Atílio Boron, autor do livro “O feiticeiro da tribo – A farsa de Mario Vargas Llosa e o liberalismo na América Latina”, que a Autonomia Literária publicará em 2020, expõem detalhadamente como um dos maiores escritores liberais do continente distorce a realidade para apoiar governos milicianos e processos golpistas.
Mario Vargas Llosa definiu uma vez o ofício do escritor como alguém que escreve mentiras que parecem verdades. Com tanto esforço, o novelista tem cultivado esta prática que virou um hábito cada vez que mergulha na crônica ou no ensaio político. O mais recente exemplo desta doentia atitude está escrito no artigo “O fim de Evo Morales”, publicado no El País de Madri, em 1º de dezembro, em que estende todo seu ódio visceral contra o deposto presidente boliviano.
Enumerar e contestar cada uma das mentiras descritas nesse artigo me forçaria a escrever outro livro, e a verdade é que um já foi suficiente. É uma figura cada vez mais desvalorizada, pois seu silêncio ante os massacres perpetrados por seus amigos Piñera no Chile e Duque na Colômbia, agora se transformam em uma crítica ensurdecedora lançada contra Evo Morales, revelando que atrás da máscara amável de um liberal “aggiornado” encontra-se um energúmeno reacionário e racista, governado pelo ódio. Por isto serei breve na enumeração das suas mentiras.
Primeiro, quando diz que “os bolivianos têm se libertado dele não porque seja ‘índio’ (que não é)” e, também “não é o primeiro presidente indígena na história de Bolívia… e que Bolívia tem tido vários presidentes indígenas (alguns ditadores), como o Peru, México, Equador e Guatemala”. Dado que a antropologia e, em geral, as ciências sociais não são precisamente seu forte, o escritor acredita que qualquer governante de tez morena é um indígena, com o qual a galeria de presidentes indígenas da América Latina e do Caribe seria interminável. No entanto, o certo é que houve apenas um caso anterior ao de Evo: Benito Juárez, indígena zapoteca que chegou a ser presidente do México. Além dele ninguém mais na América Central, nem na América do Sul.
Por outra parte, só uma mente ofuscada pelo ódio amalgamado com uma maligna conveniência política pode negar a Evo sua condição de indígena. É que para um senhorito da decadente e hiper colonizada aristocracia arequipenha, um indígena é um hominídeo que corre seminu pelas serras caçando coelhos. Se fala, raciocina, persuade e se converte em uma referência político nacional e internacional não pode ser um indígena, tem que ser outra coisa. Segundo as suas palavras: “um mestiço cultural como somos boa parte dos latino-americanos, em muito boa hora”. Ou seja, Vargas Llosa e Evo Morales estão milagrosamente irmanados graças à magia da mestiçagem cultural.
Segunda mentira, Evo foi destituído por uma enorme rebelião popular provocada “mediante arranjos múltiplos criados para permanecer 14 anos no poder, contra a Constituição boliviana” e porque se “dispunha, mediante uma fraude grotesca, a se perpetuar indefinidamente no Governo”. Ao se referir aos arranjos múltiplos o peruano deve estar pensando nas eleições que Evo ganhou em 2005 (com o 53.7 % dos votos); 2009 (64.2 %); 2014 (61.3 %) e a última em 2019 (47.08 %) na qual obteve 10.57 % de votos a mais sobre Carlos Mesa, um probo homem da democracia e da república, que antes das eleições havia declarado que não reconheceria outro resultado que não fosse o que o consagrasse como triunfador.
Evo obteve uma proporção de votos menor ao habitual, porém, mesmo assim se impôs com grande vantagem — mais de 10%, que estabelece a Constituição Política do Estado Plurinacional para designar o ganhador no primeiro turno. Lembremos que uma diferença de 0.17 % foi suficiente para catapultar John F. Kennedy à Casa Branca em 1960. Em troca, os 0.57% de Evo foram só o prelúdio de um golpe de Estado que vinha sendo cuidadosamente preparado ao longo dos últimos anos. Em relação às supostas intenções do líder boliviano de se eternizar no poder, chama a atenção que Vargas Llosa jamais tenha manifestado a menor preocupação durante os 14 anos de governo do seu amigo Felipe González na Espanha; ou os também 14 de Ângela Merkel na Alemanha, para não falar de Helmut Kohl, que teve que renunciar por um escândalo de corrupção depois de permanecer mais de 16 anos no governo da Alemanha; ou pelo desaforado afã por “se perpetuar no poder” do neoliberal Jaime Nebot, que permaneceu 19 anos na prefeitura de Guayaquil, no Equador, dado desprezado por Vargas Llosa, que estava mais impaciente por hostilizar a Rafael Correa que por tomar nota de trivialidades como as de Nebot. Claro que nenhum destes é indígena, ao contrário, são todos neoliberais. O que é virtude em alguns e se converte em ganancia no caso de Evo. A imoralidade e a confusão deste duplo padrão são evidentes e eximem de maiores comentários.
Voltando ao tema da suposta fraude é necessário reconhecer que efetivamente houve algumas irregularidades na transmissão rápida dos dados, porém, estas nunca atingiram uma magnitude capaz de virar o resultado da eleição ou afundar a diferença que obteve Evo para menos 10%. No Informe de 95 páginas da OEA sobre as eleições bolivianas de 2019, a expressão “fraude” ou “fraudulento” que com tanta ligeireza emprega o feiticeiro da tribo (em seis ocasiões de seu libelo), não aparece nem uma vez só. Seria bom que, para conservar algo da pouca credibilidade que ainda possui, dom Mario se informe bem antes de escrever bobagens. Já antes do demorado Informe da OEA, o prestigioso Center for Economic and Policy Research (CEPR) de Washington produziu um informe em que “não se encontra evidência de que houve irregularidades ou fraude que atinjam o resultado oficial que deu ao presidente Evo Morales uma vitória no primeiro turno.”
O departamento de Ciência Política da Universidade de Michigan, o mais renomado no estudo do comportamento eleitoral, publicou um longo estudo em que se demonstra que Evo ganhou em conformidade com a lei. O professor Walter R. Mebane Jr., uma autoridade nas análises das fraudes eleitorais, comprovou a existência de “irregularidades estatísticas que poderiam indicar fraude só em 274 das 34.551 mesas de votação e que isto não se diferencia muito de padrões vistos em outros pleitos como Honduras, Turquia, Rússia, Áustria e Wisconsin. Inclusive se excluísse os votos fraudulentos, o MAS continua tendo uma vantagem superior a dez por cento”, sentenciou ao final do seu extenso relatório.
Terceira mentira: dizer que “Bolívia está se acalmando”. Os 32 mortos são uma macabra refutação dos seus ditos. As hordas fascistas incitadas e protegidas pelos comparsas de Vargas Llosa – os Mesa, Camacho, Ortiz, Murillo, Añez e outros dessa ralé, que se uniram aos militares e policiais corruptos – assolaram e aterrorizaram as principais cidades do país; incendiaram e saquearam lares de ministros, funcionários e parlamentários do MAS e tomaram de reféns os seus parentes, em alguns casos adolescentes ou idosos, que sob ameaça de morte, suplicavam aos seus superiores que renunciassem aos seus cargos ou traíssem o líder deposto; pressionaram e surraram jornalistas, dando mostras de coragem e espírito democrático humilharam as “senhoras de pollera” (traje típico das indígenas bolivianas).
Esta corajosa turba de exaltados “vargasllosistas” serão leitores do livro O Chamado da Tribo? Por que descarregaram seu ódio sobre Patrícia Arce, a prefeita de Vinto, uma pequena cidade do departamento de Cochabamba? A coitada mulher, que foi arrastada pelas ruas descalça, teve seu cabelo cortado com tesouras e facas, foi besuntada com tinta vermelha, teve sua roupa destroçada e foi exibida por horas jogada no chão, como faziam nos tempos da colônia com os indígenas rebeldes ou insubmissos. Ou como até pouco tempo faziam os criminosos do Estado Islâmico no Oriente Médio, tirando fotos e filmando as vítimas das suas execuções. A infame polícia que se amotinou contra Evo limitou-se a observar, imutável, toda essa barbárie. Demorou quatro horas para aparecer no local e “restaurar a ordem”, ou a suposta “calma” da que fala o novelista.
Estes rufiões são os protagonistas da recuperação democrática da Bolívia que com suas venenosas palavras enaltecem Vargas Llosa em Madri, enquanto recebe uma piscada positiva da direita mundial. Uma “calma” obtida logo que a polícia e as forças armadas garantiram “zonas liberadas” para que as gangues da restauração neoliberal criassem o caos necessário para que os chefes policiais e militares comunicassem a Evo que deveria renunciar. Forças de repressão covardes e corruptas, cujos chefes não demoraram senão um par de dias para fugir com as generosas retribuições desembolsadas por “a embaixada”, buscando refúgio, como tantos outros bandidos (Gonzalo Sánchez de Lozada, responsável junto a Carlos Mesa do massacre de ao menos 70 pessoas na guerra do gás em outubro de 2003), nos Estados Unidos. Fugiram depois de destruir a economia mais próspera da América Latina nos últimos dez anos, de assassinar a 32 bolivianos, deixar centenas de feridos, dezenas de desaparecidos, muitos deles sequestrados ante os seus familiares, de ter aprisionado mais de mil pessoas, de ter botado gás de pimenta durante funerais nas ruas de gente que se despedia de seus mortos, de ter reprimido com ira o povo que saiu às ruas para defender uma institucionalidade humilhada por uma direita que jamais acreditou, nem acreditará, na democracia. Esse setor social, produto da decomposição da ordem colonial, só é admissível sempre a ordem quando seus privilégios e interesses se encontrem protegidos e a incondicional submissão da Bolívia às diretivas do império não sejam colocadas em ameaça.
Três mentiras graves de um enganador incorrigível. Um escritor infelizmente superado pela fúria e o fanatismo próprio dos conversos. Neste caso, sua viagem desde o marxismo sartreano ao liberalismo que justifica e exalta a sociedade mais injusta da história da humanidade em que 1% da população mundial detém mais riqueza que os 99% dos restantes. A cólera do converso que se reforça com o ressentimento elitista que lhe produz a vergonhosa derrota sofrida nas mãos de um desconhecido, o “chinezinho” Alberto Fujimori nas eleições presidenciais peruanas de 1990. Naquela eleição, o escritor obteve apenas 37% dos votos. Ou seja, foi repudiado por dois de cada três peruanos, uma afronta de que não se recuperara jamais e que alimentará o fogo eterno do seu ódio a tudo que cheire a plebeu.
Não conseguiu ser o presidente do Peru, por causa do seu arrasador egocentrismo que o levou a perseguir durante tanto tempo, enquanto que Evo, o humilde indígena aymara, sim foi eleito diversas vezes. E ainda mais, para afundar a sua ferida narcisista, este foi o melhor presidente da história da Bolívia, e Vargas Llosa ficou para sempre convertido em um animador cultural das tertúlias dos ricos da Espanha e dos cortesões do rei Juan Carlos, que premiou seus serviços elevando-o como marquês. Convertido também em um malandro profissional a serviço do império, encarregado de apelar ao feitiço das suas palavras para ofuscar, deformar e adormecer as consciências das vítimas do imperialismo. Daí seu ódio que cega a sua inteligência e que o leva a escrever peças tão vergonhosas como as que estamos comentando e das quais deveria se retratar o quanto antes para resgatar parte da honorabilidade perdida a causa de seus escritos políticos.
Relendo estas notas me vem à memória sombrias palavras de outro converso, ainda que não tão reacionário como Vargas Llosa. Na sua novela distópica 1984, George Orwell disse a O’Brien, um dos seus malignos protagonistas, que “as velhas civilizações afirmavam que se baseavam no amor ou na justiça. A nossa se baseia no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções que não sejam o medo, a ira, a vitória e a humilhação. Destruiremos todo o restante, absolutamente tudo”. Isso é o que o capitalismo está fazendo em nosso tempo: é o que acaba de fazer na Bolívia, contando com o beneplácito, a cumplicidade, de intelectuais como Mario Vargas Llosa. A humanidade deve reagir antes que seja demasiado tarde.
Tradução de Franco López