A teórica feminista Nancy Fraser aponta para uma das facetas mais antifeminista do neoliberalismo: a “crise do cuidado”, onde os trabalhos domésticos e de cuidado com idosos e crianças são invisibilizados embora sejam indispensáveis para que a sociedade e a economia capitalista funcionem, gerando uma crise no equilíbrio entre trabalho familiar, pobreza e esgotamento social.
Por Nancy Fraser, autora do livro “O velho está morrendo e o novo não pode nascer“.
Tradução de José Ivan Rodrigues de Sousa Filho (PPGFil/UFSC), publicado na revista Princípios.
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A “crise do cuidado” é, presentemente, uma importante questão publicamente debatida. Frequentemente associada às ideias de “pobreza de tempo”, “equilíbrio entre trabalho e família” e “esgotamento social”, essa crise diz respeito às pressões que, provindas de diversas direções, estão a espremer, atualmente, um conjunto-chave de capacidades sociais: as capacidades sociais disponíveis para dar à luz e criar crianças, cuidar de amigos e familiares, manter lares e comunidades mais amplas e, de modo mais geral, sustentar conexões. Historicamente, esses processos de “reprodução social” foram e continuam a ser representados como trabalho das mulheres, embora também os homens sempre tenham desempenhado uma parte dele. Tal trabalho, constituído tanto de labor afetivo como de labor material e frequentemente realizado sem paga, é indispensável para a sociedade. Sem ele, não poderia haver qualquer cultura, qualquer economia, qualquer organização política. Nenhuma sociedade que mine a reprodução social de modo sistemático pode durar por muito tempo. Hoje, porém, uma nova forma de sociedade capitalista está fazendo exatamente isso. O resultado é uma crise enorme, não só do cuidado, mas da reprodução social nesse sentido mais amplo.
Compreendo essa crise como um aspecto de uma “crise geral” que também abrange as vertentes econômica, ecológica e política, vertentes todas que tanto se entrecruzam como se exacerbam mutuamente. A vertente relacionada à reprodução social é uma importante dimensão dessa crise geral, mas, frequentemente, é negligenciada nas discussões atuais, que enfocam, sobretudo, os perigos econômicos ou ecológicos. Esse “separatismo crítico” é problemático; a vertente social é tão central para a crise mais ampla que nenhuma das outras pode ser apropriadamente compreendida caso seja dela abstraída. No entanto, o inverso também é verdadeiro. A crise da reprodução social não é independente e não pode ser adequadamente entendida caso seja isolada. Como, então, ela deveria ser compreendida? O que defendo é que a “crise do cuidado” é mais bem interpretada como uma expressão mais ou menos aguda das contradições sociorreprodutivas do capitalismo financeirizado. Essa formulação sugere duas ideias. Em primeiro lugar, as atuais pressões sobre o cuidado não são acidentais, mas têm profundas raízes sistêmicas na estrutura de nossa ordem social, que caracterizo aqui como capitalismo financeirizado. Não obstante – e esse é o segundo ponto –, a atual crise da reprodução social indica que há algo podre não só na forma atual do capitalismo, a forma financeirizada, mas na sociedade capitalista per se.
O que defendo é que toda forma de sociedade capitalista incuba uma “tendência de crise” (ou contradição) socior-reprodutiva profundamente arraigada: de um lado, a reprodução social é uma condição de possibilidade da acumulação de capital continuada; de outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social dos quais ele depende. Essa contradição sociorreprodutiva do capitalismo está na raiz da chamada crise do cuidado. Conquanto seja inerente ao capitalismo enquanto tal, ela assume um aspecto diferente e distintivo em cada forma historicamente específica da sociedade capitalista – no capitalismo liberal, concorrencial, do século XIX; no capitalismo administrado pelo Estado do período do pós-guerra; e no capitalismo financeirizado neoliberal de nosso tempo. Os déficits de cuidado que experienciamos hoje são a forma tomada por essa contradição na terceira e mais recente fase do desenvolvimento capitalista.
Para desenvolver essa tese, proponho, em primeiro lugar, uma explicação da contradição social do capitalismo enquanto tal, em sua forma geral. Em segundo lugar, esboço uma explicação de seu desdobramento histórico nas duas fases anteriores do desenvolvimento capitalista. Por último, sugiro uma leitura dos “déficits de cuidado” hodiernos como expressões da contradição social do capitalismo em sua presente fase, a fase financeirizada.
Parasitando o mundo da vida
A maioria dos analistas da crise contemporânea põe em foco as contradições internas ao sistema econômico capitalista. No coração desse sistema – eles defendem –, está encravada uma tendência à autodesestabilização que se expressa em crises econômicas periódicas. Guardados os limites de seu alcance, esse modo de compreender a crise contemporânea é correto; no entanto, ele não dá conta de retratar todas as tendências de crise inerentes ao capitalismo. Adotando uma perspectiva economicista, ele compreende o capitalismo de maneira demasiadamente estreita, como um sistema econômico simpliciter. Em vez disso, adotarei uma compreensão ampliada do capitalismo que abarca tanto sua economia oficial como as condições “não econômicas” de fundo dessa economia. Tal compreensão ampliada nos permite conceituar e criticar todo o espectro das tendências de crise do capitalismo, incluindo as que têm como eixo a reprodução social.
O que argumento é que o subsistema econômico do capitalismo depende de atividades sociorreprodutivas que lhe são externas e que constituem uma de suas condições de possibilidade de fundo. Entre essas condições de fundo, também se incluem as funções de governação exercidas pelos poderes públicos e a disponibilidade da natureza como uma fonte de “insumos produtivos” e como um “esgoto” para o lixo da produção. Aqui, no entanto, enfocarei o modo como a economia capitalista depende de – poderíamos dizer: parasita – atividades de prover, cuidar e interagir que produzem e mantêm vínculos sociais, apesar de essa economia não lhes conferir qualquer valor monetizado e de tratá-las como se custassem nada. Chamada quer de “cuidado”, quer de “labor afetivo”, quer de “subjetivação”, tal atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais dotados de corpo, ao mesmo tempo que os constitui também como seres sociais, formando seu habitus e o ethos cultural no qual eles se movem.
O trabalho de dar à luz e socializar as crianças é central para esse processo, assim como cuidar dos idosos, manter lares, construir comunidades e sustentar os sentidos compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que dão suporte à cooperação social. Em sociedades capitalistas, muito dessa atividade, embora não toda ela, prossegue fora do mercado – em lares, bairros, associações da sociedade civil, redes informais e instituições públicas, tais como as escolas; e relativamente pouco dela toma a forma de trabalho remunerado. A atividade sociorreprodutiva não remunerada é necessária para a existência do trabalho remunerado, para a acumulação de mais-valor e para o funcionamento do capitalismo enquanto tal. Nada disso poderia existir caso faltassem o trabalho doméstico, a criação de crianças, a escolarização, o cuidado afetivo e uma gama de outras atividades que servem para produzir novas gerações de trabalhadores e repor as existentes, bem como para manter vínculos sociais e compreensões compartilhadas. A reprodução social é uma indispensável condição de fundo para que seja possível a produção econômica numa sociedade capitalista.
Desde, pelo menos, o período industrial, no entanto, as sociedades capitalistas separam o trabalho de reprodução social do de produção econômica. Associando o primeiro às mulheres e o último aos homens, elas remuneram as atividades “reprodutivas” na moeda do “amor” e da “virtude”, ao passo que compensam o “trabalho produtivo” na do dinheiro. Desse modo, as sociedades capitalistas criaram uma base institucional para formas novas, modernas, de subordinação das mulheres. Arrancando o labor reprodutivo do universo mais amplo das atividades humanas, no qual o trabalho das mulheres tivera, antes, um lugar reconhecido, as sociedades capitalistas o relegaram a uma “esfera doméstica” institucionalizada havia pouco, esfera na qual a importância social que ele tem foi obscurecida. E, nesse mundo novo, no qual o dinheiro se tornou um primordial veículo de poder, o fato de ele não ser pago selou a questão: as que desempenham esse trabalho estão estruturalmente subordinadas aos que auferem remunerações em espécie, ao mesmo tempo que o trabalho delas fornece uma precondição necessária para o trabalho remunerado – e ao mesmo tempo que o trabalho delas também se torna saturado de e mistificado por novos ideais domésticos de feminilidade.
Em geral, portanto, as sociedades capitalistas separam a reprodução social da produção econômica, associando a primeira às mulheres e obscurecendo sua importância e valor. Paradoxalmente, no entanto, tais sociedades fazem com que suas economias oficiais sejam dependentes dos mesmos processos de reprodução social cujo valor elas denegam. Essa peculiar relação de, ao mesmo tempo, separação, dependência e denegação é uma fonte ínsita de instabilidade: de um lado, a produção econômica capitalista não é autossustentável, senão que depende da reprodução social; de outro, seu impulso para a acumulação ilimitada ameaça desestabilizar os próprios processos e capacidades de reprodução dos quais o capital – assim como o resto de nós – necessita.
Com o decorrer do tempo, o efeito, como veremos, pode ser expor ao perigo as condições sociais necessárias da economia capitalista. Aqui, de fato, encontra-se uma “contradição social” inerente à estrutura profunda da sociedade capitalista. Da mesma maneira que as contradições econômicas que os marxistas puseram em relevo, também essa contradição baseia uma tendência de crise. Nesse caso, no entanto, a contradição não está localizada “dentro” da economia capitalista, mas na fronteira que separa a produção da reprodução e, simultaneamente, conecta aquela a esta. Nem intraeconômica nem intradoméstica, trata-se de uma contradição entre esses dois elementos constitutivos da sociedade capitalista.
Frequentemente, é claro, essa contradição é silenciosa, e a respectiva tendência de crise permanece obscurecida. Ela se agudiza, todavia, quando o impulso do capital para a expansão da acumulação se desprende de suas bases sociais e se volta contra elas. Nesse caso, a lógica da produção econômica passa por cima da lógica da reprodução social, desestabilizando os próprios processos dos quais o capital depende – comprometendo as capacidades sociais, tanto as domésticas como as públicas, que são necessárias para sustentar a acumulação em longo prazo. Destruindo suas próprias condições de possibilidade, a dinâmica de acumulação do capital, realmente, come seu próprio rabo.
Realizações históricas
Essa é a estrutura da tendência geral de crise social do “capitalismo enquanto tal”. No entanto, a sociedade capitalista só existe em formas historicamente específicas, ou regimes de acumulação. De fato, a organização capitalista da reprodução social passou por grandes viradas históricas, frequentemente em decorrência da contestação política – especialmente nos períodos de crise, quando os atores sociais travam lutas a respeito das fronteiras que estremam a “economia” da “sociedade”, a “produção” da “reprodução” e o “trabalho” da “família”, conseguindo, por vezes, redefini-las. Tais “lutas fronteiriças” – é assim que as tenho chamado – são tão centrais para as sociedades capitalistas quanto as lutas de classes analisadas por Marx, e as viradas que elas produzem marcam transformações epocais. Uma perspectiva que coloque no primeiro plano essas viradas pode distinguir, ao menos, três regimes de reprodução social e produção econômica na história do capitalismo.
- O primeiro é o regime oitocentista do capitalismo liberal concorrencial. Combinando a exploração industrial no centro europeu com a expropriação colonial na periferia, esse regime tendia a deixar os trabalhadores reproduzir-se “autonomamente”, fora dos circuitos de valor monetizado, ao passo que os Estados olhavam e não se envolviam. Mas ele também criou um imaginário novo, burguês, em torno da vida familiar. Representando a reprodução social como o nicho das mulheres no interior da família privada, esse regime elaborou o ideal das “esferas separadas”, ao mesmo tempo que privava a maioria das pessoas das condições necessárias para realizá-lo.
- O segundo regime é o capitalismo administrado pelo Estado do século XX. Tendo como bases a produção industrial em grande escala e o consumismo doméstico no centro e sendo sustentado pela expropriação colonial e pós-colonial ainda em andamento na periferia, esse regime internalizava a reprodução social através do provimento de bem-estar social por Estados e empresas. Modificando o modelo vitoriano das esferas separadas, ele promovia o ideal aparentemente mais moderno do “salário com que se consegue manter uma família”, ainda que, mais uma vez, relativamente poucas famílias pudessem alcançar tal ideal.
- O terceiro regime é o capitalismo financeirizado globalizador do tempo presente. Esse regime desloca a indústria para regiões onde as remunerações são mais baixas, recruta as mulheres para a força de trabalho paga e promove a redução dos investimentos estatais e empresariais em bem-estar social. Expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ele diminui, simultaneamente, as capacidades de que elas dispõem para desempenhar esse trabalho. O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode – tudo lustrado pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois ganhadores de dinheiro”.
Em cada regime, portanto, as condições sociorreprodutivas para a produção capitalista assumem uma forma institucional diferente e incorporam uma ordem normativa diferente: primeiro, as “esferas separadas”; depois, o “salário com que se consegue manter uma família”; agora, a “família de dois ganhadores de dinheiro”. Em cada caso, além do mais, a contradição social da sociedade capitalista assume um aspecto diferente, encontrando expressão num conjunto diferente de fenômenos de crise. Em cada regime, por último, a contradição social do capitalismo incita formas diferentes de luta social – lutas de classes, decerto, mas também lutas fronteiriças – e ambas também se entrelaçam com outras lutas, lutas destinadas a emancipar as mulheres, os escravizados e os povos colonizados.
O processo de produção de donas de casa
Consideremos, primeiro, o capitalismo liberal concorrencial do século XIX. Nesse período, os imperativos de produção e os de reprodução pareciam estar em contradição direta uns com os outros. Nos primeiros polos manufatureiros do centro capitalista, os industrialistas empurraram mulheres e crianças para fábricas e minas, ávidos por seu trabalho barato e sua suposta docilidade. Recebendo uma ninharia como paga e obrigadas a trabalhar por extensas horas em condições insalubres, essas trabalhadoras se tornaram ícones da desconsideração do capital para com as relações e as capacidades sociais que lhe sustentavam a produtividade (Tilly, Scott, 1987).
O resultado foi uma crise em, ao menos, dois níveis: de um lado, uma crise de reprodução social entre as classes pobres e trabalhadoras, cujas capacidades de subsistência e reposição eram tensionadas até o limite; de outro, um pânico moral entre as classes médias, que se escandalizavam com o que compreendiam como a “destruição da família” e a “dessexualização” das mulheres proletárias. Tão árdua era essa situação que mesmo Marx e Engels, críticos tão argutos, confundiram esse primeiro conflito frontal entre a produção econômica e a reprodução social com um ponto de estrangulamento. Imaginando que o capitalismo teria entrado em sua crise terminal, eles acreditavam que, ao lacerar as famílias da classe trabalhadora, o sistema também estaria erradicando a base da opressão sofrida pelas mulheres (Marx, Engels, 1978, p. 487-488; Engels, 1902, p. 90-100). Mas o que, na realidade, veio a suceder foi exatamente o contrário: com o decorrer do tempo, as sociedades capitalistas encontraram recursos para administrar essa contradição – em parte, criando “a família” em sua restrita forma moderna; inventando sentidos novos, intensificados, para a diferença de gênero; e modernizando a dominação masculina.
O processo de ajuste começou, no centro europeu, com a legislação protetiva. A ideia era estabilizar a reprodução social por meio da limitação da exploração das mulheres e das crianças no trabalho fabril (Woloch, 2015). Tendo como ponta de lança reformadores oriundos da classe média em aliança com nascentes organizações de trabalhadores, essa “solução” refletia um amálgama complexo de diferentes motivos. Um dos objetivos, celebremente descrito por Karl Polanyi (2001, p. 87, 138-139, 213), era defender a “sociedade” contra a “economia”. Outro era atenuar a ansiedade a respeito do “nivelamento dos gêneros”. Mas esses motivos também estavam entrelaçados com algo mais: com uma insistente defesa da autoridade masculina sobre as mulheres e as crianças, especialmente no interior da família (Baron, 1981). Por conseguinte, a luta para assegurar a integridade da reprodução social se enredou na defesa da dominação masculina.
O efeito pretendido por essa luta, no entanto, era o silenciamento da contradição social no centro capitalista – ao mesmo tempo que a escravidão e o colonialismo a elevavam a um grau extremo na periferia. Criando o que Maria Mies (2014, p. 74) chamou de “processo de produção de donas de casa” como a outra face da colonização, o capitalismo liberal concorrencial elaborou um novo imaginário em torno dos gêneros, imaginário que tinha como eixo as esferas separadas. Figurando a mulher como “o anjo do lar”, os proponentes desse imaginário intentavam criar um lastro estabilizador para a volatilidade da economia. O mundo da produção, um mundo de competição renhida, devia ser flanqueado por um “porto seguro no mundo desalmado” (Zaretsky, 1986; Coontz, 1988). Desde que cada lado se mantivesse na esfera que lhe era designada como própria e servisse como complemento do outro, o conflito potencial entre eles se manteria em segredo.
Na realidade, essa “solução” se mostrou bamba. A legislação protetiva não podia assegurar a reprodução do trabalho quando os salários permaneciam abaixo do nível necessário para manter uma família; quando os cortiços abarrotados e encerrados na poluição inviabilizavam a privacidade e causavam danos aos pulmões; quando o próprio emprego (caso houvesse emprego) estava sujeito a flutuações descontroladas devido às falências, às quebras do mercado de títulos e aos pânicos financeiros. E tampouco tais arranjos satisfizeram os trabalhadores. Protestando por salários mais altos e melhores condições de trabalho, eles formaram sindicatos, puseram-se em greve e se filiaram a partidos trabalhistas e socialistas. Dilacerado pelo conflito de classes abrangente e cada vez mais agudo, o futuro do capitalismo parecia qualquer coisa, menos seguro.
As esferas separadas também se mostraram problemáticas. Mulheres pobres, racializadas e oriundas da classe trabalhadora não estavam em posição de satisfazer os ideais vitorianos de vida doméstica; se a legislação protetiva mitigava sua exploração direta, ela não provia qualquer apoio material ou compensação dos salários perdidos. E tampouco as mulheres de classe média que podiam conformar-se aos ideais vitorianos estiveram sempre contentes com sua situação, que combinava o conforto material e o prestígio moral com a menoridade jurídica e a dependência institucionalizada. Para ambos os grupos, a “solução” das esferas separadas viera, sobretudo, em prejuízo das mulheres. Mas ela também jogava um grupo contra o outro – o que é exemplificado pelos conflitos oitocentistas a respeito da prostituição, que perfilaram as preocupações filantrópicas das mulheres da classe média vitoriana contra os interesses materiais de suas “irmãs decaídas” (Walkowitz, 1980; Hobson, 1990).
Uma dinâmica diferente desdobrava-se na periferia. Ali, dado que o colonialismo extrativista devastava as populações subjugadas, nem as esferas separadas nem a proteção social tinham lugar. Longe de buscar proteger as relações indígenas de reprodução social, as potências metropolitanas promoviam, de modo ativo, sua destruição. Os camponeses eram saqueados, suas comunidades eram destroçadas, para que fossem fornecidos a comida, os têxteis, os minerais e a energia baratos sem os quais a exploração dos trabalhadores industriais nas metrópoles não poderia ter sido lucrativa. Nas Américas, enquanto isso, as capacidades reprodutivas das mulheres escravizadas eram instrumentalizadas para os cálculos de lucratividade dos senhores da lavoura latifundiária, monocultora, exportadora e baseada no trabalho escravizado, senhores que, de modo rotineiro, despedaçavam as famílias de escravizados ao venderem seus membros para donos diferentes (Davis, 1972).
As crianças nativas, além disso, eram arrancadas de suas comunidades, recrutadas para escolas missionárias e submetidas a disciplinas coercitivas de assimilação (Adams, 1995; Churchill, 2004). Quando racionalizações se faziam necessárias, o estado “retrógrado e patriarcal” dos arranjos indígenas pré-capitalistas de parentesco servia muito bem. Também aqui, entre os colonialistas, as mulheres filantropas encontraram uma plataforma pública, urgindo com “os homens brancos para que salvassem as mulheres marrons dos homens marrons” (Spivak, 1988, p. 305).
Tanto no cenário da periferia como no do centro, os movimentos feministas se viram negociando um campo minado político. Rejeitando o status jurídico de mulher casada sob a proteção e a autoridade de seu marido, de um lado, e as esferas separadas, de outro, ao mesmo tempo que reivindicavam os direitos a votar, a recusar-se a fazer sexo, à propriedade privada, a firmar contratos, a exercer profissões e a controlar suas próprias remunerações, as feministas liberais pareciam valorizar mais a aspiração “masculina” à autonomia que os ideais “femininos” de criar e ajudar a desenvolver. E, nesse ponto, as feministas socialistas, que com aquelas contendiam, estavam basicamente de acordo, apesar de não concordarem em muitos outros pontos. Concebendo o acesso das mulheres ao trabalho assalariado como a rota para a emancipação, também as feministas socialistas preferiram os valores “masculinos” associados à produção aos valores associados à reprodução. É certo que essas associações eram ideológicas, mas, por trás delas, havia uma intuição profunda: apesar das novas formas de dominação que trazia, a erosão das relações tradicionais de parentesco operada pelo capitalismo continha um momento emancipatório.
Apanhadas por um dilema, muitas feministas não encontraram qualquer respaldo significativo no duplo movimento de Polanyi: enquanto o movimento da mercadorização desconsiderava a reprodução social, o contramovimento da proteção social se atrelava à dominação masculina. Não podendo simplesmente rejeitar nem abraçar a ordem liberal, elas precisavam de uma terceira alternativa, que elas chamaram de emancipação. Na medida em que puderam dar carne a esse termo, as feministas, efetivamente, explodiram a configuração polanyiana dualista e a substituíram pelo que podemos chamar de um “movimento triplo”. Nesse conflito trilateral, os proponentes da proteção e os da mercadorização se contrapunham não só uns aos outros, mas também aos partidários da emancipação: às feministas, por certo, mas também aos socialistas, aos abolicionistas e aos anticolonialistas, todos dos quais se empenhavam em jogar as duas forças polanyianas uma contra a outra, embora conflitassem, ao mesmo tempo, entre si. Ainda que promissora na teoria, tal estratégia era difícil de implementar.
À medida que os esforços para “proteger a sociedade da economia” eram identificados com a defesa da hierarquia de gêneros, a oposição feminista à dominação masculina podia facilmente ser interpretada como endossando as forças econômicas que devastavam a classe trabalhadora e as comunidades periféricas. Essas associações se mostrariam surpreendentemente duradouras, muito depois de o capitalismo liberal concorrencial haver colapsado sob o peso de suas múltiplas contradições, em meio às guerras interimperialistas, às depressões econômicas e ao caos financeiro internacional – dando lugar, em meados do século XX, a um novo regime, o do capitalismo administrado pelo Estado.
Fordismo e o salário com que se consegue manter uma família
Emergindo das cinzas da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo administrado pelo Estado aplacou a contradição entre a produção econômica e a reprodução social de um modo diferente – recrutando o poder estatal para o lado da reprodução. Assumindo alguma responsabilidade pública pelo “bem-estar social”, os Estados desse período buscaram combater os efeitos corrosivos que sobre a reprodução social exerciam não só a exploração, mas também o desemprego em massa. Esse objetivo foi abraçado pelos Estados de bem-estar social democráticos do centro capitalista e, igualmente, pelos Estados desenvolvimentistas da periferia, cuja independência era recente – apesar das desiguais capacidades que eles tinham para realizar tal objetivo.
Mais uma vez, os motivos eram heterogêneos. Uma camada formada pelas elites esclarecidas viera a crer que o interesse de curto prazo do capital em sacar lucros máximos tinha de ser subordinado às exigências de longo prazo da sustentação da acumulação no decorrer do tempo. A criação do regime administrado pelo Estado dizia respeito, sobretudo, a salvar o sistema capitalista de suas próprias propensões autodesestabilizadoras – bem como do espectro da revolução num período de mobilização massiva. A produtividade e a lucratividade exigiam o cultivo “biopolítico” de uma força de trabalho saudável, educada e com interesse no sistema, em oposição a uma turba maltrapilha revolucionária (Foucault, 1991; Foucault, 2010, p. 64). O investimento público em assistência à saúde, educação escolar, creches e aposentadorias, suplementado pelas prestações realizadas pelas empresas, era compreendido como uma necessidade num tempo em que as relações capitalistas haviam penetrado tanto a vida social que as classes trabalhadoras já não possuíam os meios para reproduzir-se por si mesmas. Nessa situação, a reprodução social tinha de ser internalizada, trazida para dentro do domínio oficialmente administrado da ordem capitalista.
Esse projeto encaixava com a nova problemática da “demanda” econômica. Objetivando suavizar os ciclos de boom e recessão próprios do capitalismo, os reformadores econômicos buscaram assegurar o crescimento contínuo possibilitando aos trabalhadores no centro capitalista cumprir, duplamente, seu dever como consumidores. Aceitando tanto a sindicalização, que trouxe remunerações mais altas, como os desembolsos do setor público, que geraram empregos, os criadores de políticas públicas reinventaram o lar como um espaço privado para o consumo doméstico de objetos de uso diário produzidos em massa (Ross, 1996; Hayden, 2003; Ewen, 2008). Ligando a linha de montagem ao consumismo das famílias da classe trabalhadora, de um lado, e à reprodução apoiada pelo Estado, de outro, o modelo fordista forjou uma nova síntese de mercadorização e proteção social – projetos que Polanyi considerara antitéticos.
Mas foram, acima de tudo, as classes trabalhadoras – tanto mulheres como homens – que, movidas por razões próprias, atuaram como a ponta de lança da luta pelo provimento público de bem-estar social. Para elas, o que estava em questão era o status de membros plenos da sociedade enquanto cidadãos democráticos – tratava-se, portanto, de dignidade, direitos, respeitabilidade e bem-estar material, e tudo isso era compreendido como requerendo uma vida familiar estável. Assim, ao abraçarem a social-democracia, as classes trabalhadoras também estavam valorizando a reprodução social e opondo-a ao dinamismo, que a tudo consumia, da produção econômica. De fato, elas estavam votando a favor da família, do país e do mundo da vida, contra a fábrica, o sistema e a máquina. Diferentemente da legislação protetiva do regime liberal, o acordo capitalista-estatal resultou de um compromisso entre classes e representava um avanço democrático. Além do mais, diferentemente do regime precedente, os novos arranjos serviram, ao menos para alguns e por certo tempo, para estabilizar a reprodução social. Para os trabalhadores etnicamente majoritários no centro capitalista, eles amenizaram as pressões materiais sobre a vida familiar e promoveram a inclusão política.
Mas, antes de corrermos a proclamar uma era dourada, deveríamos registrar as exclusões constitutivas que tornaram possíveis essas realizações. Assim como antes, a defesa da reprodução social no centro estava entrelaçada com o (neo)imperialismo; os regimes fordistas financiaram os direitos sociais, em parte, com a expropriação contínua na periferia – incluindo a “periferia dentro do centro” –, que persistia sob formas velhas e novas depois da descolonização. Enquanto isso, os Estados pós-coloniais apanhados na mira da Guerra Fria direcionavam a maior parte de seus recursos, já depauperados pela predação imperialista, para grandes projetos desenvolvimentistas, que implicavam, frequentemente, a expropriação de “seus próprios” povos indígenas. A reprodução social, para a grande maioria na periferia, permanecia externa, pois as populações rurais eram deixadas ao léu para proverem a si mesmas. Ademais, assim como seu predecessor, o regime administrado pelo Estado estava entrelaçado com a hierarquia racial: a seguridade social estadunidense excluía os trabalhadores domésticos e agrícolas, basicamente impedindo que muitos afro-americanos acessassem os direitos sociais (Quadagno, 1994; Katznelson, 2005). E a divisão racial do trabalho reprodutivo, iniciada durante a escravidão, assumiu um novo aspecto sob a legislação Jim Crow, tendo em conta que as mulheres de cor encontravam trabalho mal remunerado na criação das crianças e na limpeza dos lares de famílias “brancas”, em detrimento de suas próprias famílias (Jones, 1985; Glenn, 2010).
E tampouco a hierarquia de gêneros estava ausente desses arranjos. Durante certo período – aproximadamente, dos anos 1930 até o final dos anos 1950 –, quando os movimentos feministas não gozavam de muita visibilidade pública, quase ninguém contestava a opinião segundo a qual a dignidade da classe trabalhadora requereria “o salário com que se consegue manter uma família”, a autoridade masculina no lar e um forte senso da diferença de gênero. Por conseguinte, a ampla tendência do capitalismo administrado pelo Estado nos países do centro era valorizar o modelo heteronormativo da família marcada por um viés de gênero13 que atribuía ao homem a posição de arrimo de família e à mulher a de dona de casa. O investimento público na reprodução social reforçava essas normas.
Nos Estados Unidos, o sistema de bem-estar social tomou uma forma dualizada, dividida entre uma estigmatizada assistência aos pobres para as mulheres e as crianças (“brancas”) que não tinham acesso ao salário de um homem, de um lado, e uma respeitável seguridade social para os que eram concebidos como “trabalhadores”, de outro (Fraser, 1989; Nelson, 1985; Pearce, 1979; Brenner, 1991). Por sua vez, os arranjos europeus estabeleciam a hierarquia androcêntrica de um modo diferente, mediante a divisão entre pensões para mães e direitos atrelados ao trabalho assalariado – divisão norteada, em muitos casos, por agendas natalistas, nascidas da competição interestatal (Land, 1978; Holter, 1984; Ruggie, 1984; Siim, 1990; Orloff, 2009). Ambos os modelos validaram, assumiram e encorajaram o salário com que se consegue manter uma família. Ao institucionalizarem compreensões androcêntricas da família e do trabalho, eles naturalizaram a heteronormatividade e a hierarquia de gêneros, removendo-as, em grande medida, do debate político.
Em todos esses aspectos, a social-democracia sacrificou a emancipação a uma aliança entre a proteção social e a mercadorização, ao mesmo tempo que mitigou a contradição social do capitalismo por várias décadas. Mas o regime capitalista-estatal começou a degringolar; primeiro, politicamente, nos anos 1960, quando a Nova Esquerda global irrompeu para contestar- -lhe as exclusões imperialistas, de gênero e raciais, bem como o paternalismo burocrático, em nome da emancipação; e, depois, economicamente, nos anos 1970, quando a estagflação, a “crise da produtividade” e as taxas de lucro declinantes na indústria galvanizaram os esforços neoliberais para desagrilhoar a mercadorização. O que seria sacrificado, caso a emancipação e a mercadorização viessem a unir forças, seria a proteção social.
Lares de dois ganhadores de dinheiro
Assim como o regime liberal antes dela, a ordem capitalista administrada pelo Estado dissolveu-se no curso de uma prolongada crise. Antes dos anos 1980, observadores prescientes puderam discernir os contornos emergentes de um novo regime, que viria a ser o capitalismo financeirizado do tempo presente. Globalizador e neoliberal, esse regime promove a redução dos investimentos estatais e empresariais no bem-estar social, ao passo que recruta as mulheres para a força de trabalho paga – expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ao mesmo tempo que lhes diminui a capacidade para desempenhar esse trabalho. O resultado é uma organização nova, dualizada, da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir e privatizada para quem não o pode, tendo em conta que alguns da segunda categoria proveem os da primeira com trabalho de cuidado em troca de (baixas) remunerações. Enquanto isso, a dupla bordoada desferida pela crítica feminista e pela desindustrialização despojou, definitivamente, o “salário com que se consegue manter uma família” de toda credibilidade. Esse ideal deu lugar à norma hodierna da “família de dois ganhadores de dinheiro”.
O principal propulsor desses desenvolvimentos e a característica definidora desse regime é a nova centralidade da dívida. A dívida é o instrumento por meio do qual as instituições financeiras globais pressionam os Estados a cortar os desembolsos sociais, a levar a efeito a austeridade e, em geral, a conluiar-se com os investidores para extrair valor de populações indefensas. Além disso, é principalmente através da dívida que os camponeses no Sul Global são submetidos à despossessão numa nova etapa de tomada empresarial de terras que se destina a açambarcar reservas de energia, água, terra arável e “compensações de carbono”. É também cada vez mais via dívida que a acumulação prossegue no centro histórico: uma vez que o trabalho mal remunerado, precário, em serviços substitui o trabalho industrial sindicalizado, as remunerações caem abaixo do nível dos custos de reprodução socialmente necessários; nessa “economia de bicos”, a continuação dos gastos dos consumidores requer uma expansão do crédito para consumidores, que cresce exponencialmente (Roberts, 2013). É cada vez mais através da dívida, noutras palavras, que o capital, agora, canibaliza o trabalho, disciplina os Estados, transfere riqueza da periferia para o centro e suga valor dos lares, das famílias, das comunidades e da natureza.
O efeito produzido por essa nova centralidade da dívida é a intensificação da contradição, inerente ao capitalismo, entre produção econômica e reprodução social. Enquanto o regime anterior concedia poder aos Estados para subordinar os interesses de curto prazo das empresas privadas ao objetivo de longo prazo da acumulação sustentada, função que eles cumpriam ao, entre outras medidas, estabilizarem a reprodução por meio do provimento público de bem-estar social, o presente regime autoriza o capital financeiro a disciplinar os Estados e os públicos em prol do interesse imediato dos investidores privados, demandando, especialmente, a retirada de investimentos públicos da reprodução social. E, enquanto o regime anterior aliava a mercadorização à proteção social contra a emancipação, o presente regime gera uma configuração ainda mais perversa, na qual a emancipação se junta com a mercadorização para minar a proteção social.
O novo regime emergiu do fatídico cruzamento entre dois conjuntos de conflitos. Um deles impelia um ascendente grupo de proponentes do livre mercado, inclinados à liberalização e à globalização da economia capitalista, contra os declinantes movimentos trabalhistas nos países centrais; tendo sido, outrora, a mais poderosa base de apoio da social-democracia, esses movimentos se encontram, agora, na defensiva, se é que já não estão completamente derrotados. O outro conjunto de conflitos impelia os “novos movimentos sociais” progressistas, contrários às hierarquias de gêneros, sexos, “raças”, etnicidades e religiões, contra populações que buscavam defender mundos da vida e privilégios estabelecidos, mas ameaçados, agora, pelo “cosmopolitismo” da nova economia. Da colisão desses dois conjuntos de conflitos, emergiu um resultado surpreendente: um neoliberalismo “progressista”, que celebra a “diversidade”, a meritocracia e a “emancipação”, ao mesmo tempo que desmantela as proteções sociais e torna a expelir de si a reprodução social.
O resultado é não só abandonar populações indefensas às predações do capital, mas também redefinir a emancipação nos termos do mercado. Os movimentos emancipatórios participaram nesse processo. Todos eles – incluindo o antirracismo, o multiculturalismo, a libertação LGBT e a ecologia – produziram correntes neoliberais favoráveis ao mercado. Mas a trajetória feminista se mostrou especialmente fatídica, considerando o entrelaçamento, persistentemente engendrado pelo capitalismo, entre gênero e reprodução social. Assim como cada um dos regimes predecessores, o capitalismo financeirizado institucionaliza a divisão entre produção e reprodução em consonância com um viés de gênero basilar. Diferentemente de seus predecessores, no entanto, seu imaginário dominante é liberal-individualista e igualitário quanto aos gêneros – as mulheres são consideradas como iguais dos homens em todas as esferas, merecedoras de iguais oportunidades para realizar seus talentos, inclusive – talvez em especial – na esfera da produção. A reprodução, porém, aparece como um resíduo atrasado, um obstáculo ao avanço que deve ser removido, de um jeito ou de outro, na rota para a libertação.
Apesar ou, talvez, por causa de sua aura feminista, essa concepção é o epítome da atual forma da contradição social do capitalismo, contradição que assume uma nova intensidade. Além de diminuir o provimento público de bem-estar social e recrutar as mulheres para a força de trabalho assalariada, o capitalismo financeirizado tem reduzido os salários reais, elevando, assim, o número de horas de trabalho pago que, por domicílio, são necessárias para manter uma família, bem como provocando uma corrida desesperada para transferir o trabalho de cuidado para outrem (Warren, Tyagi, 2003). A fim de preencher a “lacuna de cuidado”, o regime importa trabalhadores emigrantes dos países mais pobres para os mais ricos. De modo típico, são mulheres racializadas, amiúde campesinas e de regiões pobres que assumem o trabalho de cuidado e reprodutivo que, antes, era desempenhado por mulheres mais privilegiadas. Mas, para fazer isso, as emigrantes devem transferir suas próprias responsabilidades familiares e comunitárias para outras cuidadoras ainda mais pobres, que devem, por sua vez, fazer o mesmo – e assim por diante, em “cadeias globais de cuidado” cada vez mais compridas.
Longe de preencher a lacuna de cuidado, o resultado é o deslocamento dessa lacuna – das famílias mais ricas para as mais pobres, do Norte Global para o Sul Global (Hochschild, 2002, p. 15-30; Young, 2001). Esse cenário encaixa com as estratégias que, marcadas por um viés de gênero, são empregadas por Estados pós-coloniais endividados e necessitados de dinheiro que se encontram sujeitos aos programas de ajuste estrutural do FMI. Desesperados por moeda forte, alguns deles têm promovido, de modo ativo e em nome das remessas de dinheiro, a emigração de mulheres para desempenharem trabalho de cuidado pago no estrangeiro; já outros têm cortejado o investimento estrangeiro direto, frequentemente nas indústrias que empregam preferencialmente mulheres, tais como a indústria têxtil e as montadoras de eletrônicos (Bair, 2010). Em ambos os casos, as capacidades sociorreprodutivas são espremidas ainda mais.
Dois desenvolvimentos recentes nos Estados Unidos são epítomes da gravidade da situação. O primeiro é a crescente popularidade do “congelamento de óvulos”, um procedimento que, normalmente, custa US$ 10 mil, mas, agora, é oferecido grátis e como um benefício adicional por empresas de TI a empregadas altamente qualificadas. Ambicionando atrair e reter essas trabalhadoras, empresas como Apple e Facebook dão a elas um forte incentivo para postergarem a gestação, dizendo-lhes de fato: “esperem e tenham seus filhos quando chegarem aos quarenta, cinquenta ou mesmo sessenta anos; devotem a nós seus anos de muita energia, seus anos produtivos”. Um segundo desenvolvimento estadunidense é igualmente sintomático da contradição entre reprodução e produção: a proliferação de bombas mecânicas de alta tecnologia, caras, para espremer leite materno. Essa é a “solução” escolhida num país com elevada participação da força de trabalho feminina, sem licença maternidade ou parental juridicamente exigida e num caso de amor com a tecnologia. Além do mais, esse é um país no qual amamentar é praxe, mas tem mudado a ponto de tornar-se irreconhecível. Não mais se tratando de aleitar uma criança em seu peito, uma mulher, agora, “amamenta” ao espremer seu leite mecanicamente e armazená-lo para que sua babá, depois, alimente a criança com a mamadeira. Num contexto de grave pobreza de tempo, bombas que funcionam sem o uso das mãos e que enchem um copo duplo são consideradas as mais desejáveis, pois permitem a uma mulher que esprema o leite de ambos os seios de uma só vez, ao mesmo tempo que dirige para o trabalho na via expressa (Jung, 2015, p. 130-131).
Tendo em vista pressões como essas, causa alguma surpresa o fato de as lutas a respeito da reprodução social terem explodido durante os últimos anos? As feministas do Norte Global, frequentemente, descrevem seu foco como o “equilíbrio entre família e trabalho” (Belkin, 2003; Warner, 2006; Miller, 2013; Slaughter, 2012; Slaughter, 2015; Shulevitz, 2016). Mas as lutas a respeito da reprodução social abrangem muito mais: movimentos comunitários por moradia, assistência à saúde, segurança alimentar e uma renda básica incondicional; lutas pelos direitos de migrantes, trabalhadores domésticos e funcionários públicos; campanhas para sindicalizar os trabalhadores do setor de serviços em clínicas geriátricas, hospitais e creches que perseguem fins lucrativos; lutas por serviços públicos como creches e cuidado de idosos, por uma semana de trabalho mais curta, por generosas licenças maternidade e parental pagas. Tomadas em conjunto, essas reivindicações são equivalentes à demanda por uma imensa reorganização da relação entre produção e reprodução: à demanda por arranjos sociais que possibilitem às pessoas de todas as classes, todos os gêneros, todas as sexualidades e todas as cores combinar as atividades sociorreprodutivas com um trabalho seguro, interessante e bem remunerado.
As lutas fronteiriças a respeito da reprodução social são tão centrais para a presente conjuntura quanto as lutas de classes a respeito da produção econômica. Elas respondem, acima de tudo, a uma “crise do cuidado” que está enraizada na dinâmica estrutural do capitalismo financeirizado. Globalizador e propelido pela dívida, esse capitalismo está expropriando, de modo sistemático, as capacidades disponíveis para sustentar conexões sociais. Proclamando o novo ideal da família de dois ganhadores de dinheiro, ele reavê os movimentos por emancipação, que se juntam com os proponentes da mercadorização para opor-se aos partidários da proteção social, tornados, agora, cada vez mais ressentidos e chauvinistas.
Outra mutação?
O que pode emergir dessa crise? A sociedade capitalista reinventou-se diversas vezes no curso de sua história. Especialmente em momentos de crise geral, quando múltiplas contradições – políticas, econômicas, ecológicas e sociorreprodutivas – se entremeiam e se exacerbam mutuamente, lutas fronteiriças irromperam ao longo das divisões institucionais constitutivas do capitalismo: onde a economia encontra a política, onde a sociedade encontra a natureza, e onde a produção encontra a reprodução. Nessas fronteiras, os atores sociais se mobilizam para redefinir o mapa institucional da sociedade capitalista. Seus esforços propeliram a virada, primeiro, do capitalismo liberal concorrencial do século XIX para o capitalismo administrado pelo Estado do século XX e, depois, para o capitalismo financeirizado do tempo presente. Além disso, historicamente, a contradição social do capitalismo constituiu uma vertente importante da crise precipitadora de cada virada, tendo em conta que a fronteira que separa a reprodução social da produção econômica emergiu, a cada vez, como um campo e um marco fundamental de luta. Em cada caso, a ordem dos gêneros da sociedade capitalista foi contestada, e o resultado dessa contestação dependeu de alianças forjadas entre os principais polos de um movimento triplo: mercadorização, proteção social, emancipação. Essas dinâmicas propeliram a virada, primeiro, das esferas separadas para o salário com que se consegue manter uma família e, depois, para a família de dois ganhadores de dinheiro.
O que se segue daí para a atual conjuntura? As presentes contradições do capitalismo financeirizado são suficientemente graves para se qualificarem como uma crise geral, e deveríamos antecipar outra mutação da sociedade capitalista? A crise atual galvanizará lutas de amplitude e visão suficientes para transformar o presente regime? Uma nova forma de feminismo socialista poderia chegar a romper o caso de amor do movimento feminista convencional com a mercadorização e, ao mesmo tempo, forjar uma nova aliança entre a emancipação e a proteção social – e, se sim, para qual fim? Como a divisão entre produção e reprodução poderia ser reinventada hoje, e o que pode substituir a família de dois ganhadores de dinheiro?
Nada do que escrevi aqui serve, de modo direto, para responder a essas questões. Mas, ao assentar a base que nos permite formulá-las, tentei lançar alguma luz sobre a conjuntura atual. Especificamente, defendi a tese segundo a qual as raízes da hodierna “crise do cuidado” residem na contradição social inerente ao capitalismo – ou melhor, na forma aguda que essa contradição assume hoje, no capitalismo financeirizado. Se essa tese for correta, então tal crise não será resolvida com remendos de política social. O caminho para sua resolução só poderá passar pela profunda transformação estrutural dessa ordem social. O que, acima de tudo, é preciso é superar a subjugação rapace, característica do capitalismo financeirizado, da reprodução à produção – mas, desta vez, sem sacrificar nem a emancipação nem a proteção social. Isso, por sua vez, requer reinventar a distinção entre reprodução e produção e reimaginar a ordem dos gêneros. Resta ver se o resultado sequer será compatível com o capitalismo.