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Estamos Todos em Perigo: razões e perspectivas da vitória eleitoral autoritária no Brasil

Por Jean Tible*, autor de Marx Selvagem pela Autonomia Literária, escolhido um dos melhores livros de 2018, na categoria de Sociologia (embora seja muito mais do que isso), pela Revista Quatro Cinco Um

Esse país inocente te colocou num gueto no qual, ele, de fato, esperava que você iria perecer. Deixe-me colocar com precisão o que compreendo por isso, o coração da questão está aqui e é a disputa crucial com meu país. Você nasceu onde você nasceu e enfrentou o futuro que enfrentou porque você era negro e não por outro motivo. Os limites à sua ambição já estavam postos. Você nasceu numa sociedade que mostrou com brutal clareza e de tantas formas possíveis que você era um ser humano sem valor. Não tinham nenhuma expectativa que você aspirasse à excelência. Esperavam de ti a paz com a mediocridade

James Baldwin. A Letter to My Nephew (1962)

Existem vários tipos de poder, usados e não usados, reconhecidos ou não. O erótico é um recurso dentro de cada um de nós que repousa profundamente num plano espiritual e feminino, enraizado profundamente no poder de nossos sentimentos não expressados ou reconhecidos. Para perpetuar-se, cada opressão deve corromper e distorcer essas várias fontes de poder dentro da cultura do oprimido que pode prover energia para a mudança.

Audre Lorde. Uses of the Erotic: The Erotic as Power (1978)

Como posso lhe dizer? Como posso convencê-la, irmão, irmã, de que a sua vida está

em perigo. Que todo dia que você acorda, viva, relativamente feliz e saudável, você está

praticando um ato de rebelião. Você, uma queer viva e em bom estado de saúde, é uma

revolucionária.

Manifesto Queer Nation (1990)

Clique aqui: Edição de Marx Selvagem da Autonomia Literária, escolhido entre os melhores de 2018 pela Quatro Cinco Um.

 

A vitória, por uma expressiva votação de 57 milhões, de um candidato que defendeu abertamente durante a campanha a perseguição, tortura, prisão, morte e exílio de opositores é trágica – para o Brasil e o planeta. Um fato mundial e talvez inédito em seu grau de extremismo. Vincent Bevins, jornalista com experiência no Brasil e na Indonésia, chega a dizer que Jair Bolsonaro é mais extremista em seu discurso e posições políticas que Rodrigo Duterte. Minha impressão ao ouvir seu discurso para correligionários no domingo anterior à votação final é que se tratava de um Pinochet sem auto-censura, ébrio em seu próprio autoritarismo.

E tudo isso com legitimidade das urnas com uma margem confortável (55% contra 45% de Fernando Haddad, contando somente os votos válidos), além de vitórias de aliados nos governos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, dentre outros estados, e a segunda maior bancada de deputados (sendo que seu partido praticamente não existia antes do pleito).  

Obviamente não se tratou de uma disputa justa, já que o candidato favorito da população segundo as pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, foi tirado do pleito ao ser preso na sequência de um processo kafkiano. O Supremo Tribunal Federal (STF) também chegou a censurar uma entrevista de Lula e a Justiça eleitoral ordenou à polícia a retirada de faixas contra o fascismo em várias universidades. E sem esquecer do jogo sujo da campanha vencedora e seu massivo disparo de fake news via whatsapp, cujo financiamento tudo indica ter sido irregular (e logo passível de sanção).

Ademais, esses números podem ser matizados, já que o candidato vencedor conquistou 39% dos votos, frente aos 32% do seu adversário e aos 29% para a soma – recorde – de votos nulos, brancos e abstenções (42 milhões não optaram por nenhum dos dois candidatos). Ou seja, já há uma oposição forte, sobretudo dos jovens, mulheres, negros, LGBTQ+, nordestinos, além dos movimentos sociais em geral.

Como foi possível a eleição de um candidato tão autoritário ?

Trata-se de compreender esse funesto acontecimento em suas várias camadas, que indica um salto no abismo decidido pela população. Debates recentes da ciência política (sobretudo norte-americana) têm tratado da morte da democracia e tendem a enfatizar a ação de líderes que minariam suas instituições. Agora, com a eleição, nos aproximamos desse debate da liderança eleita antidemocrática. Até o momento, o caso brasileiro foi um tanto diferente – um trabalho concertado da classe dominante, das suas vertentes parlamentar, midiática, militar e sobretudo judiciária. O sistema político não aguentou e foi destroçado. Os setores democráticos não conseguiram formular uma alternativa e a saída escolhida pela população foi autoritária. Fato notável, a vitória se deu por fora das estruturas habituais (propaganda política na televisão, partidos, financiamento), sendo bastante atípica para os padrões vigentes (redes sociais, quatro anos de pré-campanha).

Golpismo atávico

Em 2013, o Brasil viveu um auge democrático e é nesse contexto que explodem os protestos de Junho. Um grito contra um sistema político-econômico ainda escravocrata, corrupto e extremamente desigual. Algo muito forte que nos conectou com a região: no período anterior, em praticamente todos os países da América Latina as lutas também se davam nas ruas e não só nas instituições; o Brasil era uma exceção. Estoura na luta pelo transporte em São Paulo e na violenta repressão da Polícia Militar, mas essa faísca revela um caldo mais subterrâneo — de alguma forma não tão visível para as lentes convencionais — que estava se desenvolvendo em todo o país.

O medo, em geral, é sentido pelas pessoas comuns (por conta de sua vulnerabilidade permanente), mas nesses dias isso muda, já que todos os poderes constituídos passam a ter medo. Com isso, os donos da mídia, dos bancos, os políticos graúdos, os juízes, militares, os industriais e os latifundiários, ou seja, todos os poderosos sentiram medo, e isso revela, de certa forma, uma verdade da democracia, a de que o poder é da população e esta o cede ao Estado, o que constituiria o contrato social.

Nesses momentos de disrupção — que são muito preciosos e cujos efeitos são duradouros —, mostra-se a genuína e olvidada base do poder, geralmente não exercida mas que naquele momento passa a sê-lo. Daí vem a grande força desses acontecimentos (potência), como o que ocorre no momento em que escrevo essas linhas com o surpreendente e múltiplo movimento na França dos gilets jaunes.

Junho representa o fim da estabilidade que o país estava vivendo. Um recorde de seis eleições presidenciais seguidas indicava uma certa estabilidade política. Além disso, crescimento com distribuição de renda e, talvez, de riqueza. Havia ainda mecanismos de participação, embora muito limitados, mas que não deixam de ser importantes. E ainda uma política externa, nas palavras do chanceler Celso Amorim, “ativa e altiva”. A partir de Junho, o lulismo, no sentido da mágica de dar aos pobres sem tirar dos ricos (por conta da virtu das micropolíticas econômicas, sociais e culturais que ativaram o mercado interno e cultivaram novas subjetividades e pela fortuna do boom das commodities), não é mais possível. Instala-se um conflito redistributivo e abre-se um novo ciclo político.

A partir daí todos os atores da sociedade brasileira são obrigados, de alguma forma, a se reposicionar — isso vale para a direita, a esquerda e o centro, para as empresas como a Globo, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), o agronegócio, para os movimentos indígenas e negros, ou seja, todos os atores da sociedade brasileira foram interpelados. A turma da Operação Lava Jato e seus aliados nacionais e internacionais foi um dos setores que melhor se posicionou para fazer prevalecer seus objetivos.

No ano seguinte, em 2014, a oposição tinha tudo pra ganhar (desgaste de doze anos de governos federais petistas, economia em baixa, inflação sobretudo de alimentos, clima pós-protestos de 2013, primeiro governo Dilma limitado) e não levou. 70% dos eleitores manifestavam desejo de mudança, mas Aécio Neves optou por um discurso pré-Lula (retorno a um certo padrão neoliberal) e a população queria mais serviços públicos de qualidade, combate às desigualdades e mais participação política e não menos.

A oposição, no entanto, não aceitou o resultado e, assim, a direita moderada insuflou uma direita raivosa. Ao não fazer o luto da derrota, entrou no caminho do golpismo; Fernando Henrique Cardoso declara que o governo Dilma é legal, mas não legítimo, alguns dias depois das urnas expressarem mais de 54 milhões de votos para a petista. O histórico e o continuum golpista das elites brasileiras foi ativado nesse momento, que teve nítidos componentes machistas contra Dilma.

A ativista e pesquisadora Naomi Klein já pode acrescentar mais um estudo de caso ao seu importante livro. Um choque-golpe em forma de impeachment sem crime de responsabilidade, governo temerário e restauração neoliberal na seguinte agenda: drástica contenção dos gastos públicos, mudança na legislação do pré-sal favorecendo o capital estrangeiro, reorientação da política externa, retirada de direitos trabalhistas, o liberou-geral da terceirização, tentativas de mudanças nas regras da aposentadoria, ataque aos povos indígenas, desmonte das políticas culturais, diminuição dos beneficiários do Bolsa Família, aumento do desmatamento, intensificação da repressão aos movimentos sociais e uma série de descalabros que poderiam compor uma lista quase interminável.

É nesse contexto que se deve apreender a prisão de Lula, personagem que polariza as eleições presidenciais desde o segundo turno de 1989 – são oito eleições seguidas e quase três décadas de presença constante no topo da agenda política: um fenômeno mundial. Seu encarceramento visou impedir o que seria uma muito provável vitória eleitoral, nesse golpe que se desdobra em várias fases e prossegue seu curso; sua condenação se dá em num contexto de atropelos na justiça – grampos ilegais, condução coercitiva desnecessária, prazos acelerados, delações premiadas suspeitas, provas inexistentes.

O que significa e nos ensina essa exclusão de Lula do pleito e a caça a esse corpo? Podemos pensar, por um lado, que o país não comporta nem mesmo um processo moderado de mudanças e um pacto mínimo de diminuição das nossas aberrantes desigualdades. Não querendo ceder absolutamente nada, as classes dominantes romperam o contrato básico eleitoral (ao tirar Dilma do cargo político máximo sem haver crime de responsabilidade).

Desrespeitaram, assim, as regras elementares e jogaram baixo. Essa continuidade escravocrata não tolera as brechas criadas e conquistadas – provocando uma tragédia com o Brasil, aprofundando-o na espiral recessiva e numa sobreposição de crises (política, econômica, social, existencial). A fome – seu fim como símbolo maior das conquistas do período Lula – volta a rondar muita gente. A austeridade, criminosa em qualquer canto do planeta, ganha outras camadas de perversidade por essas bandas.

Isso é ruim, inclusive para os donos do dinheiro e capital. Estariam eles agindo contra seus interesses? Sim, se pensarmos que os negócios vão mal. Não, pois o negócio deles é outro – como disse na quente década de 1970 italiana o Comitê Operário de Porto Marghera, ainda mais importante do que ganhar dinheiro é comandar (ou não perder poder);

o que devemos dizer antes de tudo é que é falso o lugar comum de que os patrões exploram os trabalhadores para se enriquecerem. Esse aspecto sem dúvida existe, mas a riqueza dos patrões não é em nada proporcional ao poder deles. Por exemplo, Agnelli [dono da FIAT], em proporção aos automóveis que produz, deveria andar vestido de ouro, porém ele se contenta com um barco e um avião privado, o que um outro patrão com uma fábrica bem mais modesta do que a FIAT pode muito bem se permitir. O que interessa a Agnelli é a conservação e o desenvolvimento do seu poder, que coincide com o desenvolvimento e o crescimento do capitalismo: quer dizer, o capitalismo é uma potência impessoal e os capitalistas agem como seus funcionários. (…)  O capitalismo está substancialmente fundamentado, sobretudo, em conservar essa relação de poder contra a classe trabalhadora e usa o seu desenvolvimento para reforçar sempre mais esse poder.

Disputa eleitoral

Bolsonaro começa a eleição tendo como ponto forte o eleitorado masculino, os que vivem no centro-sul do país e possuem formação universitária. No segundo semestre de 2017, sua candidatura tinha 20% entre os que ganham mais de 10 salários mínimol. Tornou-se confiável para setores empresariais a partir da aproximação com o franco-atirador do mercado financeiro Paulo Guedes que será seu super-ministro da economia e foi, posteriormente, recebendo apoio de setores do agronegócio, das finanças e do varejo (tal migração foi se reforçando na medida em que o candidato do establishment, Geraldo Alckmin, não decolava de jeito nenhum). Bolsonaro possuía, porém, uma rejeição forte (mais de 40%), sobretudo entre as mulheres, pobres, nordestinos e jovens. Eram limitações contundentes: como conseguiu superá-las?

O atentado contra ele no dia 6 de setembro mostrou-se decisivo, por tirá-lo dos debates enquanto estava no hospital (nos dois primeiros sua performance tinha sido sofrível), vitimizando-o (justamente ele que veste o figurino do carrasco), além de lhe oferecer uma exposição inédita (e “positiva”) na televisão em horário nobre e provocar uma maior coesão do campo ultraconservador. Ao se recuperar, recusou-se a participar dos debates do segundo turno e, dessa forma, puderam as polêmicas eleitorais permanecer no campo da batalha moral e daí conseguiu eleger-se um candidato cujas propostas radicalizam as ações (de austeridade, privatização e repressão) do governo Temer, que é extremamente impopular (chegou a 3% de opiniões favoráveis). O desemprego (que atinge 13 milhões de brasileiros) não foi tema da campanha.

A arrancada de Bolsonaro, se dá, nas últimas semanas e, sobretudo, nos últimos dias antes do primeiro turno. Após a facada, ele apresenta ligeiro e constante crescimento nas pesquisas. Na sexta dia 28 de setembro (nove dias antes da votação), Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da TV Record (a segunda mais importante) declara apoio (o pastor Silas Malafaia e outros já tinham embarcado antes). No sábado, dia 29, a maior manifestação feminista da história do país (e dessas eleições) grita #elenão.

A mídia cobre com extrema parcimônia – poucas fotos e imagens são veiculadas num tratamento oposto às das manifestações contra Dilma que contaram, muitas vezes, com longas coberturas ao vivo. No entanto, a máquina de mentiras dos apoiadores de Bolsonaro vai agir disparando em massa fotos de outras manifestações (com mulheres sem camisa) e performances fortes (usando crucifixos) que haviam ocorrido em outros contextos e momentos. Na segunda-feira, dia 1 de outubro, portanto seis dias antes da votação, o juiz Sergio Moro participa diretamente da eleição ao divulgar a delação premiada do ex-ministro de Lula e Dilma, Antonio Palocci.

Depois de confirmada a impossibilidade da candidatura Lula, Fernando Haddad assume a candidatura do Partido dos Trabalhadores (PT) no dia 11 de setembro. Sua subida nas pesquisas é muito veloz e é possível que isso tenha também desencadeado nos eleitores mais conservadores um ímpeto de voto útil, como atesta a desidratação dos votos de Alckmin (que já estavam baixos para o padrão tucano nas disputas anteriores) e de Marina Silva (que termina com menos de 1%). Tal aumento rápido pode ter também mobilizado e ativado uma das principais correntes da eleição: o antipetismo.

A disputa entre Bolsonaro e Haddad era também um duelo de rejeições, que vai ser vencido pelo primeiro – nessa reta final antes do primeiro turno, a rejeição de um e outro se invertem: a do capitão desce para abaixo da barreira dos 40% enquanto a do professor a ultrapassa. Bolsonaro dispara e quase vence no primeiro turno (46% dos votos válidos). Nos dias que antecederam a votação, ele havia conseguido conquistar, enfim, o voto mais popular (e se não fossem as mulheres pobres e nordestinos, teria liquidado a eleição no dia 7 de outubro). A virada da eleição se deu aí. Sem Lula na disputa, Bolsonaro acabou conseguindo baixar sua rejeição e conquistar uma parte importante dos votos do andar de baixo. Como isso aconteceu? Por conta da rejeição ao PT? Do apoio de alguns poderosos pastores evangélicos? Seria resultado da rede sórdida de fakenews? Calcula-se que mais de seis milhões de brasileiros decidiram seu voto no dia da eleição.

Talvez a imagem síntese da campanha petista seja o desabafo do mítico rapper Mano Brown no comício no Rio de Janeiro quatro dias antes da eleição, ao colocar que PT iria perder pois havia perdido o contato com a quebrada. E foi realmente essa faixa, que melhorou de vida no período Lula, que selou a vitória de Bolsonaro. Curiosamente, parte do PT, sobretudo durante o governo Dilma, chamava esse setor ascendente de classe média. Obviamente não era, mas foi sem dúvida um erro político e conceitual terrível. A campanha de Haddad não atacou a candidatura Bolsonaro até a quinta-feira antes da votação (a partir da crença que seria fácil vencê-lo no segundo turno?) configurando outro equívoco grave.

Depois, os tentos de advertir a população sobre os riscos da vitória do candidato autoritário não reverberaram. Por que? O PT gastara a carta do medo na eleição anterior – a reeleição de Dilma trabalhou o temor da volta dos tucanos neoliberais e as incertezas de Marina Silva e tomou posteriormente o rumo oposto, quebrando o acordo eleitoral elementar. Isso custou caro ao PT e ao Brasil. Sua advertência dos perigos pouco repercutiu e Haddad tampouco conseguiu formar, no segundo turno, uma frente democrática: o terceiro mais votado, Ciro Gomes, preferiu descansar na Europa e os democratas de centro-direita mostraram que são de número extremamente reduzido.

Ocorreu uma “normalização” do Bolsonaro (inclusive ao compará-lo a Trump); pra uns seria uma disputa entre dois extremos e para outros trata-se de aguardar a próxima eleição. Ironia: o jornal Folha de São Paulo recusou-se a carimbar o candidato como de extrema-direita e agora é atacado violentamente por ele (por revelar o zapgate, escândalo do envio em massa de whatsapp com financiamento empresarial não declarado e, logo, irregular).

 

O que Bolsonaro expressa

três vertentes do voto Bolsonaro

Primeiro, Bolsonaro conseguiu se constituir como o canal político dos protestos pelo impeachment de Dilma. Como dito acima, os tucanos não reconheceram a derrota de outubro de 2014, pediram recontagem dos votos e entraram com ação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Paralelamente a isso, protestos foram convocados no fim do ano, reunindo em São Paulo alguns milhares (número já expressivo). No início de 2015, a partir de março, tais manifestações vão juntar  dezenas e centenas de milhares e até milhões no Brasil todo, galvanizadas pelos erros do segundo governo Dilma (as medidas de austeridade que criaram uma perda de apoio social, entrada numa dinâmica recessiva e posteriormente levaram à perda da base parlamentar).

Um trio tucano (Aécio, Aloysio Nunes e Alckmin) se aventurou num desses protestos e foi repelido. Já naquele momento quase todos os políticos eram rechaçados nessas manifestações – os Bolsonaro no Rio e em São Paulo, Ronaldo Caiado (então senador, agora eleito governador de Goiás) e João Doria (novo governador de São Paulo) eram dos poucos aceitos pelos presentes, de adoradores de Mises aos fanáticos da intervenção militar, passando pelos revoltados contra a corrupção.

É importante reparar sobre a composição dessas manifestações: participaram delas pessoas mais ricas, brancas e velhas que nas de Junho de 2013. Isso não as impediu de expressar um rechaço muito mais amplo ao Governo Dilma e ao PT e que se tornou majoritário naquele momento em quase todas as camadas da população. Tais protestos contra a corrupção são parte uma tradição na política brasileira, o udenismo, que já havia se ativado, por exemplo, contra Getúlio Vargas em 1954 e João Goulart em 1964. Essa raiva anti-corrupção era, como nos demais casos, um grito contra determinados setores sociais e sua representação política. Basta ver os escândalos de Michel Temer, com assessor correndo com mala de dinheiro, ministro com apartamento repleto de notas de dinheiro, gravações comprometedoras no palácio de madrugada com empresário – nada disso mobilizou os “verde-e-amarelo”.

Tampouco há uma total novidade no anti-petismo – nas últimas décadas numa base relativamente constante o PT capitaneou um terço de apoio e outro de rechaço, ficando mais um terço a oscilar dependendo da conjuntura. O que mudou foi a virulência dessa oposição e de sua mobilização nas ruas e nas redes. Tentativas anteriores de protesto não tinham surtido efeito, por ocasião do escândalo do chamado Mensalão e após um acidente de avião.

Por qual motivo dessa vez pegou? As condições econômicas deterioradas abriram a porteira para uma maior generalização desse sentimento anti-corrupção e de total rechaço do sistema político: a causa da crise tornou-se a roubalheira – e não as opções equivocadas de política econômica e a abstinência de governar dos conservadores. Ao rechaço à corrupção, acoplaram-se discursos odiosos, de oposição à “ideologia de gênero” e a defesa da bandeira “escola sem partido” na qual Paulo Freire é declarado inimigo a ser eliminado. Num país com graves problemas na educação, o intelectual brasileiro mais traduzido no mundo torna-se o problema…

Uma segunda vertente se expressa na ativação de práticas e ideais (neo)fascistas. A cena dos deputados Rodrigo Amorim e Daniel Silveira (eleitos dias depois) junto com o candidato (também vencedor) ao governo do Rio Wilson Witzel é digna dos anos 1930 na Itália e Alemanha. O odioso assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco gerou uma comoção nacional e até hoje, mais de nove meses depois, não se sabe quem matou e mandou matar. Manifestações grandes, sobretudo no Rio e em São Paulo reuniram imediatamente dezenas de milhares de pessoas.

Numa homenagem posterior, foi fixada uma placa no centro do Rio mudando o nome de uma rua para o de Marielle. Não é que esses propagadores do ódio (e futuros deputados) não só arrancaram essa placa como a quebraram e levaram para um comício em Petrópolis, exibindo-a como um troféu?. Uma sinistra celebração da morte. Não estranha que uma das primeiras propostas de Witzel após sua eleição, junto com Flávio Bolsonaro, eleito senador, tenha sido a de abater imediatamente qualquer pessoa que estiver portando uma arma nas favelas, contrariando a Constituição que não permite pena de morte, ainda menos expeditiva.

Bolsonaro convoca um gestual do extermínio. O gesto que faz seus seguidores vibrar é o de imitar o uso de armas com as mãos. Ensina inclusive crianças a fazê-lo. É nesse contexto que o mestre de capoeira Moa do Katendê foi covardemente esfaqueado por trás por um apoiador de Bolsonaro após declarar voto em Haddad num bar em Salvador na noite do primeiro turno. E pipocam relatos de uma miríade de ataques violentos (um no qual dois homens rasgam um livro feminista que uma passageira estava lendo dentro de um ônibus no Rio). O candidato vencedor não condenou de forma contundente nenhum desses ataques.

Há também diversos testemunhos de forças policiais se posicionando a favor de Bolsonaro – e de forma agressiva. Ou seja, essa candidatura incentiva sentimentos violentos e de aniquilamento. E isso ocorre num país, que teve mais de 60 mil mortes violentas no último ano, possui um histórico recente e longo de escravidão e de genocídios não-interrompidos (etnocídio indígena) e é, também, campeão em massacre de camponeses, indígenas, jornalistas, mulheres, LGTBQ+. Gerar uma onda assim num país com esse passado e presente é gravíssimo, onde já existe uma sólida tradição de violências (calcula-se, por exemplo, que um milhão de brasileiros nas últimas seis décadas participaram de linchamentos ou tentativas de linchamento).

Quando grupos grandes iam saudar Bolsonaro nos aeroportos antes da campanha começar, era frequente ele dizer que seu cartão de visitas para o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) seria um cartucho. Expressa uma movimentação forte na sociedade brasileira (e viralizando pelas redes sociais, sobretudo o whatsapp) e essa foi a primeira base de sua vitória. Trata-se de um movimento, não no sentido de um movimento social (isto é, organizado), mas que talvez passe a buscar formas de organização no futuro próximo (como milícia, movimento social, partido?). Em 2007, num auge lulista, um filme entusiasmou – Tropa de Elite, com o personagem do capitão Nascimento e sua mano dura policial. O capitão da reserva aguça esse fio repressivo (uma continuidade desde a fundação do Brasil).

Numa de suas únicas atividades públicas de campanha no segundo turno foi visitar o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) e afirmou que um deles chegaria à presidência. Terminou gritando “caveira!” (símbolo do batalhão), ecoando a sinistra frase fascista espanhola Viva la muerte. O sucesso dos programas policiais televisivos de onde jorra sangue é outro elemento importante desse cultivo dos massacres – José Luiz Datena, um dos mais famosos apresentadores, diria em 2011 que seu programa era reacionário, mas ele não (deve ter mudado). Não por acaso, uma das primeiras entrevistas de Bolsonaro ainda no hospital vai ser com Datena e após a vitória também; talvez entrevista não seja a palavra adequada, pois parecia mais uma conversa de amigos e parceiros.

Se a primeira vertente tem elo forte com a perda de prestígio de setores médios e altos na medida em que pobres conquistaram, na última década e meia, espaços antes privilegiados/brancos (alterando um pouco – ou um tanto – a desigual correlação de forças na sociedade brasileira), essa segunda reage a uma exuberância dos corpos mais livres e libertos de negros, mulheres, pobres e LGBTQ+.

Um terceiro vetor é o voto de mudança e revolta contra as várias crises que o Brasil está enfrentando. Creio que essa foi uma chave para a derrota da democracia esse ano. Um voto racional: tivemos tucanos no governo federal, depois petistas e a crise está aguda. Não é possível votar no Lula (cujo governo havia garantido melhores condições e possibilidades de vida), daí a escolha vai para o quem não é corrupto (apesar de alguns escândalos terem vindo à tona durante a campanha, ainda que não reverberando muito).

Depois da direita e da esquerda, o antissistema. Se ele for mal, a gente tira ele como fez com a Dilma, ouvia-se frequentemente. Essa sobreposição de crises (política, econômica, social – e de caminhos mesmo do país) e a retirada de Lula da eleição permitiu esse rumo. Lula seria capaz de vencê-lo, mas outro candidato indicado por ele, não. Isso pode ser compreendido também pelo fiasco dos governos Dilma e tampouco Haddad conseguiu reeleger-se à frente da Prefeitura de São Paulo em 2016.

Batemos aqui em limites importantes dos governos petistas. Curiosamente, o PT no governo federal promoveu alguns curto-circuitos no sistema. Cumpriu seu programa e permitiu mais autonomia ao trabalho dos órgãos de investigação (Ministério Público (MP), Polícia Federal (PF), Procuradoria Geral da República (PGR)), mas adotou os meios tradicionais da política brasileira de financiamento de campanhas eleitorais e de formação de maiorias parlamentares.

Fomentou igualmente novas lutas e subjetividades graças às políticas de distribuição de renda e de abertura de oportunidades existenciais, mas não apostou pra valer nessas e, pior, o Governo Dilma cortou ou diminuiu vários desses experimentos (pontos de cultura e micropolíticas culturais, indígenas, quilombolas e de agricultura familiar ou mídia alternativa) ao optar decididamente por uma macro política econômica tradicional e apostar nos empresários (que depois a abandonaram).

Conta-se que um dirigente petista, com forte atuação na área dos direitos humanos e condenado no caso do mensalão, teria sido interpelado por um preso, após sua chegada à cadeia em novembro de 2013: você foi deputado por duas décadas, certo? O que você fez para melhorar o sistema carcerário e as condições de vida dos presos? Já pensaram o que teria acontecido se o PT tivesse levado a sério a bandeira levantada pelo Movimento Negro Unificado (MNU) nas escadarias do Teatro Municipal desde o dia 7 de julho de 1978 em São Paulo de que todo preso é preso político? Apesar das reivindicações do movimento negro, nunca se considerou urgente o problema do extermínio dos jovens. Alguns setores da esquerda apontaram propostas para enfrentar essa epidemia, mas obtiveram pouco eco.

Quem acabou falando mais das 60 mil mortes anuais nessa campanha foram os apoiadores de Bolsonaro (ainda que distorcendo sua dimensão e composição) e não os candidatos petista ou trabalhista. O Brasil de Lula embarcou também na onda de encarceramento em massa. A talvez bem-intencionada Lei de Drogas de 2006 visou diminuir a pena dos consumidores (e aumentar a dos traficantes), mas ao não especificar a quantidade de cada droga que demarcaria um do outro fez com que a decisão coubesse ao delegado e juiz num país onde o racismo estrutural segue forte. Resultado? Explosão do número de presos, colocados na escola do crime. Em algum momento teremos que fazer as comissões da verdade do período democrático.

5 esteios da vitória de Bolsonaro

Em que setores organizados se ancora essa movimentação que Bolsonaro expressa politicamente? Quais são as bases sociais, políticas e econômicas da sua candidatura e vitória?

Os militares são o principal grupo de apoio – o mais poderoso e influente. Independentemente da vitória eleitoral do capitão reformado, vimos nos últimos anos e sobretudo meses, uma presença crescente dos militares na vida política. Há relatos de que as Forças Armadas não mais aceitavam a presença de Dilma na Presidência e teriam procurado Temer em 2016. Certamente, uma da melhores iniciativas da Presidenta (a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV)) tem uma relação com isto – as intervenções do General Luiz Eduardo Rocha Paiva em programa de televisão indicam a insatisfação militar com a CNV, que teria também aproximado o capitão-deputado – antes visto com desconfiança – dos altos oficiais por conta de suas posições no Congresso a respeito das graves violações dos direitos humanos no período da ditadura militar de 1964-1985. Pode-se dizer, ademais, que parte decisiva da manutenção de Temer à frente do governo golpista deve-se aos militares, com papel importante exercido pelo general da reserva Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, cujos poderes em 15 de outubro foram ampliados. Ele, ademais, estaria envolvido no monitoramento da campanha de Haddad para favorecer Bolsonaro, de acordo com a revista Carta Capital.

Elementos indicam um apoio (a ser melhor elucidado por pesquisadores no futuro) dos militares à Lava Jato. Quando, no dia 3 de abril deste ano, o STF estava julgando o habeas corpus de Lula (que impediria sua prisão, enquanto não condenado em última instância), o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas dispara um tuíte – lido poucos minutos depois pelo apresentador do Jornal Nacional da Rede Globo ao vivo em tom especial – colocando o “repúdio à impunidade” do Exército, que estaria “atento às suas missões instituicionais”. Uma ameaça caso o STF tomasse a decisão equivocada (ou seja deixasse Lula solto, até o julgamento em última instância)? Como ele mesmo admitiu recentemente, sua ação foi “no limite”, pois “sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”. Por um voto, o STF negou o habeas corpus, Lula seria preso nos dias seguintes e estaria fora da eleição.  

A presença dos militares aumentou consideravelmente, com uma banalização progressiva desde meados dos anos 1990 das operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e indiciamentos de acordo com a vetusta Lei de Segurança Nacional. Uma militarização da vida e da política, com uma intervenção militar em curso no Rio de Janeiro (com desastrosos resultados no que toca aos direitos humanos), número crescente de escolas militares e até no STF. O novo presidente do Supremo, Dias Toffoli, repensou o que ocorreu em 1964 e disse que não teria havido nem um golpe (como o caracterizam os democratas) nem uma revolução (como certos militares e seus apoiadores a consideram chamam), mas um movimento; curioso “meio-termo”.

Junto com a revisão histórica, Toffoli chamou (de forma inédita) para sua assessoria o então número 2 do Exército (e que agora será o novo ministro da Defesa). A composição se torna ainda mais preocupante se pensarmos que o candidato vencedor não é somente um defensor da ditadura militar, mas um entusiasta de seus porões – dedicou, por exemplo, seu voto pela destituição de Dilma ao seu algoz, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (homem que levou duas crianças de 4 e 5 anos para verem sua mãe desfigurada pelos maus-tratos que ele comandava).

Na preparação da campanha, um grupo de altos oficiais se juntou à candidatura Bolsonaro, fazendo reuniões regulares e preparando um programa. A principal figura desse grupo é o futuro ministo do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. O general foi o primeiro chefe da Minustah (Missão das Nações Unidos para a Estabilização do Haiti) e seu coming out político ocorreu em abril de 2008 em encontro na FIESP (organizado junto com a Universidade de São Paulo) com vários atores (governo, empresas, pesquisadores) para discutir o fomento à indústria nacional de defesa.

Nesse evento, ele fez uma declaração sobre um tema distinto, a saber sua oposição contundente à demarcação contínua da Serra Raposa do Sol (território indígena em Roraima).  Militares estarão à frente também dos Ministérios de Minas e Energia e de Infra-estrutura, em cargos-chave do Palácio do Planalto e o vice, o general Hamilton Mourão deve ter funções de coordenação no novo governo. Os militares, assim como Bolsonaro, viveram uma virada neoliberal (frente ao anterior estatismo). Mourão sobretudo expressa isso, ao se posicionar, por exemplo, durante a campanha contra o décimo-terceiro salário ou admitir a privatização de partes das atividades (de distribuição e refino) da Petrobras.

Um segundo setor forte é o do judiciário. Aproveitaram as brechas de 2013, a aprovação da lei de delação premiada e assumiram um papel ativo e inédito, contando com apoio popular (em particular da classe média). Como resultado dessa ofensiva (que por sua vez alimentou a crise econômica, ao derrubar setores-chave do capitalismo brasileiro), a corrupção acabou se tornando, pela primeira vez, em 2017, a maior preocupação dos brasileiros (31%). Desde o início, em 1995, dessas pesquisas do Latinobarômetro é a primeira vez que isso é registrado em algum país. Bolsonaro encarnou essa sanha anticorrupção.

A ação dos procuradores e juízes pode ser lida como um “tenentismo togado”, num paralelo com o movimento de tenentes nos anos 1920 e 1930 que buscou a tomada do poder para concretizar uma agenda de moralização política, ancorada nos setores médios da sociedade. Duas diferenças: a movimentação contemporânea não é armada (embora conte com a simpatia das Forças Armadas) nem nacionalista. Antes, eram os militares positivistas, agora os homens liberais do direito. O contexto também é distinto: os primeiros se insurgindo contra um governo oligárquico, os segundos se opondo a um partido que representava um período de inclusão social significativa, com democracia.

No bojo de um sistema político ruindo desde 2013, esse setor se percebe como uma vanguarda regeneradora (e liberal) da república agindo contra a corrução, o estatismo e o patrimonialismo.  Republicanos, mas muito bem remunerados, situando-se na faixa dos brasileiros muito ricos e ocupando posições ultraprivilegiadas no setor público com benefícios significativos (mil dólares de auxílio-moradia, por exemplo) – ganham muito mais do que homólogos em países mais ricos e tiverem aumentos reiterados nos últimos anos (o último nas semanas posteriores à votação).

Se colocando como apartidário e tendo sido aprovados em concurso público e com poder reforçado após a Constituição de 1988, julgam exercer um poder técnico. Pode-se questionar essa ideologia da meritocracia numa sociedade tão desigual e com traços ainda escravocratas. Ademais, suas ações políticas foram se tornando cada vez mais explícitas e seu apogeu foi a ida anunciada de Moro para o Ministério da Justiça de Bolsonaro – o juiz declarou que seu futuro posto será técnico e não político (!).

Esse protagonismo teria sido impossível sem a chancela do STF e o apoio decidido do então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Num episódio significativo, no dia 16 de março de 2016, Moro levanta o sigilo de interceptações de conversas gravadas pela PF de Lula com Dilma e outras mais (várias ao arrepio da lei, ele irá se desculpar posteriormente após reprimenda do STF). Nos dois dias seguintes, Lula toma posse como Ministro da Casa Civil de Dilma e discursa em ato político numa Avenida Paulista abarrotada. Praticamente no mesmo instante da fala de Lula (dizendo que iria resolver as dificuldades do governo), o ministro do STF Gilmar Mendes suspende a nomeação de Lula, alegando desvio de finalidade (o ex-presidente estaria assumindo o ministério para que a eventual denúncia contra ele fosse julgada no Supremo e não em Curitiba: o STF desconfiando de si próprio?). O último cartucho de Dilma se foi – esses dias selaram o destino do seu governo, com participação decisiva de vários setores do Judiciário.

Um terceiro ponto de apoio foi de setores evangélicos. O católico Bolsonaro se aproximou destes nos últimos anos: casou em cerimônia dirigida pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, e foi batizado no Rio Jordão em Israel pelo Pastor Everaldo candidato à presidência em 2014 pelo Partido Social Cristão (PSC). Esse apoio de lideranças evangélicas (das Igrejas Universal, Renascer, Mundial do Poder de Deus) foi importante para atingir as camadas populares que tinham certa hostilidade em relação ao capitão e declaravam antes voto em Lula. É notável, em particular, a votação no Rio (68%),

Estado mais evangélico do país, no qual a votação do PT desabou e onde os quatro últimos governadores estão ou foram presos. O deputado-capitão conseguiu se conectar com instituições ricas e que possuem uma impressionante presença territorial sobretudo nas periferias, com criação de comunidade, acolhimento em contexto de penúria, necessidades e sofrimento. Além disso, construíram uma estratégia política de anos, com a compra de ferramentas de comunicação em massa (centenas de rádios e TVs – redes extensas e poderosas, compradas e alugadas). A não democratização das mídias paga aqui seu preço.

No dia 24 de outubro, entre os dois turnos, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) – que reivindica 180 deputados (de um total de 513) na próxima legislatura – declara apoio à candidatura do militar e lança o manifesto “O Brasil para os Brasileiros”. Nessas 60 páginas, são defendidos valores ditos tradicionais, articulados a uma pauta ultraliberal e uma “revolução na educação” (um virtual ministro foi vetado pela bancada por não ser contra a ideologia de gênero e a “doutrinação comunista”. Após essa intervenção foi nomeado um professor que celebra o golpe de 1964. Uma pastora foi nomeada para outro ministério, da família, mulheres e direitos humanos). Não por acaso, a primeira aparição pública do deputado-capitão após a vitória foi no templo de Malafaia, no qual começa agradecendo a Deus e termina repetindo seu slogan de campanha – Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Um quarto elemento fundamental foi o apoio de certos poderes econômicos. Vimos que os três grupos anteriores (militar, judiciário e evangélico) aderiram fortemente à pauta liberal na economia. Depois da facada, cada subida do candidato-capitão nas pesquisas tinha como resposta alta da bolsa e baixa do dólar – foram nítidos em seu apoio. A aproximação de Paulo Guedes (que estava inicialmente comprometido com a candidatura do apresentador de televisão Luciano Huck, que acabou desistindo) selou sua adesão a um programa econômico ultraliberal.

Guedes, futuro ministro da economia, defende privatizar todas as estatais e reduzir os impostos para os ricos, de acordo com sua formação na Universidade de Chicago. Após sua vitória, Bolsonaro, via transmissão por Facebook, colocou que “para destravar a economia, será preciso atender à demanda de empresários e optar pela redução de direitos trabalhistas”, indicando afinidades com tradicional pauta do patronato e que já vingou no governo golpista de Temer – quais outros direitos Bolsonaro defende retirar?

Seu discurso e propostas estão, também, fortemente conectados com o agronegócio. Esse setor aderiu no decorrer da pré-campanha. Alckmin ainda tentou segurar uma parte ao escolher a senadora ruralista gaúcha Ana Amélia como sua vice, mas sua estagnação não conteve o apoio ao capitão. Apesar do suporte dos governos petistas ao setor, os votos da região onde o agronegócio é forte passaram, crescentemente, a pender para a oposição ao PT. Se em 2002, Lula ganhou em praticamente em todo o país, em 2006 em Goiás e alguns outros estados de forte presença do setor perdeu. Isso seguiu numa crescente em 2010 e 2014 e neste ano atingiu seu auge.

Pode-se dizer que se fomentou uma subjetividade do agronegócio que joga água no moinho de posição violentas, contra povos indígenas, quilombolas e sem-terra – a boa e velha questão da terra com a qual estão envolvidos boa parte dos parlamentares e políticos. A bancada do boi encontra-se aí com a da bala e Bolsonaro, coloca em abril de 2018, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, que “a propriedade privada é privada e é sagrada e ponto final. Invadiu, (…) é chumbo”, defendendo “tipificar como terrorismo ações desses marginais”. A nova ministra da Agricultura – e única mulher –, Tereza Cristina, parece expressar o programa da ala dura do agronegócio.

Por fim, as dimensões geopolíticas da vitória autoritária – não se pode compreender o processo político dos últimos anos sem levar em conta a participação estadunidense. Em 2013, o Wikileaks revelou que tinham sido grampeados pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) os telefones do Gabinete de Dilma, de alguns ministros, do avião presidencial, das missões diplomáticas brasileiras incluindo a da ONU e… da Petrobras. Os cables do Departamento de Estado indicam o interesse estadunidense no petróleo e no pré-sal e uma série de laços particulares entre setores políticos brasileiros e a Embaixada americana – José Serra, Romero Jucá e Michel Temer (todos atores-chave do golpe que derrubou Dilma). A Lei da Partilha, aprovada em 2010 após a descoberta dos campos de petróleo do pré-sal, trilhou o sentido de um maior controle do Estado brasileiro e da Petrobras sobre essas novas reservas (sendo propriedade da União e tendo participação obrigatória da Petrobras de 50% na sua exploração), foi modificada após o golpe jurídico-parlamentar.

Esta questão possui outra vertente na atuação e cooperação internacional do Judiciário e do Ministério Público. Desde o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, assinado entre os governos brasileiro e norte-americano em outubro de 1997 (depois atualizado pelo Decreto Presidencial de Número 3810/2001), ao Seminário Internacional sobre Crimes Financeiros Ilícitos, realizado em outubro de 2009 (no qual os brasileiros teriam solicitado treinamento americano), passando pela conexão dos procuradores e juízes “com circuitos internacionais de produção da expertise anticorrupção”.

Estes se dão no contexto de uma ofensiva estadunidense a respeito desse tema, desde os anos 1970, com uma nova legislação doméstica (Foreign Corruption Practices Act), mas também acordos internacionais, no âmbito da OCDE e outros, para exportar modelos de combate à corrupção. A vara judicial de Curitiba se transformou, nas duas últimas décadas, em especialista em crimes financeiros e a formação acadêmica e qualificação profissional de muitos membros da força-tarefa do MP passou pelos EUA, em particular pela Harvard Law School. Seria possível uma reciprocidade nessas relações Brasil-EUA?

Se somarmos o financiamento a “novos grupos” conservadores, o papel de institutos ultraliberais (como o Atlas) e o apoio explícito da extrema-direita americana como o de Steve Bannon, tal conjunto se aproxima de forma contundente do que Andrew Korybko define como guerra híbrida. Talvez nesse ponto se situe mais um curto-circuito que Lula e o PT no governo criaram. O novo protagonismo brasileiro no mundo desafiou, ainda que de forma moderada, o poder americano, ao tecer novas relações com o mundo, ser membro dos BRICS, pacificador na questão nuclear iraniana, propulsor da integração regional e da cooperação com o continente africano e modelo de políticas sociais para os países do Sul. Porém, não se preparou para isso e esse “modelo brasileiro” foi atacado e não conseguiu se sustentar. Por outro lado, tampouco pode se dar um poder total a essas forças – como  no caso do whatsapp, deve haver um ambiente prévio (e em boa parte, “interno”) para “pegar”, ser efetivo.

O novo ministro das relações exteriores, o embaixador Ernesto Araújo, não só se sintoniza com esses certos ares estadunidenses, como indica um aprofundamento – seus textos e declarações indicam um alinhamento não aos Estados Unidos (a política externa brasileira sempre balança, conforme a conjuntura interna e externa entre o americanismo e o globalismo), mas à liderança de Donald Trump. Araújo vê um mundo em guerra contra os valores ocidentais (cristãos).

Os globalistas marxistas, da China e outras partes, e suas ofensivas como o aquecimento global (por isso, a vontade de deixar os Acordos de Paris). E Trump messiânico, como salvador da civilização frente ao “islamismo radical” e sobretudo de um Ocidente que se fragiliza ao negar Deus. Trump foi o primeiro chefe de Estado a ligar para o escolhido pela população e seu assessor de segurança nacional, John Bolton (conhecido por ser linha dura) veio visitá-lo a caminho de Buenos Aires para a reunião do G 20.

O Itamaraty, apesar de ser uma instituição ainda com tintas aristocráticas e um núcleo de excelência da burocracia brasileira, teria sido aparelhado por marxistas globalistas, de acordo com Araújo. Aqui, percebe-se outra mudança dos militares. Mesmo se o golpe de 1964 contou com o apoio explícito e comprovado dos EUA (Operação Brother Sam), os governos militares progressivamente se afastaram do alinhamento automático de seu primeiro período (de Castelo Branco, cuja política externa, como na perspectiva de Araújo, pregava um realinhamento ao Ocidente) nos seguintes, provocando uma série de tensões com os americanos – denúncia do acordo militar em, reconhecimento da independência de Angola, lei de informática, dentre outros.

O discurso de Bolsonaro

Num cenário mundial marcado por uma crise da representação política nos moldes habituais (que no Brasil, estoura ou se reforça em Junho de 2013), Bolsonaro conseguiu se apresentar como um homem comum (o “tiozão”) contra o sistema corrupto (exacerbando a divisão entre povo e oligarquia, num populismo de extrema-direita) – isso está muito presente no constante cenário informal, tosco (mas, no entanto, minuciosamente preparado) de suas lives nas redes sociais. Insistindo, também, que fala a verdade, citando a Bíblia (“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, João 8:32).

O deputado-capitão repete constantemente saber não ser o mais preparado para a tarefa da presidência, mas por ter sido escolhido/eleito, Deus vai capacitá-lo. Seu filho, Eduardo Bolsonaro diz que seus eleitores não precisam dos atores da Globo, pois pensam com cabeça própria. Essa onda, como em outras partes do mundo, se baseia também numa descrença total da mídia tradicional (ainda que nenhum órgão faça oposição a exemplo do New York Times com Trump), salvo alguns poucos no espectro da direita extrema.

“Nós somos a maioria, nós somos o Brasil de verdade” – assim começa o discurso via celular de Bolsonaro para os manifestantes na Avenida Paulista, sete dias antes do segundo turno. Isso se articula com a reiterada declaração de igualdade de todos os brasileiros em oposição ao que seria um divisionismo – seja a luta de classes (ou de renda, entre pobres/ricos), a questão racial (pretos/brancos),  geracional (pais/filhos), regionais (sul/nordeste) ou de gênero e orientação sexual (heteros/LGBTQ+). Trata-se de um discurso de defesa da maioria, numa compreensão um tanto bizarra pois as mulheres e os negros constituem maioria numérica no país. De acordo com essa perspectiva, o país virou refém de demandas particulares (de minorias) que querem impor seu modo de vida a todos. Contrapõe-se uma defesa da liberdade (de poder agir como bem entender em âmbito privado/doméstico) à libertinagem (quando isso se expressa no âmbito público e eventualmente em programas escolares).

Racismo, machismo e homofobia no fundo não existiriam – seriam um coitadismo e um vitimismo as reivindicações de certos grupos, por um lado, e seriam estratégias políticas (socialistas) e ataques à nação (una e indivisa), por outro. Meu partido é o Brasil, dizia a camiseta que usava Bolsonaro no dia do atentado. Brasil acima de tudo e Deus acima de todos – a dupla transcendência da tradição política em seu esplendor no slogan de campanha de Bolsonaro. Eis o candidato da colonialidade; interna (perseguição aos que fogem da norma e negação das pesadas heranças coloniais) e externa (submissão aos Estados Unidos, num curioso nacionalismo subserviente). Não por acaso, reivindica o “pacificador” Duque de Caxias, patrono do Exército, que esmagou várias revoltas dentro e os paraguaios fora.

De forma schmittiana, esse novo consenso (do que significa Brasil, nação) se cria com uma velha exclusão – dos vermelhos, dos vagabundos. Um antigo inimigo é reativado e nomeado – o comunismo, o bolivarianismo. As mobilizações contra Dilma em 2015-2016 tinham esse elemento de ódio contra um adversário a ser extirpado, combatido, aniquilado – Bolsonaro colocou isso, por exemplo, alguns dias antes de sofrer o atentado ao dizer, no Acre, que iria metralhar a petralhada enquanto simulava o uso de uma metralhadora com um tripé de câmera. Em que parte do mundo um candidato usou tal retórica de morte? E, mais grave, sem gerar uma polêmica de verdade na mídia e nos setores ditos democráticos.

Bolsonaro e seus apoiadores atuam no sentido de uma contra-revolução. Sua leitura é que teria havido, a partir da redemocratização dos anos 1980, uma revolução cultural comunista inspirada em Antonio Gramsci. Aparelhos de cultura, comunicação e educação estariam dominados pelos vermelhos. Foi o que expressou, por exemplo, o General Paiva no programa de televisão já citado.

A vitória eleitoral autoritária é resultado de uma ofensiva ideológica de anos, uma espécie de rebeldia reacionária na forma de pregação de um ultraliberalismo articulado com conservadorismo nos costumes que cresceu na forma de livros que se tornaram bestsellers, youtubers que viralizaram constantemente, programas “humorísticos” de sucesso na televisão… Essas iniciativas criaram as condições de uma onda e foram se reforçando na medida em que o sistema político ruía. Olavo de Carvalho é o principal intelectual orgânico desse processo, tendo inclusive indicado dois ministros ultraideológicos (da Educação e das Relações Exteriores). Trata-se, decididamente, de uma cruzada contra o marxismo cultural (no qual, como sempre em teses conspiracionistas, aparece um arraigado anti-semitismo – o que não é contraditório com o apoio entusiasta ao governo de Israel).

Curiosamente, quando esteve no governo, o PT sempre fugiu dos embates. Lembro da retirada imediata de qualquer programa que provocasse polêmica (como da Ancinav, no começo do governo Lula, acusado de “dirigismo” nas políticas do audiovisual ou de pautas LGBTQ+ em políticas públicas, como o kit anti-homofobia). O Mais Médicos estava pronto e só foi proposto publicamente após Junho de 2013 e suas reivindicações de melhorias na saúde. Quando o governo lançou o programa, a opinião pública estava dividida, mas logo se formou um apoio contundente ao programa que levou milhares de médicos (em boa parte, cubanos) a cantos onde os médicos brasileiros (de um extrato social determinado e formados numa sociedade ainda escravocrata) não querem ir.

Agora, no contexto do futuro governo Bolsonaro (que agride retoricamente Cuba e anuncia mudanças na remuneração dos médicos), o governo cubano chamou os médicos de volta. No Brasil quem elaborou e seguiu uma estratégia “gramsciana” e também “chavista” (de confronto) foi a extrema-direita. E com inegável sucesso, a golpes de inversões retóricas que funcionam (aversão à “ideologia” por parte dos ultraideológicos), receita autoritária clássica como retratado em 1984, de George Orwell. O PT fugiu dessas polêmicas para não perder apoio político evangélico e de eleitores conservadores – escolheu a desonra para evitar a guerra e ficou com as duas (lembrando da célebre interpelação de Churchill para Chamberlain)?

Enfim, essa conjunção de grupos (militares, ultraliberais, reaças, religiosos fundamentalistas) percebem a Constituição de 1988 como um problema: direitos demais para gente em demasia – o orçamento e os valores (de ordem e normalidade) não aguentam. Uma diferença básica hoje no Brasil entre direita e esquerda se situa na resposta à questão de saber se a Constituição cabe ou não no orçamento. Podemos fazer um paralelo com a onda global de 1968 e a clássica leitura do cientista político Samuel Huntington: a partir desses protestos, a sociedade estadunidense tornou-se ingovernável pois demandas demais (de trabalhadores, negros, mulheres, indígenas, jovens, migrantes) impactavam o orçamento e geravam inflação (criando dúvidas sobre a solvência financeira do Estado) e, ao mesmo tempo, aumentavam a atividade do governo e reduziam sua autoridade (gerando interrogações a respeito da solvência política do governo).

Havia, então, a necessidade de conter essas revoltas e a democracia e seus excessos, já que essas lutas estavam sobrecarregando o sistema político. No Brasil, as conquistas sociais e democráticas da constituinte de 1988, as políticas de distribuição e o levante de Junho de 2013 indicavam um país que estava se encontrando (como no período antes de 1964) e que necessitava ser interrompido. Fios autoritários unem os diversos grupos que apoiam Bolsonaro – percebem ao assistir as entrevistas dos principais quadros do futuro governo um autoritarismo latente nos gestos, reações e semblantes.

 

Perspectivas

O que pode ser o governo Bolsonaro

Na montagem do novo governo e em medidas já anunciadas, um traço marcante é o atabalhoamento. Existe, também, um grau de incerteza. Bolsonaro mesmo conhece boa parte dos quadros que lhe cerca há pouco mais de um ano (os ministros da Economia e da Secretaria Geral, por exemplo) e nitidamente pouco conversou (quando o fez) ou mesmo conheceu vários outros (com os das Relações Exteriores ou da Educação). A pouca experiência em governos é generalizada. Aparecem contradições básicas: por exemplo, entre a reação dos países árabes à anunciada transferência da Embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, sendo que o agronegócio, setor que apoiou (e nos estados onde é forte, a votação de Bolsonaro foi muito alta) vai ser diretamente prejudicado nas suas exportações. O mesmo no discurso em relação à China (e a visita à Taiwan na pré-campanha). Querer ser Trump na atual situação fiscal brasileira (bem distinta da norte-americana, com projeto de austeridade e sendo um país bem menos poderoso é uma estratégia bem frágil, se aproximando da ideologia no sentido clássico).

Algumas fragilidades e tensões já despontam com força. Como conseguir governabilidade no Congresso sem negociar com os partidos para aprovar reformas consideradas decisivas como a da Previdência? Como compor entre as obsessões privatizantes da equipe econômica com setores (apesar de tudo) considerados estratégicos e que logo devem ser preservados para os militares? E a contradição entre uma política ultraliberal para a Petrobras com os altos preços de gás de cozinha e combustíveis (que geraram forte mobilização dos caminhoneiros no primeiro semestre)?

O choque de confiança para agentes poderosos econômicos (internos e externos) é suficiente para ativar investimentos? E as tensões entre oficiais da reserva (em bom número no governo) e os da ativa (que querem preservar a instituição frente às incertezas desse governo)? E os desequilíbrios entre as forças armadas, com a onipresença do Exército, desproporcional em relação à Marinha e Aeronáutica? Vão conseguir se articular minimamente os vários núcleos de poder do novo governo (família Bolsonaro, setores evangélicos, militares, ultraliberais e novos parlamentares do PSL)? O fantasma de uma volta do PT caso o governo fracasse já está sendo mobilizado como argumento defensivo.  

Em seguida, penso que devemos levar a sério o violento discurso do candidato vitorioso, por conta de suas posições nas últimas três décadas, pelo que vem ocorrendo nesses tempos (a multiplicação de casos de violências políticas) e pelo o que expressou durante a campanha. Na noite do primeiro turno, declarou que pretende por um “ponto final em todos os ativismos”. Mas são sobretudo as palavras do dia 21 de outubro que causam mais preocupação com o presente e futuro da democracia. Como ele vê a oposição?

“Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. O Brasil vai viver uma “limpeza”, uma “faxina”; quem são os sujos? “Vamos varrer do mapa esses bandidos vermelhos do Brasil”. Daí ele se centra no Lula, que “vai apodrecer na cadeia” e terá em breve a companhia de um senador petista e do candidato Haddad. E os demais petistas? Vão “pra ponta da praia” (lugar de tortura).  Como agirão as polícias? “Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês!”. E os movimentos sociais? “Bandido do MST, bandido do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo! Vocês não levarão mais o terror ao campo ou à cidade”. A liberdade de imprensa? “Imprensa vendida: meus pêsames”.

Contra a chamada “ideologia de gênero”, defesa de armas para todos, repressão aberta e uma política ultraliberal: uma disciplina moral, social, econômica. O contexto é delicado, no Brasil e no mundo. A extrema-direita está presente em cinco governos europeus, Filipinas, Israel e ainda Trump nos EUA, dentre outros. O que será um governo Bolsonaro? Talvez mirando as Filipinas de Dutertre ou a Turquia de Erdogan tenhamos uma ideia mais concreta.

Corremos o sério risco de viver um macartismo, sobretudo nos setores de cultura e educação e vermos avançar um espectro turco e filipino, nas demissões em massa de funcionários públicos (médicos, professores, militares, acadêmicos, policiais) e cassação e prisão de parlamentares, por um lado, e na morte dos inimigos declarados (traficantes), por outro. Propostas de mudanças na lei anti-terrorismo surgem (buscando incluir as ocupações de prédios e terras) e o uso lei de organizações criminosas contra os movimentos sociais e militantes pode se ampliar.

Nesse âmbito, mais um tuíte do comandante do exército chama a atenção: no dia em que se completam 83 anos da chamada Intentona Comunista (tentativa de tomada do poder por parte do Partido Comunista, após a ilegalização de sua aliança político-eleitoral), Villas Bôas declara que “antecedentes, fatos e consequências serão apreciados para que não tenhamos nunca mais, irmãos contra irmãos vertendo sangue verde e amarelo em nome de uma ideologia diversionista”. Estaria certa a historiadora francesa Maud Chirio ao dizer que logo no início do novo governo, MST e MTST serão definidos como terroristas e logo em seguida o PT verá a perda de seu registro?

É bem provável que o governo Bolsonaro nos mostre uma verdade do poder – “não há poder sem repressão – a repressão é de fato a alma do poder. As formas que ele adota revelam sua mais profunda intimidade, uma intimidade que, precisamente por ser capaz de escancarar o poder, torná-lo óbvio, se mantém secreta, oculta, negada”. O poder como caça aos seus súditos/cidadãos (dos escravos em fuga, povos indígenas em rebelião, lutas operárias e camponesas, rebeliões feministas) como um fio histórico para compreender a “longa história da violência dos dominantes”. Um governo militarizado e uma possível guerra aos pobres e aos dissidentes.

O Congresso e o Judiciário se subordinarão? E os demais setores da sociedade, tais como a mídia? Num vídeo divulgado logo após o primeiro turno, o rapper Djonga declara: a mira está na sua testa, fazendo recordar a célebre advertência final de Pier Paolo Pasolini, “estamos todos em perigo”, cujo último filme Salò ou os 120 dias de Sodoma retrata com nitidez a violência e perversidade fascistas. Eis o contexto de dois eventos trágicos que ocorreram esse ano (o assassinato da vereadora Marielle Franco e a perseguição política e prisão do Lula). Embora sejam acontecimentos envolvendo gerações diferentes, causas específicas e magnitude distintas, se conectam porque o recado que o país dá para a população é o seguinte: os mal-nascidos não têm lugar na política.

O país vive uma tragédia social e ambiental (o desmatamento estourou nos últimos anos, em particular em 2018). Com o programa de austeridade, corte de gastos e privatizações, os resultados tendem a ser desastrosos (a reforma trabalhista não deu certo se pensarmos que seu objetivo era de criar empregos) e ainda temos o risco de uma nova crise econômica mundial. Apesar disso, é possível que Bolsonaro mantenha (e aumente) sua popularidade pela ação de Sergio Moro no Ministério da Justiça. Com uma piscadela às suas raízes tucanas, o novo ministro anunciou um “Plano Real” da segurança pública.

Podem-se vislumbrar operações espetaculares contra o chamado crime organizado, além da continuidade da perseguição seletiva dos políticos, articuladas com cruzadas morais. Haveria aí a possibilidade de construção de um predomínio político-eleitoral (que Duterte conseguiu nas Filipinas)? A ruptura com a Constituição de 1988 e as políticas sociais conseguirá vingar? O fiasco econômico do futuro governo pode, ademais, torná-lo ainda mais repressivo e ocasionar um fechamento ainda maior das possibilidades democráticas. O cenário é apocalíptico. O apocalipse, no entanto, mostra a violência e o mal, mas é também revelação. Saberão os velhos e novos movimentos democráticos e libertários dialogar com a população?

Resistências, resiliência, re-existência das esquerdas

Essa eleição vira uma chave. O Brasil não será mais o mesmo e isso terá igualmente reflexos regionais. Para as esquerdas, antes de tudo, trata-se de se proteger, se cuidar e também não temer (“não ter medo torna-se o elemento central para a construção de uma resistência. O fascismo se apoia no medo”). Somos resilientes, mas sair desse abismo levará tempo e exigirá novas criações políticas e solidariedade de todos os cantos do planeta. Aí se conectam Brasil e Estados Unidos, em situações históricas e atuais, diferentes e semelhantes. Se Bolsonaro mobiliza uma extrema-direita estadunidense, as forças de resistência também (as epígrafes se inserem nesse contexto) e a vitória de uma democracia de verdade dependerá dessa articulação internacional.

E o PT nesse contexto? Conseguiu eleger a maior bancada com 56 deputados federais e o maior número de governadores (quatro), inclusive a única mulher. Um feito dada às condições que varreram os outros dois maiores partidos do último período (PSDB e MDB). Parte disso manifesta uma força e capilaridade do partido, parte uma sobrevivência da tecnologia de composição de alianças do lulismo: onde o PT logrou manter as amplas alianças com os partidos tradicionais (com todas suas limitações e amarras conservadoras) foi vitorioso, isto é no Nordeste. Nas demais regiões, houve um isolamento e escassez de votos nas candidaturas majoritárias petistas (para os governos estaduais e o Senado). E o PT e setores próximos parecem não estar se preparando para a repressão anunciada. Isso talvez tenha um vínculo com a forma como foi tratado o tema no seu período à frente do governo federal.

Embora as polícias militares estejam sob controle dos governos estaduais, no bojo das manifestações contra a Copa do Mundo ou mesmo em 2013, a Força Nacional de Segurança foi oferecida para auxiliar a repressão. Essas são ações absurdas por parte de um partido de esquerda. Recordo-me de um episódio. Estava muito preocupado com a repressão antes da Copa e, estando de passagem por Brasília, solicitei uma conversa no Ministério da Justiça para entender por que o governo estava agindo daquela forma, não se opondo claramente às várias táticas repressivas estaduais que estavam se manifestando: qual não foi minha surpresa quando o alto funcionário foi ainda mais crítico do que eu em relação à atuação do ministro nesse tema — uma máquina repressiva estava se fortalecendo. O que se reforçou com a posterior aprovação da lei antiterrorismo. Não brecar essa máquina foi um tremendo erro.

A meu ver, as esquerdas só conseguirão se contrapor ao projeto fascista ao se reinventar. Tal projeto se alimenta dos nossos equívocos, do que não disputamos, ao quando reafirmamos as mesmas respostas boas e velhas respostas quando certas perguntas (e condições) mudam. O plano fascista se opõe ao petista, mas este não tem mais a força para ser o contraponto; naufragou, justamente, quando o lócus da política foi para as ruas.

Surpreendemente, a direita extrema soube, por ora, melhor navegar nessa esfera. Como construir políticas para além da tradicional representação no contexto de uma governabilidade algorítmica? E uma economia da igualdade em meio ao colapso ambiental e esgotamentos existenciais? A extrema-direita não deixa de ser uma reação frente a um estado oligárquico de direito e uma máquina produtora de desigualdades e de inseguranças existenciais (daí parte se agarra às tradicionais compreensões de família, Deus, nação). Precisamos, entre outras, de uma teologia evangélica da libertação. Para parte das esquerdas (PT, MST, CUT) será muito difícil uma renovação sob os fortes ataques que virão. A força e trajetória de Lula são épicas, mas o futuro dependerá de novas articulações.

Creio que essa reinvenção está em curso. Quais são suas bases materiais? Na contracorrente do onipresente “dividir para reinar” do poder, nas composições entre diferenças, nas transalianças, encarnadas, por exemplo, na Aliança dos Povos da Floresta nos anos 1980 unindo trabalhadores extrativistas e povos indígenas ou na Aldeia Maracanã no Rio da Copa. A base material é também um outro/novo materialismo, que incorpore a riquezas dos orixás, santos, plantas, mitos indígenas, inclusive nos processos de cura – fundamentais se percebermos a epidemia de depressão e problemas de saúde mental.

As eleições desse ano (assim como as midterm americanas) indicam, também, essas boas novas, fruto de um paciente e longo trabalho de organização na sociedade: candidaturas coletivas, puxadas por pretas e pretos, trans eleitas. Assassinaram Marielle (teria sido eleita senadora esse ano no Rio?), mas floresceu uma dezena de Marielles. Marielle-Áurea, Marielle-Andrea, Marielle-Juntas, Marielle-Érica, Marielle-Monica-Renata-Dani e muitas mais (Joenia Wapichana, que fez a sustentação oral no STF pela demarcação contínua da Serra Raposa do Sol tornou-se a primeira deputada indígena). Uma emergência, una política del cultivo.

A reação conservadora (e com traços fascistas) percebeu uma mudança funda (e em certo sentido irreversível) em curso. Todo um tecido de vidas, de formas de existir e habitar as vias, vielas, aldeias, caminhos se formou nos últimos anos. Territórios libertos, às vezes mais fugazes, outros mais duradouros – sempre importantes. Marchas, grupos, associações, festas, hortas, ocupações, ações e criações mil constituem a irrupção singular de novas subjetividades preta, LGBTQ+, trabalhadora, periférica, feminista, indígena, múltiplas que desperta medo (todos os levantes brasileiros foram seguidos de uma brutal repressão – a revolta do malês de 1835 como um dos inúmeros exemplos).

O golpe (que segue) como uma peculiar contra-revolução, desencadeada pelo temor da exuberância vital dos corpos livres, insubmissos, descolonizados, não domesticados. Daí as reações identitárias (branca, masculina, heteronormativa) que pululam e os ataques constantes às principais esferas de atuação (cultura e educação) dessas emergências.

Querem nos matar, mas eles não sabem que nossos mortos também lutam, como vimos com Marielle. Nos conta Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio, que estava se deixando morrer de tristeza pelo assassinato do filho Rogério pela Polícia Militar. Uma noite, no leito do hospital, quando estava extremamente fraca, surge seu filho e a arranca da cama e joga novamente na vida. Roda viva. Débora chegou até a pensar que estava delirando, mas ao tomar banho no dia seguinte, passou o sabonete e sentiu uma dor.

Olhou para os dois braços e viu as marcas dos dedos do filho que a levantara. Eles são o poder, nós somos as potências é o que nos dizem Débora e também Mauricio Rosencof, Eleuterio Fernández Huidobro e José Mujica. Na reestreia esse mês de Roda Viva (50 anos depois – em 68 essa peça do Teatro Oficina foi brutalmente atacada pelo sinistro Comando de Caça aos Comunistas), seu diretor, Zé Celso, nos indicou o caminho: vamos atravessar o regime, disse – isto é a “convocação material de forças” de vida.


Dezembro de 2018

*Jean Tible é professor de ciência política da Universidade de São Paulo.

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