Supremo Tribunal também chegou a censurar uma entrevista de Lula e a Justiça eleitoral ordenou à polícia a retirada de faixas contra o fascismo em várias universidades. E sem esquecer do jogo sujo da campanha vencedora e seu massivo disparo de fake news via whatsapp.
O primeiro desafio é compreender esse funesto acontecimento em suas várias camadas. Uma primeira é uma movimentação de traços de morte. Em 2007, num auge lulista, um filme entusiasmou – Tropa de Elite, com o personagem do capitão Nascimento e sua mano dura policial. O capitão da reserva Bolsonaro ativou esse fio repressivo (uma continuidade desde a fundação do Brasil) numa de suas únicas atividades públicas de campanha no segundo turno ao visitar o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) e afirmar que um deles chegaria à presidência. Terminou gritando “caveira!” ecoando a sinistra frase fascista espanhola Viva la muerte. Outra é a colcha de retalhos de discursos odiosos contra a corrupção (na verdade, contra o PT), galvanizados pela Operação Lava Jato (Sergio Moro é cotado para o Ministério da Justiça), ao qual se soma a oposição à “ideologia de gênero” e a defesa da bandeira “escola sem partido” na qual Paulo Freire é declarado inimigo a ser eliminado. Existe, ainda, uma rebeldia contra o sistema, dada a multiplicação de crises (política, econômica, social). Em 2014, 70% dos brasileiros queriam mudanças e ganhou a situação, pois o que o opositor Aécio Neves defendia não convenceu e Dilma se reelegeu. Dessa vez, um deputado com quase trinta anos de mandato conseguiu vestir o figurino anti-sistêmico.
A esquerda não soube aproveitar a brecha surgida nas bonitas manifestações de Junho de 2013. A Lava Jato sim, destruiu o sistema político e tentou acabar com o PT. O atentado contra Bolsonaro no início de setembro mostrou-se decisivo, por tirá-lo dos debates enquanto estava no hospital (nos primeiros sua performance tinha sido sofrível) e vitimizando-o (justamente ele que veste o figurino do carrasco). Ao se recuperar, recusou-se a participar dos debates do segundo turno e, dessa forma, puderam as polêmicas eleitorais permanecer no campo da batalha moral e daí conseguiu eleger-se um candidato cujas propostas radicalizam as ações (de austeridade, privatização e repressão) do governo Temer, que é extremamente impopular. O desemprego (que atinge 13 milhões de brasileiros) não foi tema.
Um fator importante nisso: o PT gastou a carta do medo na eleição anterior – a reeleição de Dilma trabalhou o temor da volta dos tucanos neoliberais e tomou posteriormente o rumo oposto. Isso custou caro ao PT e ao Brasil. Sua advertência dos perigos autoritários pouco repercutiu e Haddad tampouco conseguiu formar, no segundo turno, uma frente democrática: o terceiro mais votado, Ciro Gomes, preferiu descansar na Europa e os democratas de centro-direita mostraram que são de número extremamente reduzido. Ocorreu uma “normalização” do Bolsonaro; pra uns seria uma disputa entre dois extremos e para outros trata-se de aguardar a próxima eleição. Ironias: o jornal Folha de São Paulo recusou-se a carimbar o candidato como de extrema-direita é agora atacado violentamente por ele (por revelar o zapgate).
Talvez a imagem síntese da campanha petista seja o desabafo de Mano Brown no comício no Rio de Janeiro quatro dias antes da eleição, ao colocar que PT iria perder pois havia perdido o contato com a quebrada. E foi realmente essa faixa, que ascendeu ou melhorou de vida no período Lula que selou a vitória de Bolsonaro. Até a última semana antes do primeiro turno, ele possuía uma rejeição muito forte no andar de baixo. Daí ocorreu o momento decisivo da eleição, no qual se deu sua arrancada (por conta do apoio de alguns poderosos pastores evangélicos? Resultado da rede sórdida de fake news?). Candidatura inicialmente com apoio dos mais ricos (tinha um ano atrás 20% nos que ganham mais de 10 salários), tornou-se confiável para setores empresariais e do mercado a partir da aproximação com o franco-atirador do mercado financeiro Paulo Guedes que será seu super-ministro da economia. A candidatura conseguiu atingir as camadas mais populares nessa reta final e, se não fosse as mulheres pobres, teria ganho já no primeiro turno.
O que podemos esperar? Um governo (militarizado) de disciplina social, econômica e moral. Uma guerra aos pobres e aos dissidentes. Um macartismo nos setores da educação e cultura. Uma subordinação aos EUA (lembremos da geopolítica do golpe) e tensões na América do Sul (sobretudo no que toca à Venezuela). Os resultados serão desastrosos com o programa de austeridade e privatizações. A repressão será duríssima e movimentos sociais terão suas ações tratadas como terroristas. O Congresso, o Judiciário se subordinarão? E os demais setores da sociedade tais como a mídia?
Em um vídeo divulgado após a primeira rodada, o rapper Djonga declarou: “A mira tá na sua testa”, lembrando o famoso aviso final de Pier Paolo Pasolini, “estamos todos em perigo”. Os inúmeros ataques após a eleição (que incluem várias mortes) mostram que esta frase é mais válida do que nunca. Somos resilientes, mas sair desse abismo levará tempo e exigirá novas criações políticas e solidariedade de todos os cantos do planeta.