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A profecia haitiana: acabou Bolsonaro, agora você precisa ir embora

Jovem haitiano aborda Bolsonaro e vaticina o fim de seu governo. Para além da cena insólita e poderosa, o Haiti, na sua memória de lutas, resistência e revolução está intimamente ligado ao Brasil de Bolsonaro, uma vez que grande parte dos generais que hoje governam o país participaram da mais recente ocupação do país.

Por Hugo Albuquerque

O Brasil arde: é a febre, é a peste. Com centenas de casos do novo coronavírus (Covid-19) já comprovados — e outros tantos que permanecem ocultos por falta de testagem — testemunhamos as primeiras mortes causadas pela praga nos últimos dias. Ao fundo, a profunda omissão, a inadmissível inércia, a rotunda loucura de um governo que não se preparou para a chegada da doença, fazendo piada sobre a gravidade da situação enquanto preparava sua base de apoio para manifestações contra o Congresso e o STF, tudo para assegurar poderes supremos a Bolsonaro.

Um corte de cena: Brasília, um jovem haitiano surge próximo a entrada do Palácio da Alvorada, quando Bolsonaro se preparava para falar com seus apoiadores, como de costume:

“Bolsonaro, acabou. Você está recebendo mensagem no celular. Todo brasileiro está recebendo mensagem no seu celular. Você não é presidente mais. Você não é presidente mais.

A fala soou como anátema e profecia. Um cruzamento de mago com o Velho do Restelo. A força, a mística e poder dos haitianos que resistem há séculos e cuja última ocupação contou com a participação brasileira, permitindo aos generais que servem, hoje, de linha de frente do governo Bolsonaro saírem da irrelevância, vide o poderosíssimo e radical Augusto Heleno — cuja atuação no Haiti ensejou várias e gravíssimas denúncias.

Como nos lembra nosso querido coeditor Cauê Ameni, Heleno se dizia um médico sem doente” e que a “A missão de paz foi o doente da minha carreira“, quando analisava a situação da sua carreira antes do Brasil liderar as “tropas de paz” da ONU no Haiti: o que, ao final, serviu para substituir uma ocupação americana, enquanto George W. Bush se dedicava à invasão do Iraque, sob bases humanitárias: com a qual o então presidente Lula esperava conseguir prestígio para o Brasil ingressar como membro permanente do Conselho de Segurança e, numa tacada só, distender sua relação com os militares.

Nem o Brasil entrou para o Conselho de Segurança da ONU, nem o Haiti “foi estabilizado”, nem Lula é o presidente do Brasil, tendo enfrentado perseguições mil desde então, inclusive do próprio Heleno, quem desejou “prisão perpétua” para Lula, quando este ainda se encontrava preso: como se os paradoxos e os ironias não fossem suficientes, hoje está diagnosticado com o coronavírus.

Heleno, contudo, se foi um médico sem doente, hoje não é um doente sem médico, ao contrário dos milhões de brasileiros que sequer conseguem testar se estão contaminados pelo coronavírus.

Por quem as panelas batem

Nova cena: panelas ressoam pelo segundo dia seguido nas vizinhanças de classe média de todo o Brasil. Sobretudo em bairros conservadores, e de classe média alta, de São Paulo. O impacto econômico e humanitário do coronavírus atingiu, por ironia, setor que acreditava se beneficiar de Bolsonaro ou, na pior das hipóteses, incólume ao seu eventual fracasso.

Ledo engano. O impacto econômico da derrubada do barril de petróleo por sauditas e russos, em movimento necessário para salvar as economias americana e chinesa no atual contexto de paralisia social e, consequentemente, econômica, revelou o que já se desvelava lentamente entre os fins de 2019 e inícios de 2020: a política econômica de Bolsonaro estava longe de trazer a prosperidade individual que a médio-classe brasileira supunha.

A manutenção da agenda cinicamente chamada de “reformista”, que incluiu a estipulação de um teto ao investimento social na Constituição, a destruição dos direitos trabalhistas — ambas em Temer — e o desmonte da previdência já sob Bolsonaro parecia acender os piores pendores sádicos de colocar os pobres em seu lugar.

Eram tempos de crescimento selvagem, naquilo que se prometia um revival pós-moderno e financeirizado do “milagre econômico” dos anos 1970: tempos loucos de trocar incipientes investimentos em títulos do tesouro, com uma taxa de juros básica desabando, seja pela falta de demanda ou pelo endividamento enorme do Estado, empresas e pessoas físicas, por ações da bolsa, instigadas por ambiciosos e dinâmicos corretores da Faria Lima.

Com cortes de salários e benefícios, investimentos e quetais, com o fechamento de mercados para o Brasil no exterior, dada a política vergonhosamente submissa aos Estados Unidos, o crescimento de importações — mesmo com o real em queda livre, o que tem conexão com a desindustrialização — uma enorme bolha se formava. Enquanto os dólares fugiam do Brasil e da Bolsa desde 2019, a classe média fechava o olho para isso, que só poderiam ser coisa da esquerda ou de gente que torce contra.

Mal sabiam a arapuca que estavam se metendo. Ao contrário das doenças tropicais que assolam o Brasil desde os anos 1990, o coronavírus chega ao Brasil por meio de pessoas com condições de viajar o mundo com dólar já acima de quatro reais e contamina, a priori, da ponta pra baixo da pirâmide de renda no país, inclusive a classe média — que descobriu não ter acesso aos mesmos hospitais de ponta, médicos e testagens da elite real.

As classes médias sul-sudestinas, núcleo duro do Bolsonarismo, que na sua maioria não quer saber quem matou Marielle Franco, nem quantos ativistas morrem no interior do país assassinados por grileiros e garimpeiros, se, como ou o porquê da Amazônia queimar ou, talvez, se os índios estão sendo expulsos de suas terras e massacrados — muito menos como vivem os entregadores de comida ou os motoristas de Uber — descobriram algo novo: a possibilidade da morte na esquina e o risco iminente de empobrecimento — sem um câmbio favorável para liquidar o patrimônio e se ajustar no exterior quando a poeira baixar.

Aprofundamento da crise

Há, também, quem tenha sido ingênuo a ponto de imaginar que Bolsonaro pudesse estar exagerando, só brincando em certas questões, e que seria, como todos diziam, um sucesso econômico — porque, afinal de contas, economia exige “pulso firme”, “seriedade”. Houve quem se chocasse com a última segunda-feira e realmente saísse alguma surpresa.

O cenário que se anuncia é péssimo: com uma economia cada vez mais desindustrializada, o Brasil vê seus bens de exportação perderem o valor no atual cenário, mas os custos de produção aumentam: se isso irá se tornar inflação ou ser absorvido por empresas na forma de prejuízo, dada a baixa demanda, pouco sabemos. De uma forma ou de outra, isso diminuirá a renda do povo brasileiro.

Ainda que se imagine um cenário de prejuízos e crise entre três e seis meses, enquanto a epidemia não cede, ou que se confirme algum tipo de cura para o coronavírus, fato é que os prejuízos objetivos que emergem da crise virão acompanhados desse cenário de aumentos de custos e desvalorização da produção.

Durante muito tempo acreditou-se que o corte de custos trabalhistas e empastelamento do mercado interno poderia “fazer a economia bombar”, fato é que ela apenas comprimiu o mercado interno, enquanto a guerra comercial de Trump se encarrega de comprimir o mercado externo, com certa ajuda do clã Bolsonaro — que insatisfeito com a crise, resolveu ofender a representação diplomática chinesa.

Em outras palavras, Estados Unidos, Europa e China irão ter a oportunidade de se recuperar com commodities baratas, além de medidas internas de alavancagem econômica, proteção ao emprego, aumento da rede de saúde, diminuição da taxa de juros. Será duro, mas as bases para uma recuperação estão dadas.

O Brasil sairá da mesma situação em uma condição desfavorável e com um governo incapaz de investir organizadamente ou organizar o investimento, mobilizando as ainda gigantes reservas para estimular o mercado interno, salvar empresas e empregos: ou melhor, a única salvação às empresas se dará no maior estrangulamento do trabalho, o que satisfaz mais fantasias perversas do que responde à necessidade de avanço da produtividade.

Nesse sentido, a classe média “tradicional” encontrará uma economia agreste, sem possibilidade de investimentos em renda e com maior dificuldade de fazer negócios ou, cada vez mais, de tocar projetos ou adquirir empregos de qualidade.

O Haiti de ontem é aqui

Voltando ao jovem haitiano, cuja presença misteriosa, como bem observou Gregório Duvivier, parecia “alguém vindo do futuro”: muita coisa liga o Brasil ao Haiti e à sua fabulosa Revolução — traída, cercada, mas jamais morta. É das leituras do jovem Hegel sobre o Haiti, como nos lembra Susan Buck-Morss, que possivelmente nasce a Fenomenologia do Espírito.

O Haiti que ressoa como imagem do futuro e fantasma de nosso passado, muito possivelmente, é o processo prático que desencadeou no pensamento revolucionário do século 19 em diante, não apenas pela inspiração de sua revolução e de sua duradoura resistência, mas pelo que ele deu a pensar mundo a fora. Sem Haiti, que seria de Hegel e o que seria de Marx?

É da repressão à Revolução Haitiana, ainda hoje, que produziu os generais de Bolsonaro, os generais que geraram sua figura popularesca e selaram um pacto de sangue com o mercado — o que consiste na maior força de curto prazo de Bolsonaro, mas também sua maior fraqueza de longo prazo como bem observou Alexandre Vasilenkas.

Os pesadelos haitianos assombram o governo. O Haiti que gerou o governo Bolsonaro é o Haiti que parece voltar para se vingar, ou fazer troça.

A verdade verdadeira é que não há mais possibilidade de Bolsonaro continuar no poder. Existe uma inércia que não é apenas da “direita democrática”, que até bem pouco tempo vociferava contra Bolsonaro embora apoiasse sua política econômica — o que aparentemente mudou –, mas também das esquerdas em encarar o óbvio: Bolsonaro é incontrolável e, possivelmente, a pior pessoa do mundo para conduzir o Brasil num momento como este, onde enfrentaremos uma pandemia global com a estrutura pública sucateada e teremos de enfrentar uma profunda crise.

A questão é que nunca estivemos numa situação semelhante. Se ontem, o pronunciamento fracassado de Bolsonaro e seu gabinete de ministros não diminuiu o panelaço contra ele, seu filho Eduardo conseguiu colocar o Brasil numa saia justa diplomática com a China e Bolsonaro em pessoa conseguiu ofender a Itália neste momento.

Não há possibilidade de amordaçar, conter ou neutralizar Bolsonaro. O imenso custo que é ter de resolver uma situação como esta é, no entanto, menor do que ter de lidar com tudo que estará por vir sob esse comando insólito e insustentável. Não, Bolsonaro não terá a grandeza para renunciar.

Bolsonaro é um zumbi e sua continuidade no poder só gera mais dor, incerteza e confusão. Porque o único fundamento para sua estadia no Palácio do Planalto é, no fim das contas, única e exclusivamente um projeto de poder pessoal e familiar, tal e qual uma chefia bárbara.

Motivos para cassação de chapa, impeachment e denúncia por crime comum não faltam para destituir Bolsonaro, mas falta coragem e vontade política. A renúncia, como é quase certo, dificilmente virá, sendo necessário talvez um derradeiro suspiro de lucidez e vitalidade do Brasil — sem o qual Bolsonaro permanecerá no poder: o único modo de um chefe zumbi reinar, afinal, é ter seu próprio povo zumbi.

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