Mais letais e silencioso que as bombas de outrora, os embargos dos EUA ao regime venezuelano já retiraram mais 6 bilhões de dólares da economia e matam mais de 40 mil pessoas por ano no país. Mike Pompeo, Secretário de Estado do governo Trump, que esteve no Brasil, fala abertamente em “apertar a corda” no pescoço da Venezuela.
Por George Ciccariello-Maher, autor do livro Construindo a Comuna: democracia radical na Venezuela | Tradução de Aldo Sauda
Inverteu-se violentamente, mais uma vez, a dialética da história na América Latina. Não há, como se sabe, nada de novo nisso: há meio século, a região converteu-se numa brutal incubadora para a economia neoliberal, imposta por meio da contra insurgência e da ditadura, e provando que o “mercado livre” não tem nada de livre. Porém, para toda ação, há igual e oposta reação, e mesmo que as forças sociais não sejam leis da física, a energia revolucionária enfraquecida e dispersa durante a ofensiva neoliberal não foi destruída por completo. Naqueles espaços abandonados pelo Estado e pelo capital, experimentos democráticos de base e de autogestão comunitária espalharam-se. Nas zonas de confronto, esta guerra gramsciana de posições virou guerra de movimento, reforçando em espiral a resistência explosiva e o violento “chicote da reação”.
Não nos surpreende que a América Latina tenha virado, tão rápido, de incubadora do neoliberalismo para incubadora da revolução. Mas de novo aqui estamos, com o pêndulo jogando todo seu peso contra nós. As manchetes sobre crises econômicas, escândalos de corrupção e a morte antecipada dos governos progressistas por golpes obscuros – por mais “institucionais” ou “parlamentares” que fossem – seguiu-se o retorno a práticas de contra insurreição e o surgimento de um novo fascismo pela América Latina.
Jair Bolsonaro incorpora esta guinada, mesmo que não o dirija – não daremos a tal fascistinha nem mesmo esta dúbia homenagem. No Brasil, o colapso no preço das commodities levou à recessão, enquanto a tensão interna entre dirigentes de Estado e setores de base enfraqueceram a capacidade de mobilização da esquerda. Isso permitiu à direita apropriar-se da linguagem da anticorrupção, retirando um líder e prendendo outro para, finalmente, eleger um fascista sob o manto da “democracia”. Diferentes variações deste roteiro têm se repetido pela região, fracionando a já tensa unidade pluralista de projetos das esquerdas representado na onda progressista latino-americana.
Obama forjou a lança que Trump a atirou
Passaram-se três anos da publicação de Construindo a Comuna, e todos sabem o quão ruim ficaram as coisas na Venezuela. A crise econômica tornou-se catastrófica, o mercado paralelo de dólares norte-americanos disparou em espiral, dizimando o coração da economia venezuelana e empurrando o país para um canto sombrio: corrupção, tráfico, armazenamento de alimentos, atividades de mercado paralelo, especulação de moeda. Segundo os números recentes do Banco Central da Venezuela, a inflação superou 130,000% em 2018 e, segundo algumas estimativas, até três milhões de venezuelanos deixaram o país.
Há muitos responsáveis pela situação. Desde 2012 tem-se registrado uma verdadeira tempestade intencional ou não, queda no preço do petróleo, morte de Hugo Chávez, brutal agressão da oposição doméstica e dos EUA, e inação do governo de Nicolás Maduro para corrigir a distorção no sistema de controles cambiais. No processo, cada elemento vai retroalimentando este ciclo. Porém, não se pode duvidar de uma coisa: o principal responsável por empurrar a economia venezuelana em direção ao precipício foram as sanções norte-americanas, e a evolução de crise para catástrofe foi claramente intencional.
Neste caso é preciso ser direto: sanções significam homicídio. Qualquer discurso sobre sanções “direcionadas” ou “cirúrgicas” para punir o governo Maduro, enquanto poupariam a população, não passa de uma mentira cínica, e todos os envolvidos sabem disto. Tais falácias não começaram com Donald Trump, mas com Barack Obama, que em 2015 declarou que a Venezuela era “uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos”. Obama impôs sanções a um punhado de cidadãos, mas o impacto foi muito maior, devido às exigências previsíveis do capital:
Instituições financeiras começaram a fugir da Venezuela, sobretudo depois de março de 2015, diante dos riscos de emprestar a um governo que os Estados Unidos pareciam cada vez mais dispostos a derrubar – e que, com a piora na economia, pareciam próximos de consegui-lo. O setor privado venezuelano teve corte em linhas vitais de crédito, que contribuíram para uma queda sem precedentes, e quase inacreditável, de 80% nas importações em seis anos, o que arrasou esta economia dependente em importações.
Nas inconfundíveis palavras de Vijay Prashad, “Obama forjou a lança; Trump a atirou contra o coração da Venezuela”.
Esta lança é de fato mortal. Um relatório recente do Center for Economic and Policy Research, escrito pelos economistas Mark Weisbrot e Jeffery Sachs, confirmou o que muitos no local já sabem: que no léxico neoliberal do século XXI “sancionar” é matar. Em agosto de 2017, o regime Trump impôs um perverso pacote de novas sanções, que bloqueou o acesso da Venezuela ao mercado financeiro norte-americano. Na prática impedia qualquer reestruturação da dívida que possivelmente envolvesse bancos norte-americanos, também bloqueando o acesso da Venezuela a fundos de sua própria filial de petróleo nos Estados Unidos, a CITGO. Os contornos viciosos do ciclo que se seguiu foram os seguintes: sem recurso para produzir petróleo, não há dinheiro para sobreviver, muito menos para produzir mais petróleo. E sem financiamento para investir em infraestrutura para comprar diluentes e outros insumos químicos, a produção petroleira da Venezuela entrou em queda livre logo após a imposição das sanções.
Weisbrot e Sachs estimam que as sanções de 2017 custaram à Venezuela incríveis 6 bilhões de dólares em um ano, mais do que o dobro da quantia gasta em 2018 em todas as importações de alimento e medicamentos juntas. Não é de surpreender, portanto, que tais sanções “direcionadas” tivessem um impacto muito mais amplo, e que os mais afetados fossem os cidadãos, e não o governo:
As sanções reduziram a ingestão calórica da população, aumentaram as doenças e a mortalidade (de adultos e recém-nascidos), além de deslocar milhões de venezuelanos, que fugiram do país pela piora na depressão econômica e hiperinflação. Elas exacerbaram a crise econômica venezuelana e quase impossibilitaram a estabilização da economia, contribuindo para intensificar o índice de mortalidade. As medidas impactam e causam danos desproporcionais entre os venezuelanos mais pobres e vulneráveis.
Ao todo, Weisbrot e Sachs identificam em 40 mil o número total de mortos pelas sanções, e isso apenas entre o fim de 2017 e 2018 – seguramente, uma estimativa baixa. Mais de 300.000 seguem em risco por falta de acesso a remédios importados, inclusive “80 mil pacientes com HIV que não tem tido acesso a tratamento retroviral desde 2017, 16 mil pessoas que necessitavam diálise, outras 16 mil com câncer, e 4 milhões com diabetes e hipertensão”. Para o ex-primeiro ministro espanhol José Luís Rodríguez Zapatero, pessoa nem um pouco simpática a Maduro, o êxodo em massa, em geral apresentado como prova contra o governo, está diretamente relacionado às sanções: “como sempre ocorre com as sanções econômicas que criam embargosfinanceiros, em última instância, com certeza não é o governo quem paga o preço, mas os cidadãos, o povo”.
Mais uma tentativa de golpe da oposição
As sanções de Trump de 2017 foram apenas o começo. Em janeiro de 2019, a oposição venezuelana lançou-se como um todo numa tentativa de golpe encabeçada por Juan Guaidó, que saiu direto do banco de reservas para tentar tomar a presidência de assalto. Mas apesar do apoio da oposição venezuelana, da direita latino-americana, do governo Trump, e a despeito do caos econômico que devora país, a revolução bolivariana provou resiliência inesperada entre os ativistas da base e os militares.
O golpe de Guaidó colapsou antes mesmo de começar, mas o estrago foi feito. Com a imagem de Maduro ainda mais desmoralizada, os Estados Unidos entregaram a CITGO – que vale mais de 7 bilhões de dólares – assim como ativos da Venezuela ao regime Vichy de Guaidó. Enquanto os venezuelanos mal conseguem sobreviver, um líder golpista da oposição roubou três vezes mais do que o equivalente a todos os gastos do país em alimentos e remédios em um ano. O crime não parou por aí: logo surgiram denúncias da equipe de Guaidó apropriando-se da chamada “ajuda humanitária” e desviando-a para em gastos luxuosos, enquanto usavam a linguagem da anticorrupção.
Havia ainda mais por vir. O governo Trump, pouco depois do golpe fracassado de Guaidó, apertou ainda mais o cerco. Se em 2017 promoveu um bloqueio financeiro, em 2019 começou um bloqueio petroleiro: a Venezuela foi barrada do mercado de petróleo dos EUA, que intimidaram outros países a fazerem o mesmo. Em janeiro de 2019, a Venezuela havia exportado 700 mil barris de petróleo por dia aos EUA, mas em março este número caiu para zero. O resultado foi nada menos do que catastrófico. A produção de petróleo que despencou em um terço depois das sanções de 2017, entrou em colapso inteiramente em 2019, caindo novamente pela metade.
Em menos de dois anos, a produção de barris de petróleo na Venezuela foi de 1.9 milhão por dia para apenas 740 mil. E numa mudança qualitativa, a produção já não estava em colapso por problemas na oferta (falta de financiamento e peças de manutenção), mas na parte da demanda (falta de acesso a mercados). Sem local para estocar sua produção de petróleo, Caracas foi forçada a vendê-lo com enormes descontos no mercado global. Assim mesmo, os Estados Unidos pressionaram duramente países como a Índia a encerrarem em definitivo a compra do petróleo venezuelano.
Além disso, o regime Trump tem usado todos os meios extralegais possíveis para – nas palavras de um analista do mercado financeiro – “tornar a Venezuela radioativa”. Isto vai desde escalar assessores financeiros especiais treinados para assustar credores, pressionar e até ameaçar parceiros comerciais em potencial. Alguns, como o economista ligado à oposição Francisco Rodríguez, diz que tais medidas são “talvez até mais importantes” e mais nocivas que as sanções oficiais. Elas têm tido efeito cascata em quase toda a sociedade e a economia, com as comunidades pobres da Venezuela lutando para manter ao menos acesso à água potável, dado que as sanções impedem a importação de bombas d’água e outras peças de manutenção.
Um relatório publicado pela Campanha de Solidariedade com a Venezuela investigou a documentação sobre os bloqueios à importação de insulina e de medicamentos para combate da malária, ao financiamento direto para transplantes de medula óssea, assim como a contenção ilegal de quase 5.5 bilhões de dólares por instituições financeiras mundiais, em resposta às sanções e ameaças norte-americanas.
O ato mais sádico de Trump, porém, tem sido seu ataque direto ao programa de Comitês Locais para Abastecimento e Produção (CLAP). Frente à escassez, o governo venezuelano estabeleceu o programa em 2016 para entregar cestas básicas direto na casa das famílias. Segundo oposicionistas do instituto de pesquisa Datanálisis, cerca de 75% dos venezuelanos, chavistas ou da oposição, se beneficiam atualmente das CLAPS. E, se muito pode-se criticar no programa – sobretudo por ser mais voltado ao “abastecimento” (de bens importados) do que à “produção” doméstica – não surpreende que ele entrou na mira dos EUA.
Entre dezembro de 2018 e maio de 2019, o governo venezuelano tentou eliminar a variação cambial do mercado paralelo e conter a hiperinflação, desvalorizando o bolívar e eliminando acessos preferenciais a dólares. Ao contrário das terapias de choque neoliberais, porém, instituições como as CLAP amortizaram o golpe nos mais pobres. E, se o governo venezuelano optasse por uma guinada radicalmente comunista – algo que decerto deveria fazer – ele teria de depender destes circuitos de distribuição, enquanto impulsiona a produção comunal local. É por isto que a oposição queimou armazéns das CLAP durante a curta tentativa de golpe por Guaidó, e também porque os EUA escolheram atacar o programa.
Produzir colapso para incendiar revoltas
As 40 mil mortes relacionadas às sanções por Weisbrot e Sachs não incluem nem mesmo a mais recente onda de sanções, cujos autores descrevem como “muito mais severas… uma sentença de morte a dezenas de milhares de pessoas que não podem deixar o país para achar medicamentos em outros lugares”. As sanções “encaixam-se como punição coletiva à população civil, conforme descrito nas definições das convenções de Genebra e de Haia, das quais os EUA são signatários. Elas também são ilegais, segundo o direito internacional e os tratados que os EUA assinaram, e parecem violar a legislação norte-americana”.
Falando mais recentemente no programa de notícias Democracy Now, Sachs – antes um defensor das políticas neoliberais de “terapia de choque” – foi direto ao ponto: “há uma catástrofe humanitária, deliberadamente causada pelos EUA, pelo que entendo serem sanções ilegais, porque são uma tentativa deliberada de depor um governo e tentar criar o caos com o propósito de derrubá-lo”.
O que fazer? Não é suficiente apenas apontar os custos humanos inevitáveis das sanções, porque este evidentemente é seu objetivo: fazer as pessoas sofrerem, na esperança de que eventualmente se revoltarão contra o governo. Se há qualquer dúvida sobre isto, não precisamos ir muito além das falas do secretário de estado de Trump, Mike Pompeo, sobre “apertar a corda” no pescoço da Venezuela. Ou, na descrição de outro funcionário, cujo nome não foi citado, comparando abertamente as sanções à pegada mortal de Darth Vader. Um funcionário da embaixada norte-americana no México foi ainda mais direto, dizendo que “estamos vendo o total colapso econômico… então nossa política está funcionando”, e a concordância do ex-embaixador dos EUA na Venezuela, William Brownfield, argumentando sadicamente que “talvez a melhor forma é acelerar o colapso”, mesmo que isto leve a “meses ou anos de sofrimento”. Nossos tempos realmente são, para usar as palavras de Gramsci, “tempos de monstros”.
Também neste caso, o consenso é bipartidário: Trump simplesmente aprofundou um programa de mudança de regime iniciado por Obama, cujas próprias políticas eram dificilmente distinguíveis de seu antecessor, George W. Bush. Quando Madeleine Albright, Secretária de Estado sob Bill Clinton, foi questionada sobre as mais de 500 mil crianças iraquianas mortas pelas sanções norte-americanas, ela respondeu com infâmia: “Achamos que o preço valeu a pena”. O mesmo se aplica, hoje, ao governo Trump: o preço vale a pena, e o preço continua a subir.
Em agosto de 2019, o governo dos EUA congelou todos os bens venezuelanos e dobrou as ameaças a terceiros. Nas palavras do direitista e ex-Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, “estamos mandando um sinal aos terceiros que queriam fazer negócios com o regime Maduro: siga com extrema moderação… não há necessidade de arriscar seus negócios com os EUA”. A inflação, que diminuía em resposta às medidas tomadas pelo governo Maduro, imediatamente disparou. Em resposta, Maduro cancelou as negociações em curso com Guaidó, mas o Ministro de Relações Exteriores, Jorge Arreaza acusou Trump de tentar “implodir o diálogo.”
Porém, as sanções são uma espada de dois gumes, e a agitação social envolve imprevisibilidade – pode-se aumentar a pressão, mas nunca se sabe direito o sentido do escape. Especificamente, o tema das sanções hoje divide águas na oposição: a franja radical reacionária incorporada em Guaidó, substituto de segunda linha para Leopoldo López, apoia as sanções, enquanto a maioria da oposição – e a vasta maioria da população venezuelana – é contra. Quando Guaidó fracassou em cumprir sua promessa de um golpe rápido em janeiro, começou a desmoronar sua influência em Washington e Caracas, e até agora segue caindo morro abaixo, com uma série de escândalos de corrupção e uma falta de direção que corroeu o pouco apoio que teve. Quando Trump mais tarde demitiu Bolton, arquiteto de sua estratégia venezuelana, foi como se ele também estivesse demitido Guaidó.
Dialética selvagem na América Latina
Enquanto a historiografia reacionária vê apenas ciclos eternos, a perspectiva dialética revela em seu lugar espirais: condições que se transformam, autoconsciências emergentes, persistências da tradição radical e memórias de resistência, mas também o esquecimento e apagar gradual destes elementos ou seu esmagamento pelas repressões brutais. Todos são elementos permanentes da história latino-americana, e todos estão hoje presentes na Venezuela e região.
A cada volta, o espiral não trará eterna reincidência ou inevitável progresso, mas uma nova luta entre a esquerda e direita transformada, um povo em movimento enfrentando um mundo em transformação. Não se pode negar que os anos recentes têm visto uma mudança na correlação de forças que se deslocou de um movimento com setores revolucionários de base para algo mais entrincheirado, conservador, e elementos corruptos que vem do aparato de Estado.
Há razões materiais para isto, uma vez que a crise incentiva a corrupção, que já era endêmica. Especulação de moeda, estocagem e trocas no mercado paralelo de bens com preços controlados (bachaqueo, cuja derivação epistemológica evoca o fervilhar voraz das formigas vermelhas). Na fronteira, contrabando de alimento produzido na Venezuela e, principalmente, de gasolina que, como enorme funil, atravessa em direção à Colômbia, canalizando bilhões de dólares por ano – tudo isso engorda os bolsos dos que já são ricos e bem relacionados, enquanto as prateleirasficam vazias e os pobres têm dificuldade em se alimentar.
E os militares?
Neste contexto, é inegável que os militares assumiram enorme poder político e militar, não apenas por controlarem as zonas de tráfico e fronteiras, devido à criação de uma zona especial militar econômica, sem falar na empresa mineradora controlada pelos militares no polêmico arco mineiro de Orinoco. Durante o golpe fracassado de Guaidó, porém, a lealdade dos militares foi uma mercadoria valiosa, com funcionários do governo norte-americano oferecendo, sem escrúpulos, comprar qualquer general disposto a se vender.
Por sorte nenhum mordeu a isca, mas quando a alta patente militar dá as cartas, as bases sofrem. E, como bem demonstra o exemplo chileno, apostar na lealdade militar tem andado de mãos dadas com a agenda conservadora, que tem promovido privatizações e a repressão à luta dos trabalhadores. Por exemplo, quando o ministro da Agricultura, Wilmar Castro Soteldo, ligado à ala mais conservadora do chavismo, decidiu privatizar a fábrica de alimentos Arroz del Alba no início de 2019, operários que ocuparam a fábrica foram presos e detidos por mais de dois meses. Após protestos dos movimentos sociais e até mesmo de Elías Jaua, ex-ministro da Agricultura (mais de esquerda), estes comuneros eventualmente foram soltos, mas a onda de privatizações seguiu desimpedida.
O que explica esta mudança na correlação de forças? Para muitos, na esquerda assim como na direita, a resposta se reduz a uma única palavra: Maduro. Mas mesmo se os anos desde a morte de Chávez coincidiram com este novo cenário, a correlação não deve ser confundida com causalidade. E, se a história venezuelana nos ensina algo, é o perigo de conclusões fáceis. A correlação, obviamente, não se sustenta: Maduro na verdade aumentou o apoio às comunas nos anos posteriores à morte de Chávez, sob o radical ministro das Comunas, Reinaldo Iturriza. Ainda mais importante, porém, é que exagerar na visão de mudança de Chávez para Maduro é cair no pecado fatal de atribuir aos indivíduos a dinâmica das forças sociais – se os livros We created Chavez e Construindo a Comuna tiveram um único objetivo comum, era o de desconstruir esta mitologia.
Enquanto, de certa forma, Chávez era o mais próximo possível a uma força social que qualquer outro indivíduo, sua ausência também coincide com uma mudança global nas condições materiais. Há o colapso do preço das comodities (incluindo petróleo), a agressão sangrenta vinda de dentro e do exterior, a real exaustão e redução nas energias revolucionárias, e o colapso dos governos progressistas latino-americanos como rede de apoio para as experiências radicais pela região. Mas a questão é que estas e outras tendências já estavam presentes na época de Chávez, principalmente a tensão entre os poderes constituintes e constituídos, entre a base e o Estado que, ceteris paribus, poderia e tem levado à criação de uma nova elite arrogante, embrenhada nas instituições do Estado. Não houve um ponto específico de inflexão, apenas o empurra-empurra permanente pela hegemonia de uma luta revolucionária sem garantias.
Interlúdio radicalizado
Sem dúvida esta é a fase mais difícil da revolução bolivariana, que não tem tido momentos fáceis. Por que agora seria diferente? O processo bolivariano surgiu não de vitórias passadas, mas dos fracassos, erros de cálculo, da derrota sangrenta da luta armada venezuelana e da subsequente geração dos movimentos revolucionários de base teimosamente lutando uma batalha perdida contra o Estado e o capital. Ele surgiu de milhares de experimentos malogrados e de centenas de becos sem saída, de revoltas e repressões como o Caracazo de 1989 – como flores que brotam em cima do chão fertilizado por covas coletivas. A trilha nunca foi fácil, e quando falamos de revolução, as chances jamais estão a nosso favor.
A maré progressista latino-americana, aquele período de hegemonia e ebulição da esquerda podem de fato ter terminado, mas o retorno da direita ao poder não significa a derrota da esquerda. Podemos, ao invés disso, estar vivendo um mero período de interlúdio, um momento de reflexão e radicalização, um recuo tático de um estado ao qual não devemos nada a não ser a permanente suspeita. As forças da reação estão alargando seu poder de alcance e a ando suas garras, mas estão longe de serem invencíveis. Assim como foi na Argentina com Macri, está cada vez mais óbvio que os pés de Bolsonaro são feitos de barro – e que ele logo pode cair.
O giro da Colômbia de volta à extrema-direita pode desencadear um retorno à guerra civil. E o México conseguiu livrar-se da tendência regional com a eleição de López Obrador, mas a qual custo? Muito do que acontece depende do delicado equilíbrio entre pragmatismo e dinamismo revolucionário. Na Venezuela, assim como no resto da região, a fonte deste dinamismo é o mesmo: aqueles movimentos revolucionários forçados a caminhar sobre uma linha tênue entre o Estado e sua dissolução, entre a insurreição que destrói e a que constrói o autogoverno comunal.
Em homenagem à luta revolucionária de El Salvador, o cantor venezuelano Alí Primera uma vez escreveu que “a marcha é lenta, mas segue sendo a marcha, empurrando o sol que a madrugada se aproxima”. Hoje, para os comuneros e comuneras há poucas alternativas para essa marcha e nenhuma delas é fácil – apenas a determinação teimosa de continuar empurrando por uma nova madrugada.
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George Ciccariello-Maher é pesquisador visitante do Projeto Descolonizar as Humanas, na Faculdade de William e Mary. Ele é o autor de “Decolonizing Dialectics” e “Created Chávez: A People’s History of the Venezuelan Revolution, and Decolonizing Dialectics”.