Em meio ao novo ciclo de lutas do Movimento Passe Livre pela tarifa zero em São Paulo, a editora Autonomia Literária liberá um capítulo do livro “Passe Livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização“, escrito pelo jornalista e ativista Daniel Santini, para provar que é possível zerar a tarifa do buzão no Brasil.
Acionar tribunais contra prefeituras não é uma exclusividade de empresas de aplicativos de transporte. Em outro caso, foram empresas de ônibus que decidiram procurar a Justiça. Só que, ao contrário da Uber, que alegou na sua ação que o poder público estava atuando de maneira inconstitucional por tentar impor restrições a uma atividade econômica, as companhias solicitaram liminares para tentar impedir a criação de um sistema de transporte paralelo baseado em passe livre, iniciativa que classificaram como concorrência desleal. A disputa teve início após a criação em 2015 de uma empresa estatal de transporte seguida da abertura de linhas operando com tarifa zero pela prefeitura de Maricá (RJ), o que os empresários proprietários das viações Nossa Senhora do Amparo e Costa Leste, únicas a operar na cidade até então, chamaram de dumping. O termo, em inglês, é utilizado para definir a prática em disputas comerciais de ofertar preços abaixo do valor de mercado para prejudicar a concorrência.
O caso é interessante para análise justamente porque se estrutura sobre a própria concepção do que é o transporte. Se for entendido como um serviço a ser consumido pela população, então as empresas realmente têm razão, o que a prefeitura fez foi “ofertar” linhas concorrentes para clientes com um preço artificial, inviabilizando o negócio. Agora se transporte for entendido como um direito a ser garantido pelo Estado para toda a população, como previsto no Artigo 6o da Constituição Federal, então a iniciativa do poder municipal pode ser compreendida como um esforço no sentido de universalizar e ampliar o acesso à mobilidade. E a acusação de concorrência desleal perde o sentido.
Maricá, que hoje tem 157.789 habitantes, é a única cidade com mais de 60 mil habitantes com políticas de passe livre de caráter universal no Brasil. A cidade tem 361,572 km², uma área extensa difícil de cobrir, e as rotas com linhas com tarifa zero ainda não alcançam toda a área urbana. Mas o sistema está em expansão. O município fica a cerca de 60 km da capital do Estado do Rio de Janeiro.
A disputa tem um contexto que ajuda a exemplificar como podem ser intensas as relações entre empresas de ônibus e o poder público, e também como são complexas as disputas por poder no nível local. A Viação Nossa Senhora do Amparo, uma das que procurou a Justiça, tem raízes profundas na estrutura econômica e política de Maricá. A empresa, criada em 10 de maio de 1950, é uma das mais antigas e poderosas do município. O fundador Jacintho Luiz Caetano (1900-1986) foi um empresário pioneiro, que inaugurou rotas e estruturou a conexão da cidade com outras regiões. Foi ele quem estabeleceu as bases que permitiram ao grupo crescer e, além de linhas municipais, passar a operar também linhas intermunicipais atendendo os municípios de Niterói, Rio de Janeiro e São Gonçalo.
No site institucional, a Viação Nossa Senhora do Amparo informava em maio de 2019 contar com 280 ônibus e mil empregados, apresentando-se como uma das principais empregadoras e contribuintes do setor privado de Maricá. Quando tomou providências para instituir o passe livre na cidade em dezembro de 2014, o então prefeito Washington Luiz Cardoso Siqueira, o Quaquá, posicionou-se publicamente contra a família, reclamando da influência na política local e nas eleições anteriores. Foi durante seu segundo mandato que o governante, considerado uma das principais lideranças do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio de Janeiro, adotou uma estratégia agressiva, confrontando a influência privada do grupo na política com um discurso de defesa do bem público.
Sem poder simplesmente cancelar a concessão das duas empresas em função de contratos firmados antes de sua gestão, ele decidiu, em dezembro de 2014, criar a Empresa Pública de Transportes (EPT), adquiriu ônibus novos e organizou rotas operando com tarifa zero. Para marcar a diferença, comprou ônibus vermelhos, que contrastavam com os azuis operados pelas duas viações privadas. Apelidados de vermelhinhos, os novos ônibus municipais começaram a circular no começo de 2015 e passaram a atender parte da cidade, em um sistema paralelo ao comercial.
As empresas reagiram, envolveram o Sindicato das Empresas de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Setrerj) na disputa e conseguiram suspender a circulação dos vermelhinhos mais de uma vez. A disputa se arrastou em 2015 e 2016, mas a prefeitura conseguiu rever todas as decisões e colocar os vermelhinhos de novo nas ruas. Como uma reação à ofensiva judicial, Quaquá apertou a fiscalização sobre os ônibus das viações privadas, aplicando multas e até retirando alguns de circulação em função de problemas encontrados. Também conseguiu que a Câmara Municipal aprovasse uma lei que alterou o nome do Terminal Rodoviário Jacintho Luiz Caetano para Terminal Rodoviário Povo de Maricá. Além de eliminar o nome do patrono da Viação Nossa Senhora do Amparo, mandou retirar um busto do empresário do terminal e devolvê-lo para a família.
Nas eleições municipais de 2016, a questão do transporte tornou-se um ponto central. Quaquá, no fim do seu segundo mandato, indicou Fabiano Horta (PT) como seu sucessor. O passe livre fez a diferença e garantiu votos. A tarifa zero tornou-se tão emblemática na disputa que até o Ministério Público do Rio de Janeiro entrou em ação, recomendando que o logo da Empresa Pública de Transportes, pintado em vermelho, fosse retirado dos vermelhinhos. Os promotores entenderam que, por ter a primeira letra diferente, a sigla EPT poderia ser entendida como uma referência ao PT. Prometendo dar continuidade ao passe livre, Horta foi eleito com 39.128 votos. O segundo colocado, Marcelo Delaroli (DEM) teve a candidatura indeferida por prática de abuso de poder econômico e seus 33.380 votos foram anulados. Com isso, Horta contabilizou 96,12% dos votos válidos.
O resultado afetou as duas empresas. A Viação Costa Leste não conseguiu continuar operando. Em abril de 2017, seus ônibus deixaram de circular e a prefeitura alegou quebra de contrato. A empresa faliu e suas linhas passaram a ser cobertas por vermelhinhos. A Viação Nossa Senhora do Amparo, que não dependia somente das linhas municipais por também operar linhas intermunicipais, conseguiu sobreviver. Com muito mais estrutura que a primeira, a empresa adquiriu ônibus novos e passou a investir na imagem de serviço de excelência. Não é a primeira crise que o grupo atravessa. Durante o governo de Leonel Brizola (PDT), que tinha como bandeira a estatização dos transportes de todo o Rio de Janeiro, a empresa foi uma das encampadas. O Estado assumiu a administração em dezembro de 1985 e manteve o controle até 1988, quando o governo Moreira Franco (PMDB) reverteu a política de seu antecessor.
Dessa vez, porém, a empresa corre o risco de ter que deixar de operar em sua cidade natal. A concessão atual vence em 2020 e o prefeito Fernando Horta (PT) já anunciou a intenção de não renovar o contrato, substituindo de vez o sistema privado pelas linhas abertas. Moradores de áreas ainda não atendidas cobram a expansão e a prefeitura tem condições de bancá-la. Em 2019, a estimativa da prefeitura era de 15 mil passageiros transportados por dia, ou 500 mil por mês, a um custo anual de cerca de R$ 15 milhões.
Para estruturar e manter a rede estatal, o município tem se valido de royalties pela exploração de petróleo em sua costa, uma receita crescente assegurada pela Lei n. 9.478 de 1997. Desde que Quaquá instituiu o sistema, a receita com royalties só aumentou. A cidade está entre as que mais recebem recursos do país. Em 2015, foram R$ 275 milhões adicionais no orçamento. Em 2016, R$ 301 milhões. Em 2017, o valor mais que dobrou: R$ 747 milhões, fenômeno que se repetiu em 2018, quando a cidade teve uma receita extra de R$ 1,4 bilhão. Os valores constam no Portal da Transparência do governo federal.
Apesar de em Maricá a fonte extra ter sido fundamental para a estruturação do sistema de passe livre, o ex-prefeito Quaquá defende que mesmo cidades que não contam com royalties podem adotar a política. Ele deixou o cargo em 2016 e, em função de um processo no qual foi acusado de abuso de poder político na disputa da reeleição em 2012, acabou condenado e tornou-se inelegível por um período de oito anos. Apesar de afastado dos pleitos, ele continua sendo uma figura influente e, como presidente do PT no Estado do Rio de Janeiro, tem se posicionado publicamente a favor da expansão da tarifa zero no transporte público, inclusive para a capital. Em diferentes entrevistas, defendeu que seria possível gradualmente instituir o passe livre em metrópoles a partir de fórmulas que combinem financiamento baseado em repasses do governo federal com contribuições por parte de empresas privadas, que são beneficiadas por não ter mais que pagar vale-transporte quando há passe livre.
Dentro do PT, é um dos que defendem que recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide-combustíveis) sejam destinados para subsidiar o transporte público. A Cide, taxa que incide na importação e comercialização de combustíveis, foi instituída em dezembro de 2001 com o objetivo de garantir recursos para o setor de transportes, especialmente construção e manutenção de infraestrutura. Quaquá entende que seria melhor priorizar o investimento dos recursos em redes coletivas municipalizando transferências, em vez de destiná-las para custear grandes obras viárias coordenadas pelo governo federal, que é basicamente o que acontece hoje.
Por enquanto, sem precisar de recursos federais, além dos royalties pagos pela extração de petróleo, Maricá segue utilizando seu orçamento superavitário para aprofundar a transformação no seu sistema de transportes. Além de expandir o passe livre para toda a cidade, o prefeito Fernando Horta pretende transformar Maricá em um polo tecnológico para produção de ônibus híbridos movidos com energia elétrica e hidrogênio. Em 2018, a prefeitura assinou um acordo de parceria com o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das principais instituições de ensino e pesquisa em engenharia da América Latina, assumindo o compromisso de financiar a produção das primeiras unidades de um novo modelo. Serão os primeiros vermelhinhos que não precisam de petróleo para circular.
Além de viabilizar a produção dos novos modelos, a parceria prevê a criação das bases do que a prefeitura está chamando de Parque Industrial Sustentável, o que pode ser um novo polo regional para produção de tecnologias de menor impacto ambiental nos transportes. Os ônibus híbridos, pensados para serem produzidos em série, são mais silenciosos, eficientes e menos poluentes que ônibus movidos a diesel. Em vez de fumaça, deixam uma trilha de gotas de água por onde passam, único resíduo direto gerado.
Paralelo ao projeto de fabricação de novos modelos, o poder municipal trabalha também com outras novidades. Já foram anunciadas a instalação de câmeras de monitoramento interno nos ônibus e o desenvolvimento de um aplicativo com informações em tempo real sobre as previsões e paradas de ônibus. Atrasos dos vermelhinhos têm sido motivo de críticas de vereadores de oposição, que sempre que podem procuram associar o serviço sem cobrança direta à baixa qualidade. Até um abaixo-assinado chegou a ser organizado para tentar pressionar pela abertura de novas concessões de linhas para a iniciativa privada.
Mesmo com as críticas, no entanto, a tarifa zero conta com apoio da prefeitura e a tendência é o modelo ser aprofundado, agora com esse viés ecológico. Também pensando em mobilidade sem emissões de poluentes, aliás, a cidade já tem projetos para instalação de suportes de bicicleta nos ônibus e criou uma rede própria de compartilhamento de bicicletas públicas, apelidas de vermelhinhas.
Maricá é a capital do passe livre no Brasil.