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Qual o Partido do Pantera Negra?

 

Primeiro super-herói negro da história ganha versão cinematográfica, lotando salas do mundo inteiro e gerando boas polêmicas e discussões sobre racismo, colonialismo e as saídas para isso.

 

Por Hermínio Porto & Hugo Albuquerque

O filme do Pantera Negra é um sucesso mundial, amplamente bem recebido, irritando, contudo, parte da esquerda radical e, naturalmente, a extrema-direita racista e anti-negra. A crítica dessa nova extrema-direita tem razões, embora injustificáveis, óbvias: como poderia um negro ser um herói e deter tamanho protagonismo, sobretudo porque nem sequer é um afro-americano, mas africano mesmo. Da parte das esquerdas, existem variadas críticas, algumas a partir do fato de que o Pantera se usaria do nome dos panteras negras, mas seria na verdade um personagem moderado, ou porque se é um personagem vindo da indústria de cultura em massa de Hollywood, necessariamente, estaríamos falando em algum tipo de armadilha.

Bom, primeiramente, o que pensa ou diz a extrema-direita, todo esse longo palavrório fundado na supremacia racial e na eugenia, evidentemente não nos interessa rebater aqui, seja porque isso carece de evidências científicas, ignora a mais elementar observação da natureza e, ademais, isso ainda por cima foi derrotado no campo de batalha na Segunda Grande Guerra Mundial. Contra essa narrativa, portanto, se luta, não se gasta tinta e voz, pois só se perde tempo rebatendo racionalmente algo que é racional. Não nos parece o caso, definitivamente.

A crítica de certa esquerda talvez seja válida de responder, mas isso certamente exige uma pesquisa elementar do personagem, que não foi criado para o cinema, mas sim só teve agora a sua primeira versão cinematográfica: O Pantera Negra é o herói negro mais antigo da Marvel Comics, tendo sido concebido e apresentado ao mundo em julho de 1966, na revista de histórias em quadrinhos Fantastic Four 52, então um dos principais títulos da Marvel.

Seus criadores são dois dos mais brilhantes quadrinistas de todos os tempos: o roteirista Stan Lee (1922 – ) e o desenhista Jack Kirby (1917 – 1994), ambos nova-iorquinos filhos de modestas famílias judias imigrantes, respectivamente da Romênia e da Áustria. Assim como outros tantos personagens célebres da Marvel, criados por esta dupla, ou por Lee e Kirby em colaboração com outros artistas, o Pantera Negra é fruto das questões mais urgentes de uma época nada trivial: os anos 1960 e seu incrível efeito libertador, o devir judeu resistente de uma editora nova-iorquina, o devir negro-africano de dois judeus.

Vejamos, por exemplo, o Capitão América: um personagem criado na Segunda Guerra Mundial por Joe Simon e Jack Kirby no bojo da luta contra o fascismo, mas foi praticamente recriado por Kirby em colaboração com Lee nos anos 1960: o Capitão representa não um herói patriótico ufanista, mas o arquétipo do veterano de guerra em toda a sua problemática e dimensão trágica, tão comum em uma América perpassada por guerras como a Segunda Grande Guerra, a Coreia e o Vietnã.

Do mesmo modo, o Hulk era uma crítica ao cientificismo e o fetiche com a energia atômica, por causa da corrida nuclear; o Homem Aranha uma ode contra a opressão sobre os intelectuais no sistema escolar americano e à precarização do trabalho; o Demolidor um experimento barroco sobre a Justiça (uma advogado que é um vigilante fora da Lei, um católico irlandês que se veste de demônio) e ao mesmo tempo uma defesa das pessoas com necessidades especiais (um cego – como a Justiça! – que pode ser herói, que é capaz); os X-Men uma implacável fábula em defesa dos direitos civis e uma apologia à diferença e assim por diante.  

O Pantera Negra, portanto, embora tenha sido concebido no calor a luta pelos direitos civis dos negros nos EUA, não foi assim chamado por conta do Partido dos Panteras Negras, movimento negro revolucionário criado poucos meses depois de sua estreia nos quadrinhos: Stan Lee alega que se tratou de uma estranha coincidência, e sua inspiração veio dos quadrinhos que lia na infância, mas mas na verdade, havia motivos para isso estar em seu inconsciente: o 761º Batalhão de Blindados do Exército americano, composto exclusivamente por negros, que lutou na Segunda Guerra Mundial contra os fascistas em missões na Europa, era chamado de batalhão Pantera Negra.

Logo, a fidelidade que se exige do personagem no filme em relação ao Partido dos Panteras Negras é um equívoco, pois o Pantera não é tributário dos panteras negras, mas ambos são inspirados no mesma imagem e criados no mesmo contexto. Uma crítica do filme por esse viés é, portanto, um equívoco objetivo, não uma linha interpretativa possível. Aliás, do ponto de vista estrito dos quadrinhos, Pantera Negra é quase uma resposta inconsciente – ou não – ao Fantasma de Lee Falk, um herói branco que tutela os negros de uma localidade imaginária de África. Aqui não, são os negros pelos negros, defendendo suas riquezas e sua dignidade.

No caso, Wakanda é uma poderosa e rica civilização governada pelo sábio e poderoso rei T’Challa, o Pantera Negra. Sendo a nação mais desenvolvida do mundo, jamais pôde ser dominada pela opressão racial, tal qual aconteceu aos outros povos africanos. Branco algum prosperou em dominar aquelas terras lendárias. Esta história ficcional carrega uma curiosa inversão quando se trata do Pantera Negra enquanto fenômeno cultural inserido em nossa realidade.

Assim como T’Challa precisou superar o próprio pai, o rei T’Chaka, o Pantera Negra precisou ir além de seus criadores originais. E aí que se encontra a grande ironia em relação à história ficcional: criado por quadrinistas judeus, o Pantera Negra se tornaria um fenômeno pop quando foi “dominado” por negros e negras de todo o mundo em suas equipes criativas, a começar pelos quadrinhos e depois no cinema. Foi a passagem do devir negro do próprio Pantera.

Em que pese o sucesso e brilhantismo do título “A Fúria do Pantera” (primeira e revolucionária Graphic Novel do personagem e da história das HQs, como um todo), de Don McGregor, o Pantera Negra e Wakanda precisaram do domínio habilidoso de artistas negros como Reginald Hudlin, que ressignificou a origem do Pantera no incrível arco “Quem é o Pantera Negra”, Ta-Nehisi Coates, que escreveu “Uma Nação Sob Nossos Pés”, quadrinho que reinseriu a publicação nas grandes questões políticas de nosso tempo e, inegavelmente, o diretor de cinema Ryan Coogler, bem como o elenco que ajudou a dar novos rostos a T’challa, sua corte e seus inimigos: Chadwick Boseman, Michael B Jordn, Lupita Nyongo (Quênia), Danai Gurira , Daniel Kaluuya, Angela Bassett, Florence Kasuma (Uganda) e Letitia Wright, só para exemplificar o incrível elenco.  

O Reino de Wakanda, ele próprio, é uma versão utópica, no sentido virtuoso do termo, de um país africano: dono de riquezas naturais e cheio de potencial, ele é atacado por potências ocidentais, por mercenários brancos e quetais. Na vida real, o colonialismo foi um flagelo que destruiu culturais e civilizações de África, persistindo até hoje, mas a mensagem do personagem é justamente o oposto, que é possível algum lugar de África se imaginar e se colocar diferente, o que exige resistência e autopreservação. Afrofuturismo e afroutopismo.

Talvez a questão mais polêmica do filme seja justamente a oposição entre o T’Challa moderado contra o seu primo radical Killmonger, e a representação de um Agente da CIA como herói coadjuvante: mas a conclusão do filme é outra, que o velho poder tradicional de Wakanda, omisso em relação aos negros do mundo, estava errado, o que exige, ao final, uma atuação positiva dos líderes do país enquanto, por outro lado, que Killmonger, o primo do Pantera, é, ele também, agente da CIA “especialista” em derrubar regimes. A CIA está longe de ser retratada como uma instituição aliada, embora a figura do agente Ross seja absolutamente idealista, seja para a própria instituição ou para a história da África.

Por fim, resta a alegação de que por seu produto da indústria cultural o filme é, necessariamente, reacionário. Apesar de ser um produto comercial que precisa de consumidores para prosperar (novos filmes, publicações e brinquedos para crianças negras que têm um super-herói com quem se identificam), há algo impagável no Pantera, nas Dora Milaje e em Wakanda: a capacidade de nos fazer pensar em novas utopias. O propósito do personagem nos quadrinhos e no filme é uma visão do povo negro forte e pronto a resistir, logo de qualquer fantasia infantilista ou comportada.

Não há valor que mensure a imaginação de uma terra não destruída pelo colonialismo e imperialismo, ou a imaginação de um menino e uma menina negra que podem se imaginar fortes como o Pantera Negra ou sua irmã Shuri.

 

James Hermínio Porto é estrando em Direito pela PUC-SP, colabora com o site Jornalistas Livres servidor público e militante do movimento negro.

Hugo Albuquerque é mestre em Direito pela PUC-SP, advogado e ativista e editor da Autonomia Literária

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