Por Cauê Ameni, Haroldo Ceravolo Sereza, Ivana Jinkings e Rogério Campos (editores Autononomia Literária, Alameda, Boitempo Editorial e Veneta)
Em março de 2024, dezenas de editoras e milhares de autores e leitores brasileiros foram surpreendidos pela retirada de um enorme acervo de livros digitais da Amazon. A gigante e a distribuidora Bookwire não se acertavam sobre porcentagens de seus negócios e assim, sem quê nem por quê, os ebooks evaporaram da plataforma.
Quem é o dono do seu livro? Essa pergunta serve para o leitor, para o autor e o editor. O processo de produção e circulação de uma obra é uma realização social, que envolve papéis diversos. É trabalho e tempo humano gastos por quem escreve, edita e lê. Assim, a decisão da Amazon foi um grave ataque à bibliodiversidade.
Os fatos de março sugerem que os livros digitais têm donos, que não se importam com o elo mais frágil do mundo das ideias. O episódio mostrou como a leitura é controlada economicamente por empresas descoladas da lógica social e cultural. São grupos transnacionais com os quais o diálogo é impositivo, entre forças desiguais e descombinadas.
Os ebooks sumiram e depois voltaram, quando as empresas fecharam um acordo. Não se falou uma linha, nos parcos comunicados, em indenizar editores, autores, leitores. Você, leitor, nada vale para as gigantes digitais, embora o cadastro e as informações que recolhem por meio de cookies valham muito dinheiro.
Amazon e Bookwire têm suas sedes longe daqui. E o Brasil foi apenas um detalhe da guerra mundial entre as duas empresas. A Amazon começou o ataque onde a legislação era mais débil: Itália, Espanha, Brasil – até chegar à Alemanha e o resto onde atua. A condução da negociação tratou os conteúdos em jogo como se tivessem sido produzidos por elas, demonstrando uma desproporcional concentração de recursos econômicos e poder no setor.
O caso aponta para um futuro perigoso. No que se refere aos livros impressos, a Amazon ainda não detém 87% do mercado. Mas já ultrapassa os 50%, uma situação inédita na história do livro. O país viveu há poucos anos a euforia das redes de grandes livrarias, que expulsaram tantas casas independentes. Cultura, FNAC e Saraiva usavam seu poder de compra para impor condições únicas. Mas nem juntas conseguiram consolidar 50% do mercado. Hoje, a Amazon não tem concorrentes. É apenas questão de tempo chegar aos 90% nos livros impressos – a menos que algo seja feito.
Há diversas cidades com centenas de milhares de habitantes no Brasil e apenas uma livraria, ou nenhuma. Para dar alguma chance de sobrevivência às independentes, há décadas editores e livreiros propõem a Lei do Preço Comum, em debate no Senado. A ideia é limitar os descontos no ano de lançamento das obras, de modo que a livraria da esquina possa tentar competir com grandes redes e corporações.
Países que adotaram leis semelhantes, como França, Alemanha, Portugal e Argentina, viram o preço médio do livro cair e hoje têm mais livrarias – “mais livrarias” pode parecer desnecessário quando pensamos na força da internet, mas vamos trocar de mercadoria: você gostaria de comprar carne apenas pela web? Deixaria de ir ao restaurante preferido para encontrar amigos e servi-los por um aplicativo? O acesso à cultura e à leitura tem de ser ainda mais plural e diverso que o acesso aos outros produtos.
As livrarias de rua cumprem um papel essencial. Algumas atuam como centros culturais a promover debates, clubes de leitura etc., raramente com algum apoio do Estado. São as pequenas livrarias que dão espaço às pequenas editoras, ajudam a lançar novos autores e a promover o debate de ideias.
A Amazon é, antes de tudo, um aplicativo. O governo Lula acaba de propor uma regulação do trabalho nas plataformas. Algo semelhante deve ser pensado para a distribuição de livros, físicos e digitais. Não é possível que tema tão importante para a cultura fique à mercê de um monopólio que nem sabemos onde fica. O livro é um bem cultural, não pode ter um dono só.
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Artigo publicado originalmente no Globo.