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Nove aprendizados da esquerda nas eleições de 2018

As reflexões do jornalista Joao Ricardo Bulhões fazem parte de um conjunto de textos que a editora Autonomia Literária vai publicar nos próximos dias dos seus leitores, autores e colaboradores sobre auto-crítica e reorganização da esquerda

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1) O JOGO É JOGADO NAS REDES SOCIAIS – A rua e a conversa cara a cara ainda são essenciais, mas o eixo da disputa de corações e mentes está hoje nas redes sociais. Precisamos, pra valer, investir recursos e energia nesse campo. Torná-lo prioridade. Formar youtubers, produzir memes em larga escala e com constância, criar e fortalecer redes de distribuição de material no WhatsApp, multiplicar páginas no Facebook e sites de internet, tudo pensado de forma interligada e amparado em um sistema consistente de banco de dados. A Nova Direita vem sendo vanguarda nisso há anos e acabam de colher seu grande fruto. Neste novo paradigma que vivemos, o centro do poder ideológico foi deslocado das mãos da Rede Globo, Folha de S. Paulo e demais oligopólios midiáticos para corporações estrangeiras que atendem pelo nome de Google e Facebook. A maioria de nós só se deu conta disso agora em outubro.

2) POLÍTICA AGORA É PERFORMANCE – A eleição de Trump já era um grande sinal dessa tendência, que acaba de se confirmar com a vitória de Bolsonaro. Na Era das Redes Sociais, que dispensa a mediação da imprensa tradicional, não é mais possível produzir candidatos competitivos que não sejam performáticos. Gente sisuda, comportada e adepta das formalidades da política virou presa fácil para adversários que xingam, cultivam polêmicas e provocam o establishment. Urge nos adaptarmos a essa realidade e concebermos lideranças políticas que se encaixem dentro desses marcos.

3) FAKE NEWS, UMA ARMA DE DESTRUIÇÃO EM MASSA – Quase 100 anos depois, o mantra de Goebbels voltou com força total: “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. A diferença é que, ao invés da rádio, são as redes sociais o espaço hoje em que essa técnica tem sido empregada largamente – sendo que até a ideologia fascista é a mesma. Para enfrentarmos a volta dessa nova arma de grande poder destrutivo, é inútil o apego à ideia utópica de “educar as pessoas para discernir a notícia falsa da verdadeira” ou propor medidas obsoletas/analógicas tais como o ingresso de ações na Justiça para se remover conteúdo. Sem algum tipo de regulação das redes sociais que permita uma ação ágil de remoção de conteúdo falso assim que ele começa a se proliferar, é praticamente impossível combater a rede de fake news que se formou para a candidatura do Bolsonaro. Inclusive, cabe ainda a pergunta: deveria a esquerda criar sua própria rede de fake news para atenuar a desvantagem nessa correlação de forças?

4) O HUMOR COMO INSTRUMENTO DE LUTA – Precisamos voltar a usar a linguagem do humor para transmitir nossos valores e, principalmente, desconstruir nossos adversários. O hiperpoliticamente correto só tem nos isolado da sociedade e dado munição à Nova Direita, que tem sido incansável na produção de memes e vídeos de sátira para nos destruir moralmente. Temos um sintoma disso no mundo dos humoristas: basta ver que apenas uma parcela ínfima deles não é reacionária. Mensagens com humor têm um poder de alcance e perenidade infinitamente maior que textões de internet, de forma que necessitamos passar a usá-las de forma exaustiva em nossa disputa diária por hegemonia.

5) A RENOVAÇÃO COMO TÁTICA ELEITORAL– Tudo o que foi exposto acima, do humor antiesquerdista às redes de fake news, só funcionou porque encontrou receptividade no eleitor para esse tipo de mensagem. É bastante esperado que, após 13 anos de governo por uma mesma agremiação, o eleitor aspire por mudanças no comando do país. Esse comportamento é mais esperado ainda se a agremiação em questão tiver sido alvo de anos de uma megacampanha midiática-jurídica de destruição política e o país estiver em crise econômica. Hoje está claro que, ao invés de ter buscado manter o hegemonismo a qualquer custo, o Partido dos Trabalhos deveria ter apoiado uma candidatura de centro-esquerda de outra agremiação, em um movimento tático-eleitoral que buscasse atenuar a força do antipetismo e aumentar assim as chances de vitória sobre o protofascismo. Apesar dos muitos pesares, hoje também está claro que o nome que deveria ter enfrentado Bolsonaro era o de Ciro Gomes e não o de Haddad.

6) O TEMPO DE LULA JÁ PASSOU – A estratégia eleitoral concebida por Lula fracassou de forma retumbante. Ela não captou que o antipetismo e o antilulismo romperam a bolha da classe média antipobre, passando a grassar também nas classes populares, sobretudo das regiões ao sul do país. Na insistência de ter candidatura própria – o que não deveria ter acontecido –, o PT pecou em não ter apontado Haddad como candidato desde o início e não só aos 40 do segundo tempo, em fins de setembro. A escolha cega dessa estratégia suicida só foi possível por conta da adoração messiânica que ainda perdura em torno de Lula em parte substancial da esquerda, adoração essa que, mais do que nunca, precisamos nos livrar. Urge rompermos de uma vez por todas com o lulismo e assim abrirmos espaço para uma renovação concreta na esquerda, com o surgimento de novas lideranças, novas bandeiras e até mesmo uma nova direção hegemônica. Só assim teremos chances de nos próximos anos nos reconectarmos novamente com o povo e enfrentarmos a atual onda reacionária sob novos e competitivos marcos.

7) COLHEMOS OS FRUTOS DA HIPERCONCILIAÇÃO DE CLASSES – O resultado das eleições deste ano não é fruto apenas da campanha eleitoral que se iniciou em setembro. Suas sementes foram plantadas na fatídica Carta aos Brasileiros, nos idos de 2002. Passados 16 anos desde então, aprendemos, a duras penas, que instituições como o Judiciário e o Ministério Público estão bem longe de serem neutras e tendem a atuar como forças político-partidárias quando lhes convêm. Aprendemos também que a elite empresarial do país, que por tanto tempo o PT tentou cativar em seu projeto de hiperconciliação, jamais se despirá de seu ódio a tudo que remete a esquerda a despeito de pontuais alianças táticas que visaram a manutenção de seus lucros. Pelo menos isso agora está claro para todos nós: por mais que desejamos sua amizade, a Casa Grande sempre nos verá como inimigos a ter as vísceras extirpadas. É bom que não nos esqueçamos dessa lição jamais.

8) PRECISAMOS DISPUTAR O PÚBLICO EVANGÉLICO – O Brasil está cada vez mais conservador e deverá ser ainda mais nos próximos anos, em especial por conta do crescimento das igrejas neopentecostais. Não só nossa vivência nos confirma isso, mas também as estatísticas: de acordo com o IBGE, em 1991, 9% dos brasileiros eram evangélicos, enquanto que, em 2010, ano do último censo, esse número foi para 22,2%. Provavelmente, ele é bem maior nos dias que correm. A questão é que falamos de uma denominação religiosa cuja maioria absoluta das lideranças é não apenas reacionária e obscurantista, como extremamente organizada e com planos concretos de poder, investindo maciçamente na expansão de canais de TV e rádio e também na eleição de um número cada vez maior de parlamentares e governantes. Essa crescente hegemonia neopentecostal tem nos brindado com consequências trágicas, especialmente no campo das pautas morais. Uma prova cabal disso é que nas eleições deste ano uma polêmica absolutamente irrelevante e mentirosa, que foi o “Kit Gay”, acabou sendo muito mais decisiva para milhões de votos do que propostas para atacar o desemprego epidêmico do país. Fica claro, assim, que a esquerda terá que descer do seu pedestal iluminista e disputar corações e mentes nas igrejas evangélicas, que, para o bem ou para o mal, tem organizado a periferia de forma consistente. De outra forma, corremos um sério risco de nas próximas décadas virarmos uma teocracia ao estilo do que é hoje o Irã – e não há exagero algum nessa afirmação.

9) RECONECTAR COM A PERIFERIA – Não há novidade alguma na hoje célebre fala de Mano Brown, durante evento pró-Haddad no Rio de Janeiro, sobre o abandono do trabalho de base pelo PT e a necessidade de se retomá-lo com extrema urgência. Ela expôs, com rara franqueza, a transformação de uma organização enraizada nos bairros e vielas para outra de práxis política quase que exclusivamente de gabinete. O resultado não poderia ser diferente: o povo votando em plataformas eleitorais antipovo de forma avassaladora. Precisamos, mais do que nunca, retomarmos comitês territoriais de ação política nas periferias, tocarmos iniciativas de formação de lideranças de bairro, estimularmos a articulação de grupos antifascistas formados por jovens da quebrada, entre várias ações que sempre a esquerda fez, mas que, por comodidade da vida política, abandonou.

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