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Antonio Negri: o poder constituinte na luta interclascissista dos coletes amarelos

Para filósofo marxista, a eclosão das revoltas na França e o recuo de Macron mostram como as lutas sociais se transferiram da fábrica para a sociedade e como o municipalismo está sendo resgatado para aplacar as consequências da crise de representatividade no neoliberalismo

Por Antonio Negri*, na Euronomade | Tradução Manuela Beloni

Finalmente o príncipe Macron falou. Expressou o seu horror diante a violência, somou a isso algumas palavras sobre a miséria do povo francês e sobre o sofrimento de suas famílias (palavras, como disse o meu vizinho, ao léu) e finalizou com um discurso condescendente, prometendo três ou quatro coisas que em 2019 teriam amenizado um pouco os sofrimentos: um aumento de 100 euros no salário mínimo, a desistência de taxar a “hora extra” e a suspensão do aumento previsto na infame “contribuição de solidariedade” sobre as pensões mais baixas. Mas a cereja do bolo foi o pedido encarecido feito aos patrões: dê um presente aos trabalhadores no final deste ano!

Tudo isso é, evidentemente, irrisório. Contudo, o mais grave, é o fato do soberano ter falado sem se dar conta da profundidade da fratura social, da densidade do racha territorial, do irrecuperável desgaste político e da ascensão que os “coletes amarelos” [gilets jaunes] representa. A resposta do movimento foi, obviamente, negativa, orgulhosa, desdenhosa e debochada. Sobre a violência, a resposta também foi dura: “Você não entendeu que você só foi obrigado a falar com a gente hoje por causa da nossa violência, enquanto está procurando uma solução para os problemas que nós apresentamos”.

Essa é a maior parte da questão. O que ainda podemos ler nas entrelinhas? Em primeiro lugar: Macron não concedeu quase nada, mas o pouco que foi dado é interessante. Aumentar o SMIC (salário mínimo francês) pela primeira vez, sem um pedido explícito dos sindicatos, somente a partir de uma pressão social. A base dos contratos com a mão-de-obra – Macron reconhece isso – se transferiu da fábrica para a sociedade, do salário ao poder de compra. Em segundo lugar, quase que acidentalmente, Macron admitiu aquilo que sempre negou: que o sistema representativo não é mais efetivo como sistema de mediação entre as autoridades e a sociedade, entre o Estado e os cidadãos. Sendo assim, depois dessa onda de lutas, ele concordou que a discussão deve continuar em uma série de assembleias gerais (sobre tributações, saúde, etc). E, além disso, que o papel de mediadores sociais dos prefeitos deve ser retomado. Um chamado à tradição “federalista” da República, sempre reprimida e agora, por questões de necessidade, ressuscitada.

Insistamos ainda nessa passagem. Macron deve abrir uma dimensão social. Ele compreende que fazer discursos e procurar soluções somente no terreno institucional não é mais suficiente. Mas introduz, todavia, ainda ao lado do tema do salário mínimo, a multiplicação ou crescimento de instâncias de mediação social e o recurso do municipalismo ao trabalho dos prefeitos. É claro que tudo isso é posto de uma forma confusa. É exatamente aquilo que a propaganda institucional do Estado francês, e da política tanto da esquerda quanto da direita, tem refutado desde sempre: a disposição para se abrir a questões “referendárias” ou aludindo à possibilidade de uma dissolução e renovação das câmaras.

A abertura de Macron ao salário como elemento central da abertura social não é, contudo, confusa. Ela representa um deslize essencial para compreender a situação atual. Os coletes amarelos se moveram porque sentem fome, porque querem dinheiro, porque o problema do salário – e de um salário social – é fundamental. O financista Macron rasga, assim, o Véu de Ísis: o discurso se torna o custo da mão-de-obra, o peso da propriedade (sem ceder quando a questão e o “imposto sobre grandes fortunas”) e talvez seja uma forma de dissimular a emergência do comum que ele sente que está vindo. Ou seja, a luta de classes que o interclascissismo dos coletes amarelos, por hora, representa. E que a intimidação neoliberal da União Europeia (UE) com a França, por não aumentar a sua dívida além de 3%, parece próxima do governo Macron e será revelado oficialmente em breve.

Olhemos, contudo, também para a mistura do papel representativo que, segundo Macron, é necessário para restaurar o funcionamento das instituições. Como vimos, os prefeitos são os indicados para preencher o vazio existente na mediação social. Mas, de maneira supérflua, retorna a crítica da economia política: como os prefeitos poderão se encarregar desse trabalho no momento em que as prefeituras foram privadas pela legislação neoliberal de qualquer contribuição financeira e empobrecidas pelo fim dos impostos sobre habitação? Em ambos os casos a superação da V República começa a se colocar, de uma forma ou de outra, não exatamente segundo uma linha federalista (que parece, aqui, um colete-salva-vidas em mar aberto), mas sim, como eu acredito, de uma forma autoritária. Se trata de reorganizar o povo a partir do poder. Macron quer, por assim dizer, reinventar o seu povo neste momento de profunda crise do programa neoliberal.

Vimos, ainda assim, que a resistência em questão é dura e dificilmente será superada. É muito provável que a multidão – que até aqui se expressou de forma desorganizada, mas coerente na tentativa de se reapropriar do poder constituinte – não queira se tornar, novamente, o povo de Macron. A luta está dada. Ninguém pode dizer nesse momento que esta multidão, e não povo, não queira se representar como classe. Macron desconfia, tem medo e vê tudo isso como um perigo real. A sua resposta econômica (de financista) e o seu ponto de vista social (de patrão) parecem reconhecer, de maneira realista, que este é um terreno sobre o qual o choque se desenvolverá.

Nas semanas que antecederam o 8 de dezembro, no quarto sábado de lutas, assistimos – no silêncio de Macron – o desenvolvimento de um grande aparato repressivo. A campanha contra a violência da terceira jornada de protestos (ocorrida em 1 de dezembro) – que viu uma polícia cercada e incapaz de sair da Praça Charles de Gaulle enquanto grupos dos coletes amarelos se espalharam pela metrópole – foi feroz. A indignação do poder contra a violência política dos subordinados tem sempre esses picos. Naturalmente, sem colocar o problema que todos os especialistas em movimentos (e em repressão dos movimentos sociais) na Europa colocam: como desarmar o movimento mais do que reprimi-lo.

Na França, com a boa relação que sempre ligou o governo (mais ou menos social-democrata) aos sindicatos que de alguma forma cooperavam, a polícia nunca tinha se encontrado diante do problema de ter que controlar uma atividade autônoma e de massa. Os coletes amarelos fizeram a policia enlouquecer. Agora, a tão aclamada (por macronistas e não macronistas) reorganização da polícia para o quarto dia de protestos (8 de dezembro), não parece ter realmente resolvido o problema. Ao invés de escutar e se dividir contra o movimento, a polícia buscou para o problema uma prevenção repugnante, que levou milhares de pessoas a prisão e a confrontos generalizados, dando ainda mais espaço para investidas de luta e de ódio (assim como de desprezo) diante desse uso cego da forca.

Ainda neste período de preparo que antecedeu o quarto dia de protestos, foi desenvolvida uma campanha política patética onde se buscava, da parte do governo, o resgate da representatividade entre os coletes amarelos, distinguindo os “bons” e os “moderados” dispostos a lidar com os “bandidos”… ou seja, com a grande maioria do movimento, a multidão. Assistimos depois a provocações particularmente mesquinhas (e infelizmente eficazes) como a denúncia, da direita fascista, do Pacto de Marrakesh: “Sobre a imigração” dizia a fake news, “Macron vende a França para a ONU permitindo assim que a França seja invadida pelos países africanos”.

Houve então, da parte de Macron, a supressão do imposto sobre o combustível, aquele de onde tudo havia saído: essa supressão apenas despertou a rejeição irônica, violenta e espetacular dos coletes amarelos.

Há de se notar durante todo esse período – o que foi uma coisa extremamente importante – a retomada das lutas estudantis e a primeira manifestação de mulheres NUDM. A frente dos protestos contra Macron está, portanto, se multiplicando e se estratificando, constituindo novos focos de luta. E aqui a repressão também é muito forte.

Por hora, é importante ressaltar que a reflexão crítica dos coletes amarelos sobre o tema econômico e sobre a retomada do governo, e a multiplicação das iniciativas de movimentação que parte das mulheres e dos estudantes começam a constituir não um pólo, mas uma fissura do ponto de vista da esquerda em relação a esta situação caótica. Devido a fraqueza, ainda, dessas forças em um quadro mais complexo, é difícil pensar que elas podem construir rapidamente uma pólo atraente. Mas, além de tudo, alguma coisa existe.

É provável, porém, que esta primeira aglomeração de um pólo à esquerda conduza à aceleração de um processo de formação política da parte dos coletes amarelos. Algo parecido com o formato do 5 Stelle italiano. A situação é confusa, mas é claro que, se um impulso a esquerda fosse dado, o poder abriria suas portas para a organização de um pólo populista que proporia um caminho soberano para a solução da crise atual. Mas isso numa próxima vez.

*Antonio Negri é o principal ideólogos do autonomismo e um dos mais importantes filósofos marxistas da atualidade. Seus livros podem encontrados em nosso catálogo.

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