A tragédia que fez museu ser tragado pelas chamas é fruto de cortes e falta de verba para manutenção, como explicam os autores do livro Economia para Poucos ao destrincharem as consequências da austeridade. Pesquisadores ainda alertam que com a PEC 95 do congelamento dos gastos a tendência é que tudo se deteriore ainda mais rápido.
O Museu Nacional, literalmente, pegou fogo. Mas isso não foi um acidente ou um acaso do destino. É um projeto: as consequências da austeridade. O museu, com seu riquíssimo acervo, foi deixado às traças ao ter sua pequena verba de manutenção cortada e contingenciada, enquanto juízes e parlamentares continuaram a ver seus já enormes ganhos crescerem ainda mais.
O livro Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, lançado recentemente pela Autonomia Literária na Flip em julho deste ano, explica por meio de um estudo técnico e acurado dos impactos da austeridade no Brasil. Os autores destrincharam os impactos dos inconsequentes cortes de verbas — inclusive para áreas estratégicas para o Museu Nacional como Cultura e Educação — em todas as áreas.
Selecionamos dois capítulos do livro: um escrito por João Brant, cientista político e ex-secretário do Ministério da Cultura, para entender os impactos dos cortes na cultura, e outro escrito pela Ana Luíza Matos de Oliveira, doutora em economia na Unicamp e professora da FLACSO, para entender as consequências dos cortes na educação. Boa leitura.
A morte lenta das políticas federais de cultura
Por João Brant
As políticas federais de cultura vivem em 2018 a combinação de duas tendências contraditórias em relação a seu orçamento. A mais importante é a redução crítica do orçamento discricionário do Ministério da Cultura, destinado ao pagamento de todas as despesas de custeio, funcionamento de unidades e a maior parte de suas políticas públicas. Esta parte do orçamento já oscilava desde 2011, mas sofreu um corte significativo em 2015 e tornou-se ínfima a partir de 2017.
Ao mesmo tempo, há um crescimento significativo do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que sustenta grande parte das políticas voltadas para este setor. O aumento é possível em função do crescimento da arrecadação da contribuição para o desenvolvimento da indústria audiovisual (Condecine), que alimenta o FSA e tem como principal fonte pagadora as empresas de telecomunicações. O uso desse recurso para o audiovisual tem crescido, mesmo em um cenário de cortes, porque ele é atribuído como ‘despesas financeiras’, ou seja, pode ser usado apenas para crédito e investimentos retornáveis, e não entra na conta do superávit primário.
Essas duas tendências, olhadas em conjunto, mostram as carências e as potências das políticas federais. Enquanto, de maneira geral, o MinC e as políticas culturais definham, a parte da política do audiovisual voltada a seu desenvolvimento como indústria se fortalece como política de Estado, fruto de um arranjo robusto construído especialmente entre 2006 e 2011. Não é possível, contudo, separar totalmente os dois cenários. O impacto das políticas de austeridade sobre o Ministério da Cultura é de tal ordem que há o risco de ele se tornar inviável, como instituição, em poucos anos.
Da navalha de 2015 à guilhotina de 2017
O MinC chegou a 2015 tendo vivido desde 2011 a oscilação dos limites de empenho de seu orçamento discricionário, com perdas reais na sua capacidade de realizar políticas culturais. Em 2015, contudo, assistiu-se ao maior contingenciamento do orçamento do Governo Federal das últimas décadas. Foram mais de R$ 70 bilhões de reais contingenciados no primeiro decreto de programação (que define os limites de empenho e pagamento para o ano), e mais R$ 8,5 bilhões nos decretos até o final do ano. Ao final, o governo contingenciou mais de 40% das despesas discricionárias previstas no orçamento.
No MinC, considerado o limite final, o corte em relação ao orçamento foi de 36% das discricionárias. Concretamente, em um cenário de crise, o orçamento comprimiu as despesas finalísticas. No ano de 2015, todas as secretarias e diretorias finalísticas do MinC executaram apenas R$ 109 milhões.
Na prática, o arrocho sobre as áreas-fim cria um círculo vicioso: quanto menos recursos elas têm, menos continuidade é possível esperar das políticas e menos sentido elas passam a ter. O Cultura Viva, por exemplo, que até 2010 executava mais de R$ 100 milhões por ano, foi bastante reduzido. Toda a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, responsável pelo programa, teve pouco mais de R$ 32 milhões para investir em 2015. A Funarte passou o ano todo desenhando uma nova política nacional para as artes, com divisão de papéis e articulação com os entes federados, mas sua situação orçamentária não permitiu sequer o pagamento integral de editais voltados ao teatro, à dança e ao circo.
O contingenciamento recorde gerou um esforço grande para baixar as despesas de custeio, como contratos de terceirizados (segurança, limpeza etc.) e outras despesas de manutenção e funcionamento das unidades. Em um esforço voltado a ganhar espaço para as atividades fim no orçamento, a Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração do MinC coordenou um esforço interno e de diálogo com as áreas de gestão das sete entidades vinculadas e conseguiu cerca de 30% de diminuição no valor dos contratos.
Ainda assim, as áreas finalísticas ficaram muito prejudicadas. O caso mais crítico é o do Fundo Nacional da Cultura. O Fundo foi planejado como a principal fonte de apoio do Ministério da Cultura a projetos culturais, e deveria ser usado como base do Sistema Nacional de Cultura. Em 2010, o FNC chegou a empenhar mais de R$ 400 milhões em 2010. Em 2015, foram empenhados apenas R$ 74,4 milhões para ações de apoio a projetos culturais.
Com o acirramento da crise fiscal, o projeto de lei orçamentária de 2016 foi construído com base no limite de execução em 2015, o que mantinha as enormes dificuldades operacionais para o Ministério. Contudo, a situação ainda piorou com a opção da presidenta Dilma Roussefff de alterar o PLOA para que projetasse superávit fiscal, e não déficit, como na peça origina. Naquele momento, o MinC perdeu R$ 110 milhões de seu orçamento discricionário, o que se agravou com o corte de mais R$ 55 milhões durante a tramitação no Congresso Nacional.
A situação era de tal forma grave que a direção do MinC conseguiu negociar que incidisse sobre ele o menor contingenciamento entre os ministérios naquele início de ano. Contudo, em novo corte realizado em 30 de março, nenhum ministério foi poupado, e a Cultura teve o limite rebaixado para um orçamento discricionário de R$ 430,3 milhões. O contingenciamento era temporário, mas ainda assim fez o governo Dilma terminar com orçamento discricionário menor que o de 2002, considerando os valores reais.
Os impactos do governo Temer e da Emenda Constitucional 95
A crise do Ministério da Cultura, contudo, estava apenas no início. Com a destituição da presidenta Dilma Roussefff, a primeira opção do governo Temer foi extinguir o MinC. No mesmo dia em que assumiu, em 11 de maio de 2016, Temer publicou medida provisória que fundia o Ministério da Cultura ao Ministério da Educação. A ação de desmonte deflagrou um processo de ocupação da sede da Funarte e de equipamentos de cultura em todo o país e inúmeras manifestações públicas de artistas e ativistas culturais.
Esta luta foi o principal processo político de crítica e resistência ao golpe que se consumava, e representou uma disputa de visões entre o Brasil contemporâneo e o arcaísmo de Temer. A disputa pela existência do Ministério buscava impedir que um governo ilegítimo deixasse como legado para o Estado uma visão retrógrada de sociedade e de desenvolvimento, que seria difícil de reverter em pouco tempo. Derrotado publicamente, Temer recuou, e nove dias depois anunciou a recriação do Ministério da Cultura.
Sua recriação, contudo, não significou nenhum alento. O ministério perdeu 36% dos cargos comissionados de direção e assessoramento, e seu orçamento seguiu em declínio. Em dezembro do mesmo ano, foi aprovada a proposta de teto de gastos, transformada na Emenda Constitucional 95.
O teto de gastos estabelecido pela emenda constitucional 95 atinge em cheio as despesas discricionárias, porque elas são o único espaço de manobra das despesas primárias. Como discutido no capítulo 2 deste livro, dado que os gastos com pessoal são uma despesa praticamente fixa e a previdência e parte significativa dos gastos sociais com saúde, assistência social e educação são despesas obrigatórias, o impacto incide diretamente sobre as despesas discricionárias em todas as áreas.
O achatamento das demais despesas pode levar, em poucos anos, a uma situação em que os Ministérios dependentes das despesas discricionárias deixem de ter condição mínima de sustentação institucional. No caso das políticas culturais, a situação já se tornou absolutamente crítica. Se em 2014 o MinC havia terminado o ano com R$ 1,02 bilhão11 liberado para seu orçamento discricionário, os R$ 553,4 milhões de 2017 significaram uma perda real de mais de 45% dos recursos em três anos. Pelo peso das despesas de manutenção e funcionamento da administração direta e das entidades vinculadas, o peso recaiu diretamente sobre as ações finalísticas.
A Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, responsável pelo Cultura Viva, minguou para R$ 12 milhões (Portaria 76 da Secretaria-Executiva, de 14 de março de 2018 (DOU 20.03.18), o que equivale ao orçamento anual de um único museu mantido pelo Estado de São Paulo, por exemplo. Não à toa, o Ministério silenciosamente descontinuou o Cultura Viva, anunciando nas linhas miúdas que o Prêmio de Cultura Popular, que não é uma política, mas um simples prêmio para 500 projetos de 20 mil reais, entraria em seu lugar (Leitão, 2018a). Já o Fundo Nacional da Cultura contou com apenas R$ 27,7 milhões em 201713, o que significa o virtual desaparecimento das ações de apoio à sociedade civil. Se antes já era difícil a implantação do modelo de relação fundo-a-fundo com estados e municípios, neste quadro o mecanismo é impensável.
Na prática, o MinC hoje já se reduziu praticamente ao custeio e funcionamento de suas unidades. À parte o audiovisual, o único programa finalístico que ainda mantém algum recurso é o PAC Cidades Históricas, cujo valor é repassado à parte para a unidade executora, o Iphan. Mesmo assim, com valores menores ano a ano.
O problema se torna ainda mais grave ao se detectar que o próprio ministro Sérgio Sá Leitão não conhece de perto os números do Ministério. Por mais de uma vez, Leitão declarou à imprensa que o custeio estava fora dos R$ 550 milhões de orçamento (Leitão, 2018a). Todavia, a realidade é a inversa: quase a totalidade deste orçamento é dedicada a custeio. Pior ainda, o ministro afirmou que este valor é compatível com o bom funcionamento das instituições do MinC e cobre plenamente seu funcionamento (Leitão, 2018b).
Os efeitos das políticas de austeridade ficam claros ao se analisar a evolução do limite de pagamentos do Ministério da Cultura, justamente o parâmetro definido pela EC 95 como referência para o orçamento do ano seguinte.
A tabela mostra que o orçamento da Cultura está em queda livre, e confirma a tendência de que as despesas discricionárias são as mais afetadas pela emenda constitucional 95.
Considerado desnecessário por Temer, prejudicado pelo teto de gastos públicos e desamparado pela falta de empenho de seu ministro em trabalhar por sua recuperação, o Ministério padece em morte lenta. Com ele, morre aos poucos também parte significativa das políticas culturais.
Educação superior no Brasil: a inclusão interrompida
Por Ana Luíza Matos de Oliveira
O Brasil tem um histórico de desigualdades de renda, de gênero, de raça/cor e regional que se combinam para tornar o país um dos mais desiguais do mundo. Tal desigualdade, o maior problema do Brasil, se reflete também no acesso aos direitos sociais, como a educação e, no caso deste capítulo específico, a educação superior (ES).
A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases Nacional (LDB) (Lei 9.394/96) são diretrizes fundamentais para a ES, mas coincidem temporalmente com a aplicação das políticas do Consenso de Washington no Brasil. Já nos anos 2000, o Brasil passou por um período de grande crescimento do acesso à ES, acompanhado de sua democratização. É importante também mencionar aqui o Plano Nacional de Educação (PNE), lançado em 2014.
Com a crise política (amplamente discutido em Guerra et al., 2017) e a adoção de um choque recessivo a partir do início de 2015, como discutido no segundo capítulo deste livro, o quadro muda. Primeiro, a partir de 2015 com o um plano de ajuste de curto prazo da economia brasileira, depois a partir de 2016, com a mudança de governo, com o desmonte das políticas sociais, em especial pela constitucionalização da austeridade com a Emenda Constitucional 95, tomando como base o já subtraído (pela austeridade) patamar de gastos de 2016. Assim, os avanços na ES diminuíram, foram freados ou revertidos.
Neste capítulo, apresentamos a expansão da ES brasileira desde 1988 – com maior enfoque nos anos 2000, dada a facilidade de obtenção de dados e sua comparação com o período pós 2014 – e a mudança no perfil dos estudantes universitários como decorrência de tais políticas. Na segunda seção, sistematizamos os cortes realizados a partir de 2015. Na terceira seção, fazemos propostas e concluímos.
Avanços e limites das políticas públicas na educação no Brasil recente
Antes de introduzir a discussão sobre políticas públicas e indicadores nesse capítulo, apresentamos o quadro do financiamento da ES no Brasil. Gastos computados na função educação, segundo metodologia do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (SIOP) são uma forma de visualizar os gastos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União (Rossi
et al., 2017). Nos anos recentes, os gastos da função Educação estão concentrados no Ministério da Educação e no Tesouro Nacional, que é responsável pelas Operações Oficiais de Crédito.
Segundo dados do SIOP de 2000 a 2017, cerca de um terço da dotação atual da função Educação foi alocado na dotação da subfunção Educação Superior. Nesse período, houve constante expansão da função Educação em termos reais, mas com queda de 2015 a 2016 (Rossi et al., 2017). Da mesma forma, a subfunção Educação Superior teve um crescimento real acentuado nos anos 2000, segundo os dados do gráfico 1, mas, de 2015 a 2016, houve queda real da dotação, valor empenhado, liquidado e pago.
Sobre a repartição da Dotação Atual da Subfunção Educação Superior, os Investimentos chegaram ao seu ápice em 2012 como percentual da Dotação Atual (19,17%) e, de 2007 a 2015 mantiveram seu percentual na casa dos dois dígitos. Em termos absolutos, como mostra o gráfico 2, os valores crescem de 2004 a 2012 (condizendo com a implantação do Reuni) e, a partir desse ponto, caem.