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Entre Salas e Celas: entrevistas de Marcelo Semer em tempos de agitação judicial

Ilustração de Rafa Semer

Entre Salas e Celas de Marcelo Semer, publicado pela Autonomia Literária e que já chega à segunda edição em poucos meses, além da excelente recepção do público também tem despertado interesse da imprensa, rendendo boas entrevistas do autor. O livro, uma série de crônicas do autor, que foi juiz criminal por anos no Fórum Central da Barra Funda em São Paulo capital, não poderia ter vindo em momento mais oportuno, justamente quando o Brasil se vê atravessado por julgamentos rumorosos e polêmicos, gerando acalorados debates no seio da sociedade e entre os juristas. Impossível não se interessar por esse testemunho em primeira mão que revela a ótica de um juiz criminal e os dramas que ele enfrenta.

A seguir, entrevista que Semer concedeu à Rádio Gazeta (original aqui, o áudio segue abaixo) e, em seguida, entrevista do autor à Carta Forense (original aqui):

Bom Dia Gazeta

 

Carta Forense

O senhor tem a fama de ser um juiz liberal, de tendência abolicionista, mas lendo o seu livro, é possível verificar um equilíbrio no seu olhar sob o fato jurídico, que parece destoar da fama excessivamente liberal. Muito pelo contrário, numa parte do livro que trata sobre da mãe conivente com o estupro da filha, o senhor sinaliza a importância do castigo. De que forma devemos interpretá-lo? Como o senhor se vê como jurista?

Esse é um livro sobre emoções. Você vai encontrar as mais diversas, como, aliás, é o que se vê no correr da vida. Há raiva e indignação; há tristeza e piedade. Há argúcia, cinismo e complacência. Há dor e esperança nas crônicas criminais. Mas não há como negar que há muito mais dor do que esperança. O direito penal repara muito menos do que estilhaça. Foi justamente acompanhando as vidas que se desfaziam na minha frente –o penar do réu jamais compensou o sofrimento da vítima, mas criou outra história de dor- que me transformei no juiz que sou hoje. Eu gosto de dizer que como todos, entrei na magistratura para fazer justiça; mas foi a justiça que me fez. Qualquer um que mergulhe no sistema criminal, para além da superfície das formas e das fórmulas, não pode evitar de constatar a sua crueldade e ineficácia. A realidade me humanizou e talvez por isso possa ser visto como “liberal”. Na verdade, não acredito que o direito penal resolva os problemas que apregoa, mas não tenho dúvidas que causa os transtornos que se mostram evidentes. A superpopulação carcerária do Brasil, que continua em plena ascensão, é uma mostra irrefutável.

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Diante da resposta, qual seu posicionamento acerca do termo Direito Hiperbólico Monocular?

Vou poupar seus leitores de meias palavras: é uma estultice. Não faz sentido algum. Talvez derive de uma leitura descuidada de Ferrajoli ou uma incompreensão do que significam os princípios no campo penal. Falar de garantismo “dos dois lados” não é muito diferente do que clamar contra a “bandidolatria”. Um pouco mais elegante, com certeza, mas com o mesmo erro de partida. No sistema penal, não existe esse paralelismo que se apregoa (garantir os dois lados). Não há simetria. Todos os institutos visam igualizar uma situação profundamente desigual que é a contenda entre Estado e indivíduo. Sim, a dúvida favorece o réu. Como o empate. A defesa fala ao final. Tem recursos e ações impugnativas que a acusação não tem, como o Habeas Corpus e a revisão criminal. Sua situação jamais pode piorar quando recorre, mas o juiz pode restituir direitos mesmo sem seu reclamo. Isso tudo não é “bandidolatria” ou “garantismo monocular”. São as formas que o sistema exige para reequilibrar a situação desigual. Não há garantismo para os dois lados; o Estado não precisa se garantir. Garantismo é o conjunto de limitações ao poder punitivo que impedem que o indivíduo seja simplesmente destroçado pelo Estado. Ferrajoli não é um abolicionista, mas sabia muito bem o que e quem que devia ser garantido.

No embate acusação/defesa, cada um puxando a sardinha para o seu lado, como o senhor sugere a dinâmica ideal do magistrado na análise dos fatos?

A posição do juiz jamais pode ser a de um “combatente da criminalidade”. Se fizer isso, está fazendo o trabalho dos outros e deixando de fazer o seu. O juiz é o garante dos direitos fundamentais. Na estrutura do nosso Estado Democrático, ele é o fiador dos direitos. Se abrir mão disso, a democracia entra em colapso. Em resumo, na linha do que disse na resposta anterior: ele não pode secundar a acusação, em razão dos princípios que norteiam o sistema acusatório, mas pode, e diria mais, deve garantir à defesa um julgamento justo e execução de seus direitos, ainda que não requeridos. Mas quando analisa os fatos, tem de ter uma única visão: toda e qualquer imposição de pena deve estar prevista na lei e provada no processo. E lembrar que a única presunção que o sistema penal admite é a da inocência. Quem lê o livro descobre que muitos réus foram condenados. Não é preciso ser carrasco para aplicar a lei.

No seu livro, o senhor aponta a angústia do juiz criminal ao conceder a liberdade provisória em relação à prática de um subsequente delito por parte do réu. Pode nos falar mais sobre este sentimento?

Acho que a principal lição que meu tempo de magistratura me ensina, e talvez por isso o livro seja útil para quem está começando a sua carreira, é compreender as nossas próprias limitações. O juiz não é um super-herói; nosso poder é muito mais limitado que pode nos parecer. Influímos muito menos na vida dos nossos réus ou vítimas, ou mesmo da própria sociedade que costumamos imaginar –o que, todavia, não tira nenhum traço de nossa importância. A primeira vez que soltei um réu que cometeu um crime em seguida me senti culpado; mas depois pensei: e todos aqueles que mantemos presos, que voltam à sociedade e cometem ainda mais crimes? Todos aqueles jovens que viram soldados do crime organizado depois de penas draconianas? Será que os juízes que prendem muito, também se sentem responsáveis pelos crimes praticados quando das reincidências? A vida está fora da nossa alçada e não depende de nós. É preciso ter a humildade de reconhecer isso. Nem somos culpados pelo que os réus que soltamos fazem depois, nem resolveremos o problema da criminalidade avolumando prisões. Bom, isso as estatísticas mais recentes podem dizer melhor que eu. O hiperencarceramento está produzindo mais criminalidade e não menos e o nascimento, crescimento e expansão das facções criminosas mostra isso claramente.

Uma das frases mais instigantes do livro, que chega a ser uma máxima é “Mas há momentos em que a justiça que não tarda, falha”. Pode nos falar mais sobre este tema?

Nem sempre julgar rápido é julgar melhor. A sociedade tem pressa e o legislador desenhou um procedimento que começa e já termina. Mas nem sempre isso funciona bem –há situações nas quais é preciso refletir. Em nome do eficientismo, jamais podemos abrir mão da nossa capacidade de pensar. Nem de dar tempo para controlar as nossas próprias emoções. É o que acontece quando me sensibilizo em audiência pelo drama de Dona Vanda. Mas não vou dar spoilers…

A atuação situação nacional é fermento para um clamor ao Direito Penal de Emergência, dentre outras teorias criminológicas mais duras aos infratores. Como o senhor diagnostica esta situação?

Direito penal de emergência ou jurisprudência do pânico são reações irracionais e muitas vezes demagógicas, oportunistas ou bem-intencionadas, que acabam por tornar o sistema ainda pior. Não existe fórmula mágica e todos os vendedores de elixires são grandes impostores. Mas como costumo dizer, às vezes parece que o direito penal é o único produto que ganha prestígio quanto mais falha. O rigorismo dá errado e a solução que se apresenta é uma dose ainda maior. Enfim, estamos apagando fogo com querosene.

Dentre as correntes mais liberais do Direito Penal está a da Coculpabilidade, que defende a ideia de que os menos favorecidos são esmagadoramente mais contemplados pela persecução penal. E o mesmo autor, Zaffaroni, traz a coculpabilidade às avessas, que busca punir os criminosos do colarinho branco. O senhor não acha que operações como a “Lava Jato”, inauguram a aplicação da coculpabilidade às avessas no país?

Olha, vou me isentar de comentar situações concretas. Mas acho que colocar na mesma frase a grandiosidade de Zaffaroni e um direito penal midiático e compressivo é praticamente impossível. Não creio que estamos tratando propriamente de culpabilidade –mas de compressão processual. Seja pela prisão para a oitiva (um nome menos cínico do que a condução coercitiva) ou mesmo a prisão como forma de pressão, ou a exposição pública de intimidades e sigilos. É uma ingenuidade achar que isso é processo penal para ricos, que precisam de menos garantias porque tiveram mais oportunidades. Cada uma das supressões de direitos sufragada por estas práticas vai se espalhar como rastilho de pólvora ao processo penal de todos –e nós sabemos quem serão os que sofrerão mais. Parece exagero? Era exatamente o que propugnava as malfadadas 10 Medidas do MPF: a criação de um Código de Processo Penal da acusação. Para todos.

Mas acrescento algo que talvez responda um pouco melhor. O mais importante para um juiz é deixar a vida entrar no processo, quando bate na porta da audiência. É preciso se abrir para não encarar os dramas como conjunto de normas e as pessoas como fórmulas. A melhor forma de compreender a culpabilidade é entender o caráter humano das ações. Há vários mecanismos de ganhar sensibilidade. A literatura é reconhecidamente um dos mais eficazes. Espero poder ajudar um pouco aos que começam agora suas vidas profissionais.

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