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Chantal Mouffe: “A melhor forma de combater o populismo de extrema-direita é com o de esquerda”

A filosofa política pós-marxista belga diz ter chegado a hora da social-democracia escolher entre aliar-se à esquerda ou à direita. A segunda, diz Mouffe, será a sua morte, a primeira a sua salvação, mas para isso precisa reformular a estratégia e se radicalizar.

Ricardo Cabral Fernandes entrevista Chantal Mouffe para o jornal português Público


Preocupada com o crescimento dos populismos de extrema-direita, Chantal Mouffe, filosofa política belga da corrente pós-marxista e uma das principais teóricas da chamada “democracia radical”, deixa um sério aviso à esquerda: ou adota uma estratégia populista ou Matteo Salvini, Marine Le Pen, Jair Bolsonaro e Donald Trump não terão adversários à altura. “Se a esquerda não perceber a importância de articular essas resistências com uma estratégia de populismo de esquerda, então é muito provável que o populismo de extrema-direita cresça mais. Sem qualquer oposição competitiva”, alerta Mouffe.

E, continua, a social-democracia tem finalmente de escolher o seu caminho: aliar-se à esquerda ou à direita, não há meio-termo. Teses que constam no seu mais recente livro, Por um Populismo de Esquerda, publicado no final do ano passado pela Autonomia Literária.

Diz que vivemos um momento populista. Como o caracterizaria?

Como consequência da crise de hegemonia do neoliberalismo. É uma série de formas de resistência contra a pós-democracia, consequência de 30 anos de hegemonia neoliberal. O momento populista é basicamente conjuntural. Estamos vendo aquilo que chamo de formas de protesto anti-establishment que não podem se expressar através dos partidos tradicionais, por eles terem aceitado a pós-política, e essa é a razão destas resistências se articularem em movimentos ou partidos que questionam o atual consenso. Fazem isso ao estabelecerem uma fronteira com base na oposição entre o povo e o establishment, uma fronteira populista, dizendo: “Não, nós vamos dar uma voz ao povo cujo direito à expressão foi retirado”.

A extrema-direita está avançando mundialmente. Deve a esquerda adotar uma estratégia populista para lhe fazer frente?

Estas resistências – e isto é realmente importante – podem ser articuladas de formas muito diferentes: populismo de extrema-direita ou de esquerda. É importante fazer uma analogia com a situação que Karl Polanyi analisou no seu livro A Grande Transformação. A conjuntura histórica dos anos 30 era diferente, mas o importante é que houve uma resistência da sociedade contra a primeira onda da globalização. Esta resistência tomou a forma regressiva do fascismo e nazismo, mas também tomou formas progressistas com a do New Deal. Polanyi diz que a sociedade norte-americana se articulou de uma forma progressista.

As resistências democráticas podem ser expressas com um vocabulário diferente e com uma delimitação de fronteiras populistas. Quando fazemos uma fronteira entre o povo e o establishment — claro que não estamos referindo ao povo como categoria sociológica ou empírica, mas como categoria construída -, o povo pode ser construído de várias maneiras. O populismo de extrema-direita constrói-se com um discurso etnonacionalista, enquanto o populismo de esquerda o faz de forma muito mais inclusiva. Esta é a diferença.

Na atual conjuntura, a melhor forma de combater o crescimento do populismo de extrema-direita é com o populismo de esquerda, com um movimento que reconheça a importância das resistências democráticas ao neoliberalismo e que as expresse de forma progressista. E que leve ao aprofundamento da democracia. O populismo de extrema-direita finge dar uma voz ao povo e o faz restringindo a democracia – o povo é construído de forma nacional, enquanto o populismo de esquerda pretende radicalizar e aprofundar a democracia. A única forma de combater o populismo de extrema-direita é articular as resistências e dar-lhes expressão através de um discurso progressista.

Você escreve no livro que nos “próximos anos o eixo central do conflito político vai ser entre populismo de direita e populismo de esquerda”. Como é que este confronto se vai desenrolar?

Não posso fazer previsões e tudo vai depender da relação de forças. É evidente que neste momento o populismo de extrema-direita tem mais força que o de esquerda. Se a esquerda não perceber a importância de articular essas resistências com uma estratégia de populismo de esquerda, então é muito provável que o populismo de extrema-direita cresça. Não haverá qualquer oposição.

Neste momento existe um perigo real. Na França, Macron está tentando manter a ordem neoliberal. Não aceita que o neoliberalismo seja desafiado e está precisamente tentando recuperar a revolução neoliberal. Diz que a verdadeira luta é entre ele e Marine Le Pen, ou ao nível europeu entre a sua linha e o populismo de direita, como de Salvini também. Se se seguir a linha de Macron, abandona-se a possibilidade de articular as resistências ao neoliberalismo de forma progressista, e esse é o principal risco hoje em dia.

Iria criar as condições para o fortalecimento do populismo de extrema-direita. Macron diz que a única alternativa para o combate é a manutenção da ordem neoliberal, o que faz com que qualquer possibilidade de um resultado progressista e de esquerda seja automaticamente eliminado. Isso é muito perigoso. Abandonar o campo da articulação das resistências é deixar o terreno ao populismo de extrema-direita.

Que papéis poderão desempenhar os socialistas nos próximos anos?

Dependerá de país para país. Se pensarmos no caso do Reino Unido, estamos vendo o Partido Trabalhista, social-democrata, adotar uma estratégia populista de esquerda. É promissor por significar a transformação de uma força política progressista numa populista de esquerda. Já na França não vejo os socialistas franceses seguirem esse caminho. Vamos ver a situação na Espanha, qual a direção que Pedro Sánchez vai caminhar em aliança com o Podemos. Claro que neste sentido o caso português é particularmente interessante.

Vimos os socialistas aliarem-se com partidos de esquerda e os portugueses são privilegiados pelos socialistas por terem avançado numa direção mais progressista. Mas não é esse o caso em muitos países europeus, onde os sociais-democratas são sociais-liberais: Itália, França e Alemanha. Não os vejo preparados para assumir uma posição mais radical, uma crítica mais ácida ao neoliberalismo. Diria que a alternativa para os sociais-democratas é: ou a pasokização, como o que aconteceu aos socialistas gregos, ou corbynização, isto é, seguir o exemplo de Corbyn e do Partido Trabalhista.

Não acredito que tenham outra alternativa, e dependerá do tipo de aliança que fizerem: se se coligam com a direita, como na Alemanha, ou se trabalham com os partidos de esquerda, como em Portugal. Para sobreviver, a social-democracia precisa ser mais radical.

A extrema-direita usa uma narrativa que lhe permite conquistar eleitorado junto da classe trabalhadora, como na França com Le Pen. Como podem os populistas de esquerda reconquistar esse eleitorado?

É importante reconhecer que o crescimento do populismo de extrema-direita se deve em grande parte ao abandono das classes populares pelos sociais-democratas. Aceitaram não haver alternativa ao neoliberalismo e depois abandonaram as exigências da classe trabalhadora.

O neoliberalismo cria uma dualidade de vencedores e perdedores da globalização, e claro que as classes populares são uma parte importante dos perdedores com a desindustrialização e deslocalização. E isso explica o porquê dos partidos sociais-democratas terem afastado a possibilidade de ter uma narrativa para as classes populares. Pensaram que as exigências das classes populares não faziam sentido por não haver alternativa. É por isso que em muitos países os sociais-democratas começaram a apostar mais na classe média e a abandonar as classes baixas.

Agora, Le Pen é a única a tentar desenvolver um discurso para essas pessoas. Vai e fala com os trabalhadores afetados pela globalização, diz-lhes que compreende as suas preocupações e que os responsáveis são os imigrantes. Tenta construir uma narrativa em que os imigrantes são a causa da degradação das condições da classe trabalhadora.

Como pode o populismo de esquerda conquistar esse eleitorado?

Uma estratégia populista de esquerda precisa falar com os trabalhadores. Se o objetivo é reconquistar as classes populares, então é preciso ter seriamente em conta as suas preocupações e oferecer outro discurso para demonstrar que o verdadeiro problema não são os imigrantes, mas empresas multinacionais e os responsáveis pela globalização neoliberal. É um combate entre narrativas.

Na França, nas últimas eleições, a França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, reconquistou algumas das pessoas que antes votaram em Le Pen. Porque os seus candidatos foram ter com essas pessoas. É preciso compreender – e não estou defendendo que se fale com todos, mas com uma parte importante – as classes populares votam em partidos populistas de extrema-direita por serem os únicos fingindo que se preocupam com elas. É importante ter isto em conta: levar as suas preocupações realmente a sério em vez de demonizá-las e acusá-las de serem fascistas.

Criticar as esquerdas sociais-democratas e marxistas por terem se focado excessivamente na classe e ignorarem outras causas, como o feminismo e o antirracismo. A esquerda foi incapaz de construir um sujeito político alargado apto a fazer frente ao neoliberalismo?

Esse é precisamente o desafio do populismo de esquerda. Há hoje uma multiplicidade de resistências à pós-democracia. Claro que parte dessas resistências vêm do povo, dos setores populares, mas também das classes médias, por uma das consequências ser a “oligarquização” das nossas sociedades – o fosso entre os muito ricos e o resto da população não para de aumentar. As classes médias estão ficando cada vez mais depauperadas e precarizadas. Esta situação tem de ser levada a sério.

As classes médias expressam exigências democráticas, entre as quais a
ambiental, que é crucial nos dias de hoje. Precisamos criar o que apelidei no livro que escrevi com Ernesto Laclau, Hegemony and Socialist Strategy, de “cadeia de equivalências”, ou seja, encontrar uma forma de articular as reivindicações para criar uma vontade coletiva. É isto que constitui o povo no populismo de esquerda.

Insisto neste ponto por haver muitas pessoas que não o compreendem; não é apenas uma referência a um sujeito político mas uma construção com várias reivindicações em que se cria uma sinergia. Por exemplo, as feministas se interessariam pelas exigências dos trabalhadores, e já o estamos vendo, como na Espanha, onde o movimento feminista é muito forte e não se dedica apenas a questões relacionadas com as mulheres. Articulam o movimento com as exigências democráticas dos trabalhadores. Isso é criar uma forma de articulação entre exigências democráticas, e é o desafio do populismo de esquerda.

Não há receitas mágicas, mas acho que o importante é mostrar que todas as reivindicações têm em comum a luta pela democracia. Não em termos eleitorais, mas dos seus valores: igualdade e soberania popular. As pessoas têm direito a votar, mas não têm voz. Isso é verdade porque quando votam não têm escolha entre verdadeiras alternativas por causa dos partidos tradicionais terem adotado o neoliberalismo. A questão é como podemos criar uma vontade coletiva para fazer ela compreender que têm um objectivo comum: a recuperação da democracia ao combater a pós-democracia. Mas também aprofundar a democracia.

No seu livro usa a expressão “radicalizar a democracia”. O que quer dizer com isso?

Refiro-me aos principais valores éticopolíticos da democracia. Quando falamos de democracia nas nossas sociedades referimos ao modelo ocidental, que é pluralista, moderno e cujos valores fundamentais são a liberdade e igualdade. Quando falo de radicalizar é o combate para aprofundar esses valores nas relações sociais. Na história da Europa, a primeira página da democracia foram os direitos civis, depois os direitos econômicos e agora estamos na terceira, com direitos sociais diferentes defendidos pelos movimentos sociais – direitos de gênero, etc.. Radicalizar a democracia é aprofundar os valores da liberdade e igualdade nas relações sociais.

Isto não significa que devamos romper com o modelo da democracia pluralista. Não é uma revolução, não é a criação de um novo regime, não é a substituição da democracia representativa pela direta.

Esta estratégia não é contra o modelo representativo, mas critica a sua forma atual por não ser suficientemente representativo. Daí achar ser muito importante estabelecer-se – a par com a democracia representativa, com parlamentos – outros instrumentos democráticos, como orçamentos participativos, ou mesmo democracia direta. O processo de radicalização da democracia também significa complementar a democracia representativa, mas não com algo que represente uma ruptura completa.

Os defensores da ordem neoliberal apresentam o populismo como uma ameaça à democracia, mas não é o caso. Os populistas de esquerda são aqueles que querem levar uma democracia a sério.

Recusa tanto o caminho da revolução como o da reforma, preferindo o de “reformismo radical” ou até mesmo o “reformismo revolucionário”. É um pouco confuso. Pode explicar?

Não vejo onde seja confuso, pois me é muito claro. Entre a esquerda temos partidos mais ou menos sociais-democratas cuja estratégia é puramente reformista. Não querem pôr em cheque o neoliberalismo, apenas geri-lo de forma mais humana. Foi o que aconteceu com Tony Blair no Reino Unido com a ideia da Terceira Via. No outro extremo, temos a esquerda revolucionária que diz ser necessária uma revolução que destrua a democracia-liberal e crie um regime totalmente diferente. Acredita que qualquer tentativa de transformação das instituições por dentro vai falhar. De fato, a estratégia do populismo de esquerda aponta outro caminho.

Quando me refiro ao termo “reformismo revolucionário” é apenas em referência a Jean Jaurès [dirigente socialista francês]. Mas pessoalmente prefiro o termo “reformismo radical”, que é uma expressão que gosto do sociólogo francês Andre Gorz, que falava de “reforma não reformista”. Uma que tinha uma direção mais radical e que ia transformar as relações de poder e estabelecer uma hegemonia diferente. Mas fazê-lo através de meios democráticos para tentar chegar ao poder e, a partir daí, alterar as relações de poder. É o que Gramsci chamava de guerra de posições; não é quebrar o regime, mas trabalhar através das instituições para mudá-lo.

Quebrar o neoliberalismo sem quebrar o capitalismo…

É exatamente isso. Não acho que faça sentido dizermos que queremos abolir o capitalismo. O capitalismo não é algo que possamos abolir como a pena de morte. Um governo chega ao poder e pode abolir a pena de morte, mas não o pode fazer com o capitalismo. A questão ideal de radicalização da democracia iria em certo ponto levar a um sistema não capitalista. No entanto, isso vai demorar tempo e uma série de lutas. As relações capitalistas são um obstáculo à democratização. Por isso é uma guerra de posições.

A sua estratégia inspira-se nos exemplos do Podemos e do Syriza, mas hoje são bem diferentes do que eram no início. O Podemos aposta cada vez mais no parlamento e está integrando um Governo do PSOE e o Syriza aplica a austeridade imposta por Bruxelas. Estes dois casos não refutam a sua estratégia?

O Syriza seguiu claramente uma estratégia de populismo de esquerda até chegar ao poder, a forma como geriram os processos para criar uma vontade coletiva. Claro que depois não foram capazes de implementar um programa anti-austeridade, mas isso porque a União Europeia (UE) os impediram. Houve um golpe financeiro em que as instituições europeias disseram não haver hipótese de levarem a cabo as promessas eleitorais. Mas as eleições serviram para se ir contra o domínio da UE.

É a pós-democracia que critica. O Syriza tentou combate-la e perdeu.

Sim, perdeu, mas não por causa da estratégia. Perdeu por causa da reação da UE e pelo fato de outras forças políticas socialistas não terem sido solidárias. Foram abandonados. A Grécia é um país muito pobre, com uma dívida muito elevada e não estavam nas melhores condições para combater Bruxelas. Seria completamente diferente se tivesse acontecido com França. Há quem diga que para se levar a cabo uma estratégia populista de esquerda é preciso abandonar a UE. Acredito ser possível combater para se reformar a UE.

E o Podemos?

Esse caso é diferente. O problema do Podemos é bem diferente. Dado momento – e é uma das razões para as lutas entre Íñigo Errejón e Pablo Iglesias – abandonou a estratégia populista de esquerda por preferir se aliar à Izquierda Unida. A estratégia foi substituída e hoje o Podemos é mais parecido com a Izquierda Unida. Quem continua a seguir a estratégia é o Errejón, que teve em Madrid resultados muito melhores que nas eleições anteriores. Não acho que a estratégia de populismo de esquerda recuse alianças com outros movimentos de esquerda.

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