Uma liga comunista de estudantes fundada no Japão em 1948, os Zengakuren, concentrou poder por duas décadas e com enormes manifestações, que chegaram a ter 16 milhões de adeptos, criou fortes tensões na aliança EUA-Japão durante a Guerra Fria, desafiando conceitos hegemônicos de democracia, paz e história do imperialismo
Por Naoko Koda, na Verso | Tradução de Guilherme Ziggy
Narrativas convencionais sobre o movimento estudantil japonês começam a partir dos protestos de massa contra a revisão do Tratado de Mútua Cooperação e Segurança EUA e Japão de 1960, e acabam com o sectarismo do movimento estudantil e os crimes violentos de pequenos grupos esquerdistas, como a Facção do Exército Vermelho [1]. Entretanto, esse recorte cronológico, amplamente difundido, falha grosseiramente em contabilizar as complexidades multifacetadas na história do movimento estudantil japonês. Elas também o analisam a partir de noções Ocidentais e recortes históricos da Nova Esquerda.
Mark Kurlansky, por exemplo, localiza a origem da revolta global dos estudantes de 1968 no protesto “As Sentadas”, iniciado por quatro estudantes afro-americanos em Greensboro, Carolina do Norte, em 1º de fevereiro de 1960. Ele argumenta, “por volta de 1968, em todo o mundo, pessoas com causas queriam copiar o Movimento dos Direitos Civis. O hino do movimento, a música ‘We Shall Overcome’ [2] de Pete Seeger – uma música folk convertida em música de trabalhadores que Seeger transformou em um hino dos direitos civis quando “As Sentadas” começaram em 1960 – era cantada em inglês no Japão, África do Sul e no México”. [i]
Enquanto o Movimento dos Direitos Civis teve uma tremenda influência nos movimentos de protestos globais, incluindo o Japão, não se pode negar que esse retrato da revolta mundial dos anos 1960 falha não distinguir algumas diferenças históricas e contrastes locais de nações atípicas como o Japão. Contudo, o movimento estudantil japonês compartilha características importantes com a Nova Esquerda Ocidental, tendo sido um movimento anti-imperialista que possui raízes cronológicas tão profundas que datam da segunda metade dos anos 1940. Como resultado, o movimento foi muito mais influenciado por um sentimento antifascista resultante de memórias da Segunda Guerra Mundial e do ethos democrático dos EUA nessa guerra – absorvida pelos japoneses após a ocupação norte-americana –, influenciado pela Nova Esquerda Americana.
Durante a ocupação norte-americana no Japão, o movimento estudantil de esquerda se apropriou das causas da democratização e desmilitarização, se articulando no país inteiro em uma organização chamada Zengakuren, formalmente nomeada Zen-Nihon Gakusei Jichikai Sōrengō (Federação Japonesa das Associações Autônomas de Estudantes). Em meados dos anos 1940, as crescentes tensões Russo-Americanas forçaram Washington a moderar a visão de democracia e desmilitarização que havia advogado no decorrer da guerra. Ao longo da ocupação, um poderoso surto democrático e popular, inspirado pelos programas sociais dos EUA (como o New Deal), prosseguiu sem perder intensidade, inclusive quando os ocupantes mudaram suas prioridades para o combate ao Comunismo e o estabelecimento de um centro econômico anticomunista autossuficiente na Ásia. Os Zengakuren emergiram como uma vanguarda de um movimento popular que finalizaria a “revolução inacabada” iniciada durante a ocupação norte-americana.
Ao longo dos anos 1950 o foco do movimento estudantil japonês se tornou a aliança entre os Estados Unidos e o Japão durante a Guerra Fria. O Tratado Mútuo de Segurança EUA-Japão (abreviado Anpo, em japonês), foi assinado no mesmo dia que o tratado de paz que acabou com a ocupação das terras do Japão pelos Estados Unidos em 1951, o Tratado de São Francisco – que garantia segurança aos japoneses por meio da presença de bases militares e instalações dos EUA em terra e com a ocupação das Ilhas Ryukyu, no extremo sul do arquipélago japonês.
Com a escalada da Guerra da Coréia, a importância geoestratégica das bases militares no Japão cresceu gradativamente conforme o comprometimento dos EUA com a segurança do Pacífico aumentava. Em 1955, os dois governos concordaram em estender a pista de decolagem da base aérea de Tachikawa por dentro da pequena cidade de Sunagawa, para acomodar os modernos jatos norte-americanos. Esse foi o começo da luta por Sunagawa. Muitos moradores locais temiam que estacionar novos jatos naquela localização faria da cidade um alvo, no caso de uma destrutiva – possivelmente nuclear – guerra entre as superpotências. E então, eles resistiram ao plano.
Os Zengakuren, juntamente com sindicatos e partidos de esquerda, se aliaram aos moradores nos protestos contra a extensão da pista. Apesar do fato de que muitos manifestantes, incluindo os Zengakuren, estavam advogando a desmilitarização pela paz, eles foram vistos pelas autoridades locais como grupos a serviço da causa comunista. O jornal Los Angeles Times chamou os protestos em Sunagawa de “desordem antiamericana” que estavam “obviamente encorajados, se não patrocinados, pelo reorganizado Partido Comunista”. [ii] O movimento contra o plano de extensão foi um gatilho para debates públicos sobre o Tratado Mútuo de Segurança EUA-Japão, armando o palco para a crise da Anpo de 1960.
A crise de 1960 é uma das histórias da Guerra Fria mais contadas no Japão. No outono daquele ano, foi relatado que 16 milhões de japoneses participaram dos protestos contra a revisão do Tratado de Mútua Cooperação e Segurança EUA e Japão. [iii] À medida que 1960 seguiu, os Zengakuren começaram a coordenar algumas ações diretas, tentando bloquear a assinatura do tratado de segurança. Na noite de 15 de janeiro, cerca de mil estudantes invadiram o Aeroporto de Haneda, onde 700 deles ocuparam o saguão principal, montando barricadas com cadeiras e mesas, na tentativa de impedir o Primeiro Ministro Kishi Nobuske de partir para os Estados Unidos assinar o documento. [iv]
Em 19 de maio, a luta anti-Anpo entrou em uma nova fase quando o PLP (Partido Liberal Democrata), de Kishi, teve que interromper a revisão do tratado no Congresso. No lado de fora da Dieta japonesa [3], uma multidão cercou as dependências do edifício, protegido por 3 mil policiais. [v] O primeiro relatório da polícia declarou que o número era de 7 mil pessoas, enquanto os grupos de oposição alegavam ser mais de 20 mil. Os manifestantes criticavam a postura antidemocrática de Kishi ao lidar com a situação. Agora, o movimento de oposição ao tratado de segurança havia levantado a questão da democracia no pós-guerra. Maruyama Masao, um dos mais proeminentes filósofos políticos desse tempo, afirmou que a luta anti-Anpo apontava para a lógica de que “ou se era anti-Anpo ou antidemocrático”. [vi] Para os estudantes japoneses, os efeitos dos protestos resultaram em sentimentos mistos – a confiança conquistada por conta do tamanho da adesão popular, que finalmente forçou o Primeiro Ministro Kishi a renunciar, mas ao mesmo tempo, o desespero por terem falhado enquanto movimento, sendo incapazes de impedir a promulgação da revisão do tratado.
Em meados da década de 1960, o mundo dos jovens/estudantes estava se revoltando contra a política “imperialista” dos EUA no Vietnã. Em oposição à guerra, movimentos locais, nacionais e internacionais convergiram e transformaram os estudantes radicais nos players globais de 1968. Num mundo engolido por uma nova onda de radicalismo, o comprometimento nas lutas locais contra o poder norte-americano dependia de uma consciência global sobre a existência dos estudantes radicais japoneses, questão que os estimulou a construir alianças transnacionais com seu homólogos na Europa e nos Estados Unidos.
As bases militares no Japão ficaram marcadas como postos avançados do novo imperialismo, mas sua presença no país também continha potencial para facilitar um fluxo transnacional de novos pensamentos radicais. A Vietnam Veterans Against the War. Winter Soldier Organization [4] originalmente fundada em 1967, em Nova Iorque, publicava o jornal quinzenal Freedom of the Press [5], tendo montado uma livraria perto da Base Naval de Yokosuka para permitir que soldados norte-americanos tivessem acesso à panfletos e filmes que não eram permitidos pelo exército. Jornais alternativos publicados por soldados americanos floresceram nas áreas que abrigavam as bases militares dos EUA no Japão. Entre eles, estavam o Kill for Peace [6] e o Freedom Rings [7] em Tóquio, o Semper Fi em Iwakuni, Omega Press e Demand for Freedom em Okinawa, para citar alguns. Esses periódicos se transformaram não somente em fonte de informação para soldados anti-guerra e ativistas, mas também proporcionavam críticas radicais sobre as estruturas sociais existentes no imperialismo. Um soldado negro em Yosuka escreveu: “Nós temos liberdade, menos os direitos iguais. Essa [a Guerra do Vietnã] é a guerra do homem branco, não a do homem negro”, criticando a opressão racial em casa, em uma edição do Long Road to Freedom [8], publicado por soldados na Base Naval de Yosuka. [vii]
Por volta de 1970, os estudantes radicais japoneses estavam cada vez mais envolvidos na importação de ideias e táticas dos movimentos do exterior. O Terceiro Mundo e os EUA haviam se tornado as duas maiores fontes de inspiração para eles. Victor Passy, reportando para o National Guardian, observou, “O Presidente da Terceira Facção Zengakuren, Akiyama Katsuyuki, me levou para o enorme quartel-general dos Zengakurens aqui. As paredes estavam cobertas com os cartazes de Che Guevara, do Vietnã e do Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil (SNCC)”. [viii] Os revolucionários do Terceiro Mundo e o radicalismo negro nos EUA tiveram um papel crucial na transformação do conceito de subjetividade revolucionária entre os radicais japoneses. Eles ofereceram um meio de lidar com as limitações do marxismo clássico por meio do emprego de categorias culturais, como a raça. A convergência local-global de ativismo radical foi crucial na criação de um novo sentido de poder entre os japoneses.
Emergindo no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o nascido movimento de estudantes Zengakuren concentrou poder e energia, tendo se beneficiado dos movimentos populares a favor da democratização na época. Por duas décadas, o movimento estudantil criou grandes tensões na aliança EUA-Japão durante a Guerra Fria, desafiando conceitos hegemônicos de democracia, paz e história do imperialismo, que foram gradualmente moldados pelo possível conflito nuclear. O movimento de estudantes anti-imperialista dos “Longos Anos Sessenta” parece ter atingindo seu fim em 1973. A revisão do Tratado de Mútua Cooperação e Segurança EUA e Japão foi automaticamente ratificada em 1970, e a ocupação norte-americana de Okinawa acabou oficialmente em maio de 1972. Parece que não foi preciso de muito esforço dos EUA para ajustar a aliança com o Japão no período após a ocupação. O consenso nacional dos japoneses se provou fortemente a favor da aliança com os EUA e da manutenção de suas bases militares, que estavam predominantemente em Okinawa. O resultado desses dois grandes eventos diplomáticos permeou o sentimento de que as dificuldades na aliança entre os velhos guerreiros americanos e os conservadores japoneses haviam finalmente acabado.
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[i] Mark Kurlansky, 1968: O ano que abalou o mundo (New York: Ballantine Books, 2004), 84.
[ii] Los Angeles Times, 14 de setembro de 1955.
[iii] Wesley Sasaki-Uemura, Organizando o espontâneo: Protestos populares no Japão pós-guerra (Honolulu: University of Hawai’i Press, 2001), 16.
[iv] O jornal Tokyo Daigaku Shimbun (The Japan Times) reportou que o número de manifestantes em Haneda foi de mil e quinhentas pessoas, em 20 de janeiro de 1960; a Agência de Inteligência e Segurança Pública do Japão reportou que mil estudantes estiveram no Aeroporto de Haneda em Kōan Chōsachō, Anpo Tōsō no Gaiyō: Tōsō no Keika to Bunseki, 165.
[v] Tokyo Daigaku Shimbun, 11 de julho de 1960.
[vi] Maruyama Masao, “Sentaku no Toki,” [A hora de escolher]. Tokyo Daigaku Shimbun, 11 de julho de 1960.
[vii] “Mensagem de um soldado negro dentro do porão de Yokosuka”, Long Road to Freedom. [A data da publicação é desconhecida, a mensagem foi escrita em 9 de setembro de 1970]. Endō Yōichi Papers. S-3-408. Box 19. Research Center for Cooperative Civil Societies, Rikkyo University, Tokyo, Japan.
NOTAS DA TRADUÇÃO
[1] ‘The Red Army Faction’, era uma facção do ‘Japonese Red Army’ (Exército Vermelho Japonês) que declarou guerra ao estado japonês em 1969 e ficou conhecida por advogar a revolução por meio de ações terroristas isoladas.
[2] ‘Nós iremos superar’, em tradução literal.
[3] A Dieta é o poder legislativo bicameral do Japão. Ele é composto por uma câmara baixa, que é chamada de ‘Casa dos Representantes’, e uma câmara superior, chamada de ‘Câmara dos Conselheiros’.
[4] ‘Veteranos do Vietnã Contra a Guerra/Organização do Soldado Invernal’, em tradução literal.
[5] ‘Liberdade de Imprensa’.
[6] ‘Matar pela Paz’.
[7] ‘A Liberdade Chama’.
[8] ‘Longa Estrada para a Liberdade’.
É o que e deu o jejum punitivo para tirar de cena quem pôs comida na mesa de milhões de brasileiros no país mais desigual do mundo. Novos motes para 2019: Não usar disciplinas espirituais em vão. A dita ágil common law tupiniquim, com seus motivos religiosos inconfessos e extrema seletividade política estratégica, despertou também religiosamente e a dimensão solidária popular esquecida durante o governo Temer. As cabeças de ponte aecistas em 2014, bolsonarizadas agora como uma constelação de núcleos regionais hegemônicos do estado paralelo de exceção jurídico-policial vigente, colidem no cotidiano com um contingente cada vez maior de colegas céticos ainda sem margem de ação (“não foi para ser massa de manobra de cruzadas religiosas vingativas o motivo pelo qual fiz concurso junto contigo”). Há um colapso em curso do golpe “venezuelano”, aqui pela direita, de quem, com hipocrisia, combatia para inglês ver o risco imaginário do Brasil converter-se em um regime fechado populista. Deu no que deu. Curioso, no mínimo: quem fala em ditadura abertamente, como sempre o fez, é a direita. Alerta: Golpe “2” no horizonte!