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A impunidade militar e a violência colonial são as raízes do bolsonarismo

Livro “Espectros da ditadura. Da Comissão Nacional da Verdade ao bolsonarismo” chama a atenção para o quanto a ditadura de 1964 se articula com outros passados sensíveis do país – como o etnocídio de populações indígenas, a escravidão, a violência contra as mulheres e população LGBTQ+ – e permanece sem ser enfrentado.

Por Fernando Perlatto (UFJF)

O livro publicado este ano pela Editora FGV, General Villas-Boas: conversa com o comandante, no qual o militar, além de relatar momentos de sua trajetória pessoal e profissional, aborda suas memórias sobre episódios importantes da crise política recente no Brasil corrobora uma percepção já compartilhada por muitos analistas, mas que, até então, ainda não havia sido formulada de modo tão explícito: a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, e sua efetiva instalação no ano posterior, pela então presidenta Dilma Rousseff, foi fundamental para consolidar a insatisfação de diversos setores das Forças Armadas com o governo petista, criando um contexto favorável para o golpe parlamentar de 2016.

O tuíte do general Villas-Boas ameaçando o STF na ocasião do julgamento do habeas corpus de Lula, em 2018, deve ser visto, portanto, como mais um movimento na escalada crescente de incômodos de militares em relação àqueles que, com a criação da CNV, constituíram a política de memória mais abrangente no país, desde a redemocratização. Nessa perspectiva interpretativa, antes de ser mais um elemento da crise política que o Brasil vem atravessando ao longo dos últimos anos, a CNV tem que ser compreendida como uma variável central neste processo, demandando, dessa forma, um esforço analítico para o devido entendimento de seus significados e, sobretudo, dos seus desdobramentos.

Ao longo dos últimos anos, diversos pesquisadores têm se dedicado a analisar, a partir de diferentes perspectivas, a CNV e seus impactos sobre a justiça de transição e a democracia no Brasil. A coletânea organizada por Edson Teles e Renan Quinalha, Espectros da ditadura. Da Comissão Nacional da Verdade ao bolsonarismo, lançada pela Autonomia Literária no final de 2020, vem se somar a essas agendas investigativas, constituindo-se como uma enorme contribuição para esse campo de pesquisas.

Reconhecidos por seus trabalhos seminais sobre justiça de transição, os dois organizadores reúnem neste livro um conjunto amplo e plural de pesquisadores, intelectuais e militantes de direitos humanos – muitos dos quais, importa ressaltar, estiveram diretamente envolvidos nos trabalhos de comissões da verdade – para refletir sobre a CNV e seus impactos nas disputas relacionadas à justiça de transição no Brasil.

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A coletânea está dividida em três partes. Na primeira delas, Edson Teles e Renan Quinalha, Desirée de Lemos Azevedo, Silvia Brandão e Eliana Vendramini discutem, em seus respectivos capítulos, sobre os alcances e os limites da justiça de transição no Brasil. Em artigos que adotam uma perspectiva de mais longa duração – que vai da redemocratização e da Lei da Anistia de 1979 até tempos mais atuais, chegando à eleição presidencial de Jair Bolsonaro, em 2018 –, os pesquisadores abordam temáticas como o papel do Estado e do Judiciário brasileiro na implementação ou na imposição de barreiras em relação ao avanço das políticas de memória, bem como a atuação de movimentos de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos políticos, em suas lutas por verdade, direito à memória e reparação.

A segunda parte – que conta com capítulos de Rosa Maria Cardoso da Cunha, Piero C. Leirner e Janaína de Almeida Teles – é voltada para inquirir criticamente os avanços e os limites da CNV, a partir da análise da atuação de diferentes sujeitos que participaram dos embates políticos em torno dos rumos da comissão, como as Forças Armadas e personagens vinculados aos três poderes, em especial o Legislativo. Além disso, busca, como no capítulo de Caio Cateb, Carla Osmo, Paulo Franco e Pedro Benetti, discutir os rumos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão da Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro. Já na terceira parte da coletânea, partindo da análise dos embates em torno da CNV, Lucas Pedretti, Amauri Mendes Pereira, Maria Amélia de Almeida Teles, James Green, Celeste Ciccarone e Danilo Paiva Ramos, e Yamila Goldfarb refletem em seus capítulos sobre questões ainda pouco abordadas em trabalhos dedicados à justiça de transição, relacionadas aos impactos da violência do Estado e de violações dos direitos humanos na ditadura e na democracia contra negros, mulheres, população LGBTQ+, povos indígenas e populações camponesas.

Um dos grandes méritos da coletânea é a busca pela conexão entre passado e presente, com o intuito de destacar as continuidades e as permanências de espectros da história que continuam a rondar a nossa democracia, impedindo o avanço das agendas de direitos humanos. Ao abordar de maneira mais fluída e menos convencional as temporalidades, embaralhando-as, os autores dos capítulos chamam a atenção para o quanto a ditadura de 1964 se articula com outros passados sensíveis do país – como o etnocídio de populações indígenas, a escravidão, a violência contra as mulheres e população LGBTQ+ –, que permanecem sem serem enfrentados atualmente, manifestando-se em práticas cotidianas de violações aos direitos humanos.

Apesar de valorizarem a importância das políticas de memória que foram desenvolvidas desde a redemocratização – em especial, a instalação da CNV, em 2012 –, os capítulos da coletânea destacam também seus limites, que adviriam tanto de concessões e negociações dos governos do PSDB e do PT com as Forças Armadas, quanto das resistências de setores conservadores da sociedade, que se colocaram, ao longo destes anos, como contrários a qualquer ação no sentido de encarar aberta e criticamente a experiência de 1964 e seus legados, acusando movimentos nesse sentido como “revanchismos”.

As consequências do não enfrentamento desse passado – seja do ponto de vista jurídico, seja no que concerne ao desenvolvimento mais amplo de políticas de memória, inclusive contemplando setores cujas memórias desse período permaneceram silenciadas – acabaram por se concretizarem ao longo dos últimos anos, com o fortalecimento de grupos de extrema direita, a disseminação de discursos negacionistas sobre o regime de 1964 e a eleição presidencial de um candidato que defende abertamente a ditadura e faz elogios a torturadores.

Ao conectar passado e presente, a coletânea Espectros da ditadura oferece uma contribuição valiosa para os dias atuais. Além de contribuir para uma compreensão mais ampla e multifacetada do passado ditatorial, da justiça de transição e das políticas de memória, o livro organizado por Edson Teles e Renan Quinalha ajuda a lançar novos olhares sobre os desafios da democracia no tempo presente e nos convoca a uma resistência intelectual e política aos dias difíceis que estamos atravessando.


 

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