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Guilherme Boulos: quem são os sem-teto?

Trecho do livro “Por que ocupamos?“, escrito pelo atual candidato do PSOL, traça o perfil dos lutadores do maior movimento urbano do país que almeja organizar 22 milhões de trabalhadores sem moradia

Por Guilherme Boulos

É muito comum a visão de que os sem-teto são aqueles que estão em situação de rua, que dormem nas calçadas e encontram-se no limite da miséria. Obviamente, as pessoas que foram levadas pelo capitalismo a estas condições degradantes de vida são sem-teto. Mas não são os únicos. Aliás, representam somente uma pequena parte dos sem-teto no Brasil.

Como vimos no capítulo 1, o número de sem-teto em nosso país é incrivelmente alto: são cerca de 22 milhões de pessoas que não têm casa, morando de favor, em barracos totalmente precários ou pagando aluguel que – pela baixa renda familiar – inviabiliza a sobrevivência. Além disso, existem mais ou menos 48 milhões de pessoas que vivem sem condições básicas de serviço público e infraestrutura.

Assim, mais de um terço do povo brasileiro sofre diretamente com o problema da moradia. Por isso, reduzir os sem-teto somente àqueles que estão em situação de rua é um grande erro. E não só um erro: é criar um mito de que os sem-teto são uma exceção, um caso isolado e, desta maneira, deixar de reconhecer a gravidade do problema habitacional em nosso país. É esconder que uma parte importante dos trabalhadores brasileiros sofre com situação precária de moradia nas cidades.

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Por isso entendemos que os sem-teto são todos aqueles que são afetados pelo problema da moradia, seja pela falta dela ou por tê-la nas condições mais precárias. São aqueles trabalhadores a quem o capitalismo atacou de modo brutal, com suas armas mais afiadas: desemprego, baixos salários, trabalho informal, superexploração.

Como vivem estes trabalhadores?

Um levantamento com mais de 5.200 famílias sem-teto que participaram de uma ocupação organizada pelo MTST na zona sul de São Paulo, em 2007, nos ajuda a responder essa pergunta. A situação de emprego dessas famílias era a seguinte: 26% eram trabalhadores formais, com registro em carteira; outros 27% eram trabalhadores informais, sem registro; e 47% estavam desempregados, sobrevivendo de bicos que apareciam de vez em quando.

A renda mensal dessas famílias trabalhadoras era a seguinte: 65% sobreviviam com até um salário mínimo; 32% recebiam entre um e dois salários mínimos; 2% recebiam entre dois e três salários mínimos; e apenas 1% mais do que três salários mínimos.

Estes dados tornam quase desnecessário perguntar por que esses trabalhadores entraram numa ocupação de terra. Reforçam o que já havíamos dito no capítulo anterior: a ocupação é a única alternativa de moradia para milhões de trabalhadores brasileiros.

Como pagar um aluguel ganhando um salário mínimo por mês? Ou, pior ainda, ganhando algum só quando aparece a oportunidade de um bico? Estas questões não têm resposta e, por isso, muitos trabalhadores constroem sua própria resposta ao ocuparem os terrenos e prédios deixados vazios pela especulação imobiliária.

A vida e a voz dos sem-teto

“Onde estavam antes?” Esta é a pergunta que os governos mais gostam de fazer quando se deparam com uma ocupação de terra. Partem do princípio óbvio de que, antes de ocupar, os sem-teto viviam em algum lugar. E daí tiram a conclusão de que não precisam de casa, porque podem voltar para o lugar de onde vieram. Simples o raciocínio, não é?

Simples e cínico. Os mesmos governos que não cumprem com o dever constitucional de garantir moradia digna a todos propõem aos trabalhadores que voltem aos seus buracos quando estes se levantam após anos e anos numa condição miserável. Os mesmos governantes que, de modo hipócrita, lamentam pelas mortes num deslizamento em área de risco pedem aos trabalhadores que voltem às áreas de risco.

Onde estavam os trabalhadores antes de ocupar? São várias as respostas: em barracos pendurados nas áreas de risco; num cômodo de 2 m por 2 m na casa de um parente; despejados após meses sem conseguir pagar o aluguel; sem esperança após esperar 20 ou 30 anos na fila de algum programa habitacional; e por aí vai.

Mas ninguém melhor do que os próprios sem-teto para falar de toda esta história. Por isso, colhemos os relatos de alguns ocupantes sobre o que os levou a participar de uma ocupação. Trabalhadores e trabalhadoras sem-teto, alguns jovens outros mais idosos, que têm em comum a vida sofrida e a necessidade de um teto para sua família. Além, é claro, da coragem que tiveram ao se levantar para lutar por seus direitos.

Norma,1 32 anos

Norma é uma baiana de Vitória da Conquista. Viveu na “terrinha” até os 25 anos de idade, quando teve que vender a pequena casa onde morava por conta das dificuldades financeiras. Casada desde os 16 anos com Toninho, a esta altura já tinha três dos seus quatro filhos. Por falta de alternativa, vieram todos tentar uma vida melhor em São Paulo, seguindo o destino de outros milhões de nordestinos que, vencendo a distância e os preconceitos, construíram esta cidade.

Logo ao chegar, em 2007, investiu o que havia conseguido com a venda da casa na compra de um lote na periferia da zona sul. Nisso foram embora os R$ 6.500 que tinha. Trabalhava distribuindo panfleto no semáforo – curiosamente panfletos de empreendimentos imobiliários. Toninho ralava como ajudante de pedreiro. Assim, conseguiram erguer uma casinha no lote que haviam comprado.

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Alguns meses depois veio a surpresa: uma ordem de despejo, para eles e as outras onze famílias que haviam comprado lote naquele terreno. Revelou-se então que o loteador era um grileiro, que, nesse momento, já havia embolsado o dinheiro e ido embora. Em poucas semanas foram despejados e, como se não bastasse, apontados no processo judicial como cúmplices do grileiro e não como vítimas.

Após perderem tudo, conseguiram pagar um aluguel de R$ 350 no mesmo bairro. Mas por pouco tempo. Depois de três meses, Toninho ficou desempregado. Começaram a atrasar o pagamento e a ameaça de despejo veio junto com a de perder a guarda das crianças para o Conselho Tutelar, dadas as condições precárias em que estavam vivendo. Norma entrou em depressão: “Foi o pior período da minha vida.”

Nessa época foi avisada por uma das onze famílias que também haviam sofrido o golpe sobre uma ocupação num grande terreno da região. “Deus me livre!” – foi sua primeira reação. Achava que isso era coisa de baderneiro e bandido. Assim, recusou o primeiro convite. Mas, dias depois, com uma nova ordem de despejo causada pelo atraso do aluguel, a realidade falou mais alto.

Chegou na ocupação desconfiada de tudo e de todos. Passou muito sofrimento debaixo do barraco de lona preta, por mais de seis meses. Mas as dificuldades e a luta a aproximaram dos outros ocupantes. Foi mudando de opinião: “Às vezes a gente mora no bairro por anos e não conhece nem o vizinho. Na ocupação é bem diferente. Tive apoio dos companheiros”, lembra.

A ocupação permitiu a Norma e sua família não só um teto para viver com alguma dignidade. Mudou também sua visão sobre uma série de questões: “É muito sofrimento, mas não só. Antes eu achava que tudo isso era pilantragem, que se alguém fazia uma manifestação era porque tinha dinheiro envolvido. O movimento me ensinou que temos que lutar pelos nossos direitos. Hoje eu estou na linha de frente, para o que precisar, até porque a luta não acaba depois de ter a moradia. Tem muitas outras coisas.”

Seu Agripino,2 69 anos

Agripino é um senhor pacato e de fala mansa, que revela no rosto e no tom de voz respeitoso a experiência de 69 anos de vida e pelo menos 50 de trabalho duro. Há mais de 30 anos trabalha como marceneiro, apenas seis com registro em carteira. Antes disso, havia trabalhado quase 15 anos numa metalúrgica. “O salário até que era bom”, diz, “mas fui demitido porque tive um problema na coluna.” Isto em 1980. Depois, só trabalhou como marceneiro, o que faz até hoje para complementar a rasa aposentadoria de um salário mínimo.

Mas, mesmo com seus 50 anos de trabalho, não conseguiu ter sua casa. Morou durante muitos anos de favor no terreno de seu sogro. A princípio, não havia muito problema, mas depois de certo tempo seus cunhados começaram a implicar com ele: “Eles diziam que eu e minha mulher não tínhamos direito de ficar lá. Na verdade, nós tínhamos tanto direito quanto eles, mas o clima foi ficando muito ruim. A cada dia era um problema novo, piorava cada vez mais. Quase chegaram a me expulsar de lá”, relata Agripino, expressando o drama doméstico de milhões de brasileiros que vivem de favor em casa de parentes.

Neste período, ocorreram duas ocupações na região onde morava, mas ele não foi. Tinha medo da polícia. E confiava que ainda poderia ser chamado no cadastro da Cohab, que fez em 1978. Agripino chegou a ser chamado uma vez, em 1999, mas tinha que ter R$ 3 mil de entrada e renda mensal de pelo menos R$ 800. Não tinha. Até hoje guarda o comprovante do cadastro feito em há 37 anos, mas já não guarda mais nenhuma expectativa de ser chamado: “Uma hora a gente cansa! Depois deste cadastro, eu já tive três filhos e nove netos e a Cohab não me deu a casa.”

Cansado de esperar e não podendo mais suportar as brigas com os cunhados, Agripino teve que tomar uma decisão. Quando, em 2007, ocorreu uma grande ocupação perto de onde vivia, seus vizinhos vieram chamá-lo. Desta vez resolveu ir. Antes de montar seu barraco, andou pelo acampamento e conversou com as pessoas. Então tomou sua decisão: “Fui bem recebido por todo mundo, até por quem não conhecia. Participei da assembleia e vi que o negócio era sério. Fiquei e estou no movimento até hoje. Graças a Deus, agora estou conseguindo minha casa”.

“Graças a Deus e à luta”, completa. Mas nem tudo foram flores. Agripino enfrentou uma resistência mais dura do que a polícia: Dona Margarida, com quem é casado há 45 anos. Margarida nunca aceitou sua ida à ocupação, dizia que a polícia ia bater em todo mundo e que isso não daria em nada. Insistia que se Agripino continuasse trabalhando poderia comprar uma casa para eles e os filhos. Agripino responde com simplicidade e muita lógica: “Trabalhei a vida inteira e não consegui. Fiquei na fila do cadastro e não consegui. Por que eu ia conseguir agora?”.

O fato é que, depois de lutar bastante, agora Agripino recebeu uma Carta de Crédito, com a qual poderá comprar sua moradia com subsídio do governo. Ele e mais 350 sem-tetos do movimento. Até seu filho, que hoje paga aluguel, mesmo sem ter condições, está pronto para participar de uma próxima ocupação. “Não só ele”, diz Agripino. “Tem também vizinhos e muita gente que já não acredita mais nos cadastros do governo e que sabe que não vai conseguir comprar casa, mesmo que trabalhe como um cão.”

Agripino percebeu – por sua própria experiência – que esta sociedade tem muros e que as oportunidades estão longe de ser iguais para todos. E do alto dos seus 69 anos dá lição de disposição em muito jovem.

Tia Deda3, 53 anos, e Seu Zé, 52 anos

Deda e Zé moram de aluguel numa casa desde 2006. Foi quando conquistaram o auxílio aluguel, após terem participado da ocupação de um grande terreno e realizado lutas que pressionaram o governo a garantir este benefício. A ocupação foi despejada com a promessa de que as famílias permaneceriam no auxílio aluguel por um prazo de dois anos, até a construção das moradias definitivas. Mas Deda, Zé e outras centenas de famílias que participaram desta ocupação não desistiram nem se acomodaram.

Em 2005, quando entrou na ocupação, Deda estava desempregada. Sem condições de pagar aluguel, fazia serviço de diarista para uma senhora em troca da possibilidade de viver em um cômodo no mesmo terreno em que essa senhora morava. Viúva depois de um casamento de mais de 20 anos e sem poder contar com seus parentes, ela não tinha muitas opções. Disposição nunca faltou. Além de diarista, já tinha trabalhado como vendedora de salgados e cozinheira profissional, dentre vários outros bicos.

FOTO: Mídia Ninja

Quando a proprietária do terreno em que vivia exigiu uma quantia a mais em dinheiro, não teve jeito. Ela não podia pagar. Foi então que soube da ocupação e foi sem demora. Encontrou dois companheiros que a ajudaram a erguer seu barraco e lá enfrentou as dificuldades da luta: “Quem encara um acampamento é porque realmente precisa. Você sabe o que é a água da chuva estourando a lona do seu barraco e molhando tudo?”, relembra Deda.

Mas, apesar das agruras, ela logo se enturmou e passou a ser conhecida em toda a ocupação como Tia Deda. Foi um período de sofrimento, mas de muito aprendizado e novas amizades. Hoje afirma com orgulho: “Sou outra pessoa. A começar pelo fato de que, graças ao movimento e à nossa luta, eu e muita gente temos um lugar pra morar”.

O barraco de Zé era bem próximo do de Deda na ocupação. Ainda não se conheciam, embora tivessem histórias semelhantes. Na época com 45 anos, Zé estava com dificuldades para arrumar emprego em sua área, a construção civil. Desempregado, passou a fazer bico como flanelinha. Mas o dinheiro não dava para o aluguel. Foi despejado e conseguiu abrigo por uns dias na casa de amigos. Mas esses dias foram se estendendo e a situação foi ficando difícil. “Teve dia que cheguei a dormir na rua. Chegava na casa só pra dormir e depois saía. Mas não deu mais”.

Arrependia-se de não ter participado de duas ocupações que haviam ocorrido no bairro. Na terceira, em meio a essa situação, não deixou passar. Foi decidido e convicto de que conseguiria garantir sua morada. Só não imaginava que, além disso, sairia de lá casado. Nem Deda. Mas o fato é que, depois de alguns meses no terreno, tinham juntado seus trapos.

Zé relata como foi o encontro: “Passei pelo barraco dela e ela estava cozinhando feijão na entrada. Aí eu perguntei se tinha almoço pra mais um. Ela disse que só se eu levasse carne. Eu fui no açougue e gastei o que tinha numa carne de primeira. Almoçamos juntos, fomos conversando e dali a uns dias a gente estava junto”.

Hoje, casados, os dois enxergam a experiência da ocupação como uma virada na vida. Não apenas por terem conseguido um alívio na situação de moradia (o auxílio aluguel) e uma perspectiva real de terem sua casa. Mas fundamentalmente pelo aprendizado de luta que a ocupação lhes trouxe: “Hoje eu não abaixo a cabeça pra ninguém. Sei dos meus direitos e vou até o fim”, diz Deda.

1 Norma conquistou sua casa em 2013.

2 Seu Agripino conquistou sua casa em 2014.

3 Um ano e meio após esta entrevista, infelizmente, a companheira Deda faleceu, antes mesmo de realizar o sonho de ter sua casa. Foi homenageada em outubro de 2014 com a Ocupação “Dona Deda”, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo.

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