Para Chantal Mouffe, uma brecha hegemônica se abriu com a derrocada do neoliberalismo após a crise de 2008, que abalou fatalmente a economia e as democracias ocidentais. A pergunta que fica após a leitura do livro é: quem e como vamos disputá-la?
Por Márcio Moretto Ribeiro*
O diagnóstico da Chatall Mouffe, no livro recém lançado “Por um populismo de esquerda“, vai bem na linha de autores como Wolfgang Streeck, que ela inclusive cita algumas vezes na obra. Em poucas palavras, a ideia é que o arranjo keynesiano de bem estar social que se estabeleceu nos países centrais depois da guerra começou a ser desafiado nos anos 70 com a crise do petróleo e desde os anos 80 uma nova lógica começou a se impor no mundo: o neoliberalismo.
Conforme o neoliberalismo se hegemonizou no mundo, foi ficando difícil distinguir as políticas de partidos tradicionais que antigamente se apresentavam como antagônicos. Isso provocou uma crise na democracia. (No Brasil acho que é possível compatibilizar essa tese com a do Marcos Nobre de uma política de vetos, filha da ditadura, que tende ao centro: o que ele chama de PMDBismo). O populismo é uma resposta a essa crise.
Aqui vale a pena dar uma passo atrás e tentar entender o que ela, e também seu marido, Ernesto Laclau, quando era vivo, entendem por populismo. Para eles a unidade básica da análise são demandas sociais. O populismo é a articulação de uma série de demandas não atendidas em uma cadeia de equivalência. Essa cadeia de equivalência se faz possível quando se constrói uma fronteira que separa a sociedade em dois campos antagônicos: povo e elites. Poderíamos extrapolar sua análise para dizer que a direita se aproveitou desse momento populista em vários países articulando demandas conservadores e, para isso, vendendo a ideia que o campo progressista forma uma elite.
O prognóstico da Chantall nesse livro de intervenção política é que a esquerda poderia e deveria jogar esse jogo. A articulação de demandas não atendidas seria capaz de constituir um povo que disputasse a hegemonia neoliberal. Numa mão, parece que ela vê com bons olhos a formação de novas instituições para gerir os bens comuns, mas diferente dos autores autonomistas que defendem essa linha, ela não acha que isso baste. Na outra mão, ela não defende uma ruptura radical com as instituições liberais. O ponto nevrálgico para ela é a disputa da hegemonia, que a social-democracia deixou de fazer, e que ela acredita que pode ser feita por meio de uma articulação populista.
Embora todo prognóstico tenha algo de metafísico, o que me agrada neste em específico é que ele parece ter respaldo nas experiências recentes do Jeremy Corbyn na Inglaterra, Podemos na Espanha e Bernie Sander nos EUA. Logo antes do levante da direita populista, em vários lugares do mundo tivemos ensaios populista de esquerda. Como Paolo Gerbaudo argumenta em seu livro, The Mask and The Flag, cheio de dados empíricos, os movimentos de esquerda que se espalharam pelo mundo na última década tem uma importante dimensão populista (ele argumenta que eles também têm uma importante dimensão anarquista, mas isso é outro assunto).
Um caminho promissor para entender o que pode ser feito no atual contexto político é olhar para esses movimentos que conseguiram aproveitar o momento populista e articularam demandas da esquerda e, para isso construíram outra concepção de elite — uma elite econômica formada pelo 1% mais rico do mundo — e buscar entender aonde eles acertaram e onde eles falharam.
*Márcio Moretto Ribeiro é doutor em Ciência da Computação e professor da USP. Atualmente co-coordena o Monitor do Debate Político no Meio Digital projeto que busca investigar o processo de polarização da esfera pública nas redes e nas ruas.