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O liberalismo sempre foi cúmplice da escravidão e dos regimes nazifascistas

No prefácio do livro “O feiticeiro da tribo: a farsa de Mario Vargas Llosa e do neoliberalismo na América Latina”, o historiador marxista Jones Manoel resgata os inúmeros crimes que o liberalismo cometeu impunemente durante os últimos séculos – com respaldo da mídia e alguns “intelectuais”.

Por Jones Manoel

Enquanto escrevia o prefácio do livro O feiticeiro da tribo: a farsa de Mario Vargas Llosa e do neoliberalismo na América Latina, do marxista argentino Atílio Boron, acompanhava ansioso o resultado da eleição presidencial peruana. Em um segundo turno acirradíssimo, o sindicalista, líder camponês e professor simpático ao marxismo Pedro Castillo disputava a presidência com Keiko Fujimori – filha e defensora do legado do ditador Alberto Fujimori. 

Keiko, durante toda a campanha, defendeu o projeto político do seu pai. Um projeto autoritário, racista, violento, genocida e que se sustentou sob o liberalismo econômico. O antigo ditador do Peru foi responsável, dentre outras barbaridades, pela esterilização forçada de 350 mil mulheres e 25 mil homens camponeses e indígenas, prática prevista pelo Programa Nacional de Planejamento Familiar.

Frente a essa disputa, os liberais peruanos não tiveram dúvidas e embarcaram de armas e bagagem no projeto fujimorista. O renomado escritor e maior ícone vivo do liberalismo na América Latina, Mário Vargas Llosa, seguiu a tendência de seus pares e também declarou apoio a Keiko Fujimori. No momento em que terminei o texto que o leitor tem em mãos, o resultado eleitoral tinha sido uma vitória de Pedro Castillo com 50,12% dos votos válidos contra 49,87% de Keiko Fujimori. Keiko, seguindo o histórico da direita latino-americana, não aceitou o resultado das urnas e o Peru vive uma batalha para garantir a posse do líder sindicalista.

É surpreendente que um liberal de fama mundial como Vargas Llosa apoie um projeto político que até as pedras dos Andes sabem ser de um atroz autoritarismo racista? A resposta imediata é um gigantesco não. Nada é tão comum na história do liberalismo como a profissão de fé na democracia e na liberdade enquanto passeia de mãos dadas com figuras como Augusto Pinochet, Hadji Mohamed Suharto, Daniel François Malan, Ariel Sharon, Jorge Rafael Videla, Castelo Branco e tantos outros. 

A partir dessa contradição entre discurso e ação, podemos concluir que o liberalismo defende belos valores, mas tem dificuldades de realizá-los na prática? Essa seria a conclusão mais simplista e, infelizmente, a mais recorrente no debate brasileiro. Vamos reposicionar esse debate a partir de duas questões: uma mais teórica sobre a história do liberalismo e a relação entre teoria e prática no projeto liberal, e um debate sobre como setores da esquerda brasileira encaram o liberalismo. 

No Brasil corre forte o mito de que o liberalismo nas nossas terras seria mais autoritário que na Europa e Estados Unidos, e que esse projeto político nunca se ambientou bem na nossa realidade já que, dentre outras coisas, os liberais aqui defendiam a escravidão e ditaduras. Esse tipo de compreensão pode, no máximo, acusar o liberalismo de cinismo e de não ser liberal de verdade, uma crítica impotente na forma e no conteúdo. 

O projeto liberal nasce no período de acumulação primitiva de capital expressando os interesses orgânicos da burguesia em ascensão e refletindo as novas relações sociais em gestação (como aumento do comércio, mercantilização da economia, trabalho assalariado e relações contratuais), e se consolida como espírito do tempo no modo de produção capitalista. Uma definição do liberalismo, considerando sua longa duração histórica e diversidade de expressões nacionais, poderia resumi-lo como ideologia de um regime social centrado na propriedade privada dos meios de produção, apropriação privada da riqueza social produzida e uma estrutura jurídico-política que proteja e garanta os dois elementos citados. 

Alguém pode afirmar que essa definição é “economicista” e redutora. Vejamos. John Locke, o chamado pai do liberalismo político, não só defendeu filosoficamente a escravidão, como era acionista de uma empresa que traficava escravos. John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville defenderam sem pudores o colonialismo europeu e seus massacres. A defesa universalista da vida, não era uma questão para os três. 

O Barão de Montesquieu não era contra a escravidão em si, mantendo apenas restrições à sua aplicação na Europa. Adam Smith, evocado até hoje pelos liberais como o teórico do mercado “autorregulado”, também defendia o colonialismo europeu. Thomas Jefferson e os outros “pais fundadores” dos Estados Unidos defendiam a escravidão e não achavam que era uma contradição com seus princípios liberais o extermínio dos povos originários chamados de “peles vermelhas”. 

Por falar nos Estados Unidos, foi indisfarçável a posição favorável dos ambientes liberais da Inglaterra, durante a Guerra Civil Americana, com o Sul escravista e não com a União – posição duramente criticada por Karl Marx.  Ainda nos Estados Unidos, um dos mais famosos e prestigiados teóricos liberais do país, John C. Calhoun, era um ardoroso defensor da escravidão. 

Nenhum desses teóricos citados defendia o sufrágio universal – o princípio de uma cabeça, um voto – e a maioria deles era contrário a variados princípios e instituições do que chamamos hoje de democracia política. Alguém poderia argumentar que todos esses nomes citados foram anteriores à nossa “época contemporânea” e vários aspectos foram revistos pela tradição liberal, numa espécie de “evolução”. Tem sentido esse argumento? Vamos passear por nossa “época contemporânea”. 

Uma das maiores barbáries do século XX, sem dúvida, foi o apartheid na África do Sul. Inglaterra e Estados Unidos são os países com mais sólida e longeva tradição liberal. Qual foi, historicamente, a posição desses países sobre o odioso regime racista? Apoio velado ou aberto. Os dois grandes líderes do neoliberalismo, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, não só deram todo apoio possível ao apartheid, como o primeiro era pessoalmente racista e a segunda mantinha uma hostilidade doentia contra Nelson Mandela. 

E em relação ao nazifascismo? Wiston Churchill, apontado como maior símbolo “ocidental” do antifascismo, apoiou o fascismo italiano e, antes de Adolf Hitler sonhar em ter relevância política, ele mantinha um discurso antissemita militante, o que lhe fazia pensar o mundo, inclusive a Revolução Russa, pela ótica de uma onipresente conspiração judaica. As teses fundamentais da ideologia nazista ou foram inventadas nos Estados Unidos ou gozaram de igual prestígio nos dois lados do atlântico – Hitler, repetidas vezes, dizia que se inspirava no regime de segregação racial e no extermínio dos “peles vermelhas” nos Estados Unidos para formatar o seu projeto. 

Também nunca é demais lembrar que na Europa Ocidental, dois regimes fascistas sobreviveram à Segunda Guerra Mundial: salazarismo e franquismo. Ambos não só gozaram de farto apoio do mundo liberal, como Portugal fascista foi membro fundador da OTAN – a grande teórica do totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt, coincidentemente, é claro, não colocou o Portugal fascista, membro da OTAN, na lista de países totalitários. Também não custa lembrar que a Alemanha Ocidental não só aceitou os nazistas em altos cargos do Estado sem quaisquer problemas, como em muitos ramos da administração pública, tinha tantos nazistas como durante o período do nazismo.  

O colonialismo na África e Ásia realizou, com as antigas potências liberais da Europa, como França, Inglaterra e Bélgica, massacres brutais com rios de sangue derramado, sendo um dos mais famosos a guerra da França contra a Argélia, com mais de um milhão de argelinos assassinados; também organizaram assassinatos horrendos, como a morte de líderes como Patrice Lumumba que, dentre outras coisas, achava que seu povo tinha direito de desfrutar de democracia, estado de direito, liberdades civis e etc.

Fora de África, os Estados Unidos eram o grande responsável pela matança para impedir a revolta anticolonial. Na Coreia, o imperialismo estadunidense matou 30% da população e destruiu todas as cidades; no Vietnã matou mais de 2 milhões de pessoas; no Camboja matou outros milhares e apoiou diversas formas a carnificina do Khmer Vermelho e segue uma lista gigantesca de atrocidades. Os defensores da ordem liberal e da “sociedade aberta”, como Hannah Arendt e Karl Popper, nunca conseguiram colocar-se numa posição anticolonial e defender que aqueles povos também tinham direito ao famoso “império da lei” e serem considerados humanos. 

É chamativo como durante o período de maior revolta anticolonial da história da humanidade e no auge da luta antirracista nos Estados Unidos – o tempo de Martin Luther King, Malcolm X, Rosa Parks, movimento pelos direitos civis e etc. -, a filósofa Hannah Arendt tenha lançado um livro, Da Revolução (o ano de lançamento é 1963), que sentencia a Revolução Americana como a criadora da mais gloriosa liberdade moderna, “esquecendo” de considerar no plano teórico, filosófico e político a escravidão, extermínio dos povos originários e o regime de segregação racial montado após o fim da escravidão. 

Na nossa contemporaneidade, os Estados Unidos assumiram o papel de país guia do capitalismo, personificação do “ocidente” e a pátria por excelência do liberalismo. O país também é celebrado como a mais antiga democracia moderna. Mas o Estados Unidos, nascidos da luta pela emancipação nacional do império britânico, manteve a escravidão. Após o fim da escravidão, temos o regime de segregação racial Jim Crow. Só em 1965 – décadas depois da União Soviética – a morada preferencial do liberalismo no século XX estabeleceu o sufrágio realmente universal, o princípio de uma cabeça, um voto. Contudo, ao fim do regime de segregação racial, começa o que muitos intelectuais e militantes chamam de terceira ou nova segregação, centrada no aparato penal e carcerário e legitimado pelo discurso de “guerra às drogas” e “tolerância zero” ao crime.  

A nova segregação criou a maior onda de encarceramento em massa já vista no “ocidente”. Nunca antes na história do “mundo ocidental” vimos uma expansão tão rápida do número de encarcerados e capturados pela malha penal. A maioria dos dois milhões de presos nos Estados Unidos são de negros e latinos, mesmo que não sejam maioria da população, e não faltam inovações jurídicas para restringir, de novo, o direito de voto da população negra. 

Voltamos à pergunta inicial. Será isso incoerência entre teoria e prática? Belos valores mas difíceis de realizá-los no plano político? Duas questões se impõem. Primeiro, historicamente, o liberalismo sempre teve cláusulas de exclusão. A ideologia liberal nunca foi universalista. Seus conceitos centrais como liberdade, direitos, autonomia, ser humano e outros, sempre tiveram critérios de exclusão de acordo com determinada época histórica. A grande habilidade do liberalismo é, depois de perder batalhas políticas e ser obrigado a mudar, como aceitar que todo operário tem direito ao voto, praticar um hábil revisionismo histórico para dizer: o liberalismo sempre defendeu a democracia! 

Esse revisionismo histórico é tão eficiente que fados básicos, elementares, não são percebidos. Por exemplo, a libertação das Províncias Unidas, a Revolução Gloriosa e a Revolução Americana não acabaram com a escravidão. Antes o contrário. A revolução burguesa ou potencializou o papel desses países no tráfico internacional de pessoas escravizadas ou aumentou o número de escravos internamente (ou os dois). A única revolução burguesa a questionar de verdade a escravidão foi a Revolução Francesa no seu período jacobino, mas isso mudou rapidamente com a derruba de Maximilien de Robespierre, quando a escravidão nas colônias francesas foi restaurada – e, como sabemos, o período jacobino é demonizado pela tradição liberal. 

Depois de mais de 200 anos de convivência harmônica do liberalismo com a escravidão, depois do tráfico de pessoas escravizadas ter papel central na acumulação primitiva que dá origem ao capitalismo e a partir da segunda metade do século XIX, o projeto liberal passa a apresentar uma oposição majoritária à escravidão. No século XX ou XXI, no Brasil, o “crítico” do liberalismo diz: “os liberais brasileiros não são verdadeiros liberais, eles apoiavam a escravidão”. O que parece crítica é, na realidade, o coroamento do revisionismo histórico burguês e a incompreensão das diversas fases históricas de negação do universalismo no projeto liberal. 

Aliado a isso, como dizemos, o centro do liberalismo é a defesa da propriedade privada, apropriação privada da riqueza socialmente produzida e o arcabouço jurídico-político que garante essas relações. Todo resto é tático. E o liberalismo sabe muito bem operar com flexibilidade tática. Quem admitiu isso de maneira cristalina foi o patriarca do neoliberalismo, Friedrich Hayek, quando disse ao jornal El Mercurio, em 1981, que: “pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal a um governo democrático que falte liberalismo” (essa declaração de Hayek foi uma, dentre várias, demonstrações de apoio ao ditador Augusto Pinochet).  

Incapazes de fazer uma análise imanente e histórica do liberalismo, muitas figuras da esquerda brasileira, ao serem confrontados com o projeto liberal e sua vertente neoliberal, procuram não disputar a hegemonia ou desconstruir esse projeto, mostrando-se mais liberal que o liberalismo – como se a concordância com os “valores do liberalismo”, valores apresentados no plano ideal e fundamentados no revisionismo histórico que comentamos acima, fossem prova de “compromisso democrático”. Três exemplos rápidos. 

O candidato do PT na eleição de 2018, o professor Fernando Haddad, deu uma entrevista para o tradicional programa de TV Roda Viva. Ao ser questionado sobre o golpe na Bolívia em 2019 – que a apresentadora não chamou de golpe -, Haddad se orgulhou de ter cobrado Evo Morales, em um grupo do Whatsapp, por ter tentado a “reeleição”, mas não conseguiu chamar o golpe de golpe e nem denunciar a participação do imperialismo nele. A maior preocupação de Haddad era mostrar-se fiel ao princípio liberal de “alternância de poder”. 

No final de 2020, os monopólios de mídia começaram a divulgar que uma jornalista foi presa na China. A prisão seria fruto de suas denúncias sobre comportamento negligente e a omissão de informações por parte da China. Na realidade, a “jornalista”, Zhang Zhan é uma blogueira de extrema direita, negacionista e daqueles tipos que acham que o vírus não existe e é tudo parte de uma conspiração comunista – o brasileiro conhece bem esse tipo. Sem pesquisar, sem questionar, aceitando acriticamente a narrativa “democracia versus autoritarismo”, Luciana Genro, candidata a presidente pelo PSOL em 2014 e dirigente do MES (Movimento de Esquerda Socialista, tendência do PSOL), foi para suas redes sociais atacar a China e falar em “liberdade de expressão”, reforçando o mito de que a China “esconde informações” sobre o vírus. Novamente, querendo se mostrar fiel ao “princípio” liberal da “liberdade de expressão”, uma figura da esquerda atua como linha auxiliar do imperialismo. 

O último exemplo, e talvez mais grave, vem do site Esquerda Online, da organização trotskista Resistência (tendência interna do PSOL). Publicado em fevereiro de 2020, o título do texto é China: O vírus de Xi Jinping. Uma peça de propaganda reacionária, sinofóbica, alinhada com os discursos mais delirantes do establishment dos Estados Unidos – texto que poderia ser divulgado sem problemas por um jornalista da Fox News. A desculpa de fundo? Uma defesa da “democracia” contra o autoritarismo, repetindo o velho binômio liberal. 

Os exemplos poderiam se multiplicar aos montes. Uma esquerda que não consegue fazer uma crítica teórica imanente, profunda e séria ao liberalismo e que aceita acriticamente todo revisionismo histórico burguês não só é incapaz de representar um verdadeiro projeto popular, revolucionário e anti-imperialista, como fica desarmada, nos diversos combates conjunturais, para enfrentar a ideologia dominante e, na prática, atua como linha auxiliar da Embaixada de Washington. 

Ajudando a superar essa debilidade da cultura política e capacidade de disputa pela hegemonia, chega ao Brasil este livro de Atílio Boron. O feiticeiro da tribo: a farsa de Mario Vargas Llosa e do neoliberalismo na América Latina é uma análise refinada, com arguta capacidade teórica e profundo sentido histórico. Não é só uma crítica demolidora da produção de Vargas Llosa – o que não seria pouco. 

O livro de Atilio Borón, um dos mais criativos e geniais marxistas latino-americanos, é uma aula de como fazer a batalha das ideias, a crítica da ideologia dominante e seus intelectuais. Do mesmo modo que lemos livros como o 18 Brumário de Karl Marx não só como uma análise de conjuntura da França do século XIX, mas também como uma aula de como fazer uma análise do tempo presente, essa crítica ao pensamento de Vargas Llosa deve ser encarada como um exemplo, uma aula, de crítica e enfrentamento ao projeto neoliberal. 

Pense este livro em suas mãos como mais uma arma para forjarmos uma esquerda radicalmente popular, anti-imperialista e que consiga combater frontalmente a ordem burguesa e os seus espadachins.

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