Patrick Cockburn, autor do livro “A origem do Estado Islâmico” (disponível aqui), detalha os erros que o general Qassem Soleimani cometeu nos seus últimos dias de vida ao subestimar os protestos populares no Iraque e como Donald Trump conseguiu cometer um erro ainda maior ao assassina-lo.
Por Patrick Cockburn | Tradução Cauê Seigner Ameni
Os iraquianos têm um instinto bem aguçado para saber se um perigo está próximo devido a sua experiência sombria durante 40 anos de crise e guerra. Há três meses, perguntei a uma amiga em Bagdá como ela e suas amigas viam o futuro, acrescentando que o Iraque me parecia mais pacífico do que em qualquer outro momento desde que os EUA e os britânicos invadiram seu país em 2003.
Ela respondeu que o clima geral entre as pessoas que ela conhecia era sombrio, uma vez que acreditavam que a próxima guerra entre os EUA e o Irã poderia ser travada no Iraque. Ela disse: “muitos dos meus amigos estão tão nervosos com a guerra entre EUA e Irã, que estão usando o seu pagamento de indenização ao deixar o serviço do governo para comprar casas na Turquia”. Ela estava pensando em fazer o mesmo.
Meus amigos iraquianos se saíram bem em seu prognóstico deprimente: a morte do major-general iraniano Qassem Soleimani, por um drone dos EUA no aeroporto de Bagdá, foi um ato irresponsável do presidente Donald Trump que garante que o Iraque enfrente um futuro violento. Pode não levar a um conflito militar em larga escala, mas o Iraque será a arena política e militar onde a rivalidade EUA-Irã será combatida. Os iranianos e seus aliados iraquianos podem ou não realizar algum ato de retaliação imediata contra os EUA, mas seu contra-ataque mais importante será pressionar o governo, o parlamento e as forças de segurança do Iraque a empurrar os EUA inteiramente para fora do Iraque.
Desde a derrubada de Saddam Hussein, o Irã geralmente sai à frente dos EUA em qualquer luta por influência no Iraque. A principal razão para isso é que a comunidade xiita no Iraque, dois terços da população, que é politicamente dominante, tem procurado seus companheiros xiitas no Irã em busca de apoio contra seus inimigos. Ironicamente, a influência e a popularidade iranianas foram seriamente prejudicadas por causa do general Soleimani, que ficou supervisionando os esforços brutais das forças de segurança pró-iranianas e grupos paramilitares esmagar os protestos nas ruas do Iraque, matando pelo menos 400 manifestantes e ferindo outros 15.000.
A crescente fúria popular iraquiana contra o Irã, por sua interferência nos assuntos internos do Iraque, provavelmente será contrabalançada pelo ataque ainda mais flagrante à soberania nacional do Iraque pelos EUA. É difícil pensar em um ato mais grosseiro de interferência de um Estado estrangeiro do que matar um general estrangeiro que estava aberta e legalmente no Iraque. Também morto pelo drone foi Abu Mahdi al-Muhandis, líder do Kata’ib Hezbollah, o poderoso grupo paramilitar libanês pró-iraniano. Os EUA podem considerar comandantes paramilitares como terroristas maus, mas para muitos iraquianos xiitas, eles são as pessoas que lutaram contra Saddam Hussein e as defenderam contra Estado Islâmico (ISIS).
Eu estava conversando com meu amigo pessimista em Bagdá no final de setembro, nos últimos dias de paz antes que a violência retornasse ao Iraque. Entrevistei vários comandantes paramilitares das Forças de Mobilização Popular Hashd al-Shaabi, que afirmavam que os EUA e Israel estavam escalando ataques dentro do país. Eu me perguntava o quanto disso era paranoia.
Conversei com Abu Alaa al-Walai, o líder do Kata’ib Sayyid al-Shuhada, um grupo dissidente do Kata’ib Hezbollah, um dos campos que foram destruídos por um ataque de drones em agosto. Ele disse que 50 toneladas de armas e munições foram explodidas, culpando israelenses e americanos por estarem agindo em conjunto. Confrontado com a pergunta se seus homens atacariam as forças americanas no Iraque no caso de uma guerra EUA-Irã, ele disse: “Absolutamente sim”. Mais tarde, visitei o campo, chamado al-Saqr, nos arredores de Bagdá, onde uma explosão maciça destruiu galpões e queimou equipamentos.
Eu vi outros líderes paramilitares pró-iranianos nessa época. Os ataques com drones os deixaram nervosos, mas tive a impressão de que eles não esperavam realmente uma guerra EUA-Irã. Qais al-Khazali, chefe de Asaib Ahl al-Haq, me disse que não achava que haveria uma guerra “porque Trump não quer uma”. Como evidência disso, ele apontou o fracasso de Trump em retaliar após drones terem atacado as instalações de petróleo sauditas no início de setembro, onde Washington culpou o Irã pela operação.
Os eventos se desenvolveram de maneira muito diferente do que eu e os comandantes paramilitares esperávamos. Alguns dias depois de falar com eles, houve uma pequena manifestação no centro de Bagdá exigindo empregos, serviços públicos e o fim da corrupção. As forças de segurança e os paramilitares pró-iranianos abriram fogo, matando e ferindo muitos manifestantes pacíficos. Embora Qais al-Khazali mais tarde tenha alegado que ele e outros líderes do Hashd estavam tentando frustrar uma conspiração EUA-Israel, ele não me disse nada sobre isso. Parecia provável que o general Soleimani suspeitasse erroneamente de que as manifestações “insignificantes”eram uma ameaça real e ordenou aos paramilitares pró-iranianos que abrissem fogo e, assim, pusessem em prática um plano para suprimi-las.
Tudo isso poderia ter sido desastroso para a influência iraniana no Iraque. Soleimani cometera o erro clássico de um general de sucesso ao imaginar que um tiro de canhão reprimiria rapidamente qualquer sinal de descontentamento popular. Às vezes isso funciona, muitas vezes não – e o Iraque acabou pertencendo à segunda categoria.
O general Soleimani morreu na sequência de seu maior fracasso e erro de julgamento. Mas a maneira de matar pode convencer muitos iraquianos xiitas de que a ameaça à independência do Iraque dos EUA é maior do que a do Irã. Os próximos dias dirão se o movimento de protesto, que sofreu com muita violência, será esvaziado pelos assassinatos no aeroporto de Bagdá.
As guerras são vencidas por generais que cometem o menor número de erros. O general Soleimani cometeu um erro grave nos últimos três meses, transformando um modesto protesto em algo próximo a um levante de massas. Trump pode ter cometido um erro ainda pior matando o general Soleimani e fazendo o Iraque, um lugar onde o Irã tem muito mais chances do que os EUA, a arena na qual a rivalidade entre essas duas potências será combatida. Agora percebo que meu amigo em Bagdá pode estar certo há três meses ao sugerir que a aposentadoria na Turquia pode ser a opção mais segura.