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Varoufakis: Em Defesa do Manifesto Comunista!

Neste Primeiro de Maio e às vésperas do aniversário de 200 anos de Marx, Yanis Varoufakis, em recente introdução ao Manifesto Comunista, defende o texto não só por sua visão profética, mas pelo chamado à luta em tempos pré-apocalípticos. 

Por Yanis Varoufakis (tradução de Daniel Corral e Hugo Albuquerque)*

Para que um Manifesto tenha êxito, ele tem de falar aos nossos corações tal qual um poema, enquanto infecta a mente com imagens e idéias que são fascinantemente novas. Ele precisa abrir nossos olhos para as verdadeiras causas das desconcertantes, perturbadoras e empolgantes mudanças que ocorrem ao nosso redor, expondo as possibilidades que a nossa realidade atual pode vir a dar a luz. Ele deve nos fazer sentir desesperadamente deslocados por não termos podido reconhecer, por nós mesmos, tais verdades, e ele tem ainda que levantar o véu da inquietante constatação de que estivemos agindo como cúmplices insignificantes, ao reproduzir um passado sem saídas. Por fim, ele precisa ter o poder de uma sinfonia de Beethoven, instando a nos tornar agentes de um futuro que acabe com o desnecessário sofrimento em massa e, assim, inspire a humanidade a realizar seu potencial de liberdade autêntica.

E os Fracos Sofrem o que Devem? Mais recente obra de Varoufakis publicada no Brasil

Nenhum manifesto teve mais êxito em fazer tudo isso do que aquele publicado em fevereiro de 1848, no número 46 da rua Liverpool, em Londres. Encomendado por revolucionários ingleses, O Manifesto Comunista (ou o Manifesto do Partido Comunista, como fora inicialmente publicado) é da autoria de dois jovens alemães – Karl Marx, um filósofo de vinte e nove anos com um gosto pelo hedonismo epicurista e pela racionalidade hegeliana, e Friedrich Engels, um herdeiro de vinte e oito anos de uma fábrica em Manchester.

Como obra de literatura política, o Manifesto permanece insuperável. Suas linhas mais infames, incluindo a de abertura (Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo), têm uma qualidade shakespeariana. Assim como Hamlet confrontado pelo fantasma de seu pai assassinado, o leitor é compelido a se perguntar: “Devo me conformar à ordem vigente, sofrendo as pedradas e flechadas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja? da Fortuna concedida a mim pelas forças irresistíveis da História? Ou devo me unir a essas forças, me insurgindo contra o status quo e, em luta, inaugurar um admirável mundo novo?

Para os leitores de primeira hora de Marx e Engels, esse não era um dilema acadêmico, debatido nos salões da Europa. O Manifesto deles era um chamado à ação; atender à invocação desse espectro significava, com frequência, sofrer perseguição ou, em alguns casos, encarceramento prolongado. Hoje, um dilema semelhante confronta os jovens: conformar-se a uma ordem estabelecida que está desmoronando, e que é incapaz de reproduzir a si mesma, ou  antagonizá-la, a um custo pessoal considerável, em busca de novas formas de trabalhar, se divertir e conviver? Ainda  que os partidos comunistas tenham desaparecido quase por completo da cena política, o espírito do comunismo que move o Manifesto se mostra difícil de silenciar.

Enxergar para além do horizonte é a ambição de qualquer manifesto, mas lograr como lograram Marx e Engels em descrever com precisão uma era que chegaria um século e meio mais tarde, bem como analisar as contradições e escolhas que enfrentamos hoje, é realmente espantoso. No final da década de 1840, o capitalismo estava naufragando, isolado, fragmentado e tímido. E, no entanto, Marx e Engels deram uma boa olhada nele e anteviram nosso capitalismo globalizado, financeirizado, blindado, e todo cantarolante. Foi essa a criatura que surgiu depois de 1991, no exato momento em que o establishment proclamava a morte do marxismo e o fim da história.

É certo que há muito se vem exagerando sobre o fracasso preditivo do Manifesto Comunista. Lembro-me de como até mesmo os economistas de esquerda, no início dos anos 1970, contestaram a previsão central do Manifesto, segundo a qual o Capital “se imiscuiria  em toda parte, se instalaria em toda parte, criaria relações em toda parte”. Baseando-se na triste realidade daqueles que eram então chamados de países do terceiro mundo, eles argumentavam que o capital havia “perdido o gás” muito antes de se expandir para além de suas “metrópoles” na Europa, América e Japão.

Empiricamente, eles estavam certos: empresas multinacionais europeias, estadunidenses e japonesas operando nas “periferias” da África, Ásia e América Latina estavam se limitando ao papel de extratores coloniais de recursos e fracassando em difundir o capitalismo por lá. Ao invés de imbuir nesses países o desenvolvimento capitalista (impelindo  “todas as nações, mesmo as mais bárbaras para a torrente da civilização”), eles argumentavam que o capital estrangeiro estava reproduzindo o desenvolvimento do subdesenvolvimento no terceiro mundo. Era como se o Manifesto tivesse depositado confiança demais na capacidade do capital de se espalhar em cada canto e recanto. A maioria dos economistas, incluindo os simpatizantes de Marx, duvidavam da previsão contida no Manifesto de que “a exploração do mercado mundial” tornaria “cosmopolita a produção e o consumo de todos os países”.

Como se viu, o Manifesto estava certo, ainda que tardiamente. Ainda seriam necessários o colapso da União Soviética e a inserção de dois bilhões de trabalhadores chineses e indianos no mercado de trabalho capitalista para que fosse feita justiça à sua previsão. De fato, para que o capital se globalizasse plenamente, os regimes que juraram lealdade ao Manifesto tiveram primeiro de ser estilhaçados. Já nos deu a História ironia mais deliciosa?

Qualquer um que leia o Manifesto hoje ficará surpreso ao descobrir o retrato de um mundo muito parecido com o nosso, cambaleando temerosamente nos limites da inovação tecnológica. No tempo do Manifesto, era a locomotiva a vapor que representava o maior desafio aos ritmos e rotinas da vida feudal. O campesinato foi arrastado para dentro das engrenagens e polias desse maquinário e uma nova classe de senhores, os donos das fábricas e os comerciantes, usurpou da aristocracia rural o controle sobre a sociedade. Agora, é a inteligência artificial e a automação que emergem como ameaças disruptivas, prometendo dissolver “todas as relações imutáveis e esclerosadas”. “Revolucionar permanentemente… os instrumentos de produção”, proclama o Manifesto, transforma “o conjunto das relações sociais”, trazendo “O revolucionamento permanente da produção, o abalo contínuo de todas as categorias sociais, a insegurança e a agitação sempiternas”.

Para Marx e Engels, no entanto, essa ruptura deve ser celebrada. Ela age como um catalisador do último empurrãozinho de que precisa a humanidade para acabar de vez com nossos preconceitos remanescentes, que sustentam o grande fosso entre aqueles que possuem as máquinas e aqueles que as projetam, operam e com elas trabalham. “Tudo o que era estável e sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado”, escrevem eles no manifesto sobre o efeito da tecnologia, “e os homens são obrigados a encarar com olhos desiludidos, seu lugar no mundo e suas relações recíprocas”. Ao pulverizar impiedosamente nossas ideias pré-concebidas e falsas certezas, as transformações tecnológicas estão nos forçando, aos gritos e pontapés, a encarar o quão patéticas são nossas relações uns com os outros.

Hoje, vemos esse acerto de contas em milhões de palavras, impressas e online, usadas para debater os descontentamentos da globalização. Enquanto celebram a forma com que a globalização deslocou bilhões de pessoas da pobreza extrema à pobreza relativa, veneráveis ​​jornais ocidentais, personalidades de Hollywood, empresários do Vale do Silício, bispos e até investidores multibilionários, todos lamentam algumas de suas ramificações menos desejáveis: desigualdade insuportável, ganância descarada, mudanças climáticas e sequestro de nossas democracias parlamentares por banqueiros e pelos ultra-ricos.

Nada disso deveria surpreender um leitor do Manifesto. “Cada vez mais,”, argumenta, “a sociedade divide-se em dois grandes blocos inimigos, em duas grandes classes que se enfrentam diretamente”. Conforme a produção é mecanizada, e a margem de lucro dos donos das máquinas torna-se a força motriz da nossa civilização, a sociedade divide-se entre acionistas que não trabalham e trabalhadores assalariados que nada possuem. Quanto à classe média, ela é o dinossauro na sala, marcada para a extinção.

Ao mesmo tempo, os ultra-ricos sentem-se culpados e se estressam ​​enquanto assistem a vida de todos os demais afundar na precariedade da insegura escravidão assalariada. Marx e Engels previram que essa minoria supremamente poderosa acabaria por se mostrar “incapaz de dominar” sociedades tão polarizadas, pois não teriam condições de assegurar aos seus escravos uma existência segura. Entrincheirada em seus condomínios fechados, ela se vê consumida pela ansiedade e incapaz de desfrutar de suas riquezas. Parte dessa minoria, inteligente o suficiente para perceber seu verdadeiro interesse próprio de longo prazo, reconhece o estado de bem-estar social como a melhor apólice de seguro disponível. Mas, infelizmente, nos explica o Manifesto, enquanto classe social, será da sua natureza economizar no prêmio de seguro, e ela trabalhará incansavelmente para evitar ter de pagar os impostos necessários.

Não foi isso que aconteceu? Os ultra-ricos são uma panelinha insegura, permanentemente insatisfeita, que entra e sai constantemente de clínicas de desintoxicação, e que busca incansavelmente o consolo de paranormais, psiquiatras e gurus do empreendedorismo. Enquanto isso, todos os demais batalham para colocar comida na mesa, pagar as mensalidades, fazer malabarismos com seus cartões de crédito ou lutar contra a depressão. Agimos como se nossas vidas fossem sem preocupações, alegando gostar do que fazemos e fazer o que gostamos, quando na realidade, choramos baixinho antes de dormir.

Os filantropos, políticos do establishment e os acadêmicos da área econômica, todos respondem da mesma maneira a essa difícil situação: emitindo ácidas condenações dos sintomas (desigualdade de renda) enquanto ignoram suas causas (a exploração resultante dos desiguais direitos de propriedade sobre máquinas, terras, recursos). Alguém se admira que estejamos num impasse, chafurdando em um desespero que só serve aos populistas que procuram cortejar os piores instintos das massas?

Com o rápido surgimento de tecnologia avançada, nos aproximamos do momento no qual teremos de decidir como nos relacionar uns com os outros de maneira racional e civilizada. Não podemos mais nos esconder por trás da inevitabilidade do trabalho e das normas sociais opressivas de que ele necessita. O Manifesto dá ao seu leitor do século 21º  uma oportunidade de ver através dessa bagunça e reconhecer o que precisa ser feito para que a maioria possa escapar do descontentamento rumo a novos arranjos sociais nos quais “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mesmo que ele não contenha um roteiro de como chegar lá, o Manifesto continua sendo uma fonte de esperança que não deve ser descartada.

Se o Manifesto mantém o mesmo poder de nos estimular, entusiasmar e envergonhar que ele possuía em 1848, é porque a luta entre as classes sociais é tão antiga quanto o próprio tempo. Marx e Engels resumiram isso em 15 palavras audaciosas: “A história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”.

Das aristocracias feudais aos impérios industrializados, o motor da história sempre foi o conflito entre constantes tecnologias revolucionárias e convenções de classes vigentes. A cada disrupção na tecnologia da sociedade, o conflito entre nós muda de forma. Velhas classes se extinguem e, por fim, apenas duas permanecem de pé: a classe que tudo possui e a classe que não possui nada – a burguesia e o proletariado.

Esta é a difícil  situação em que nos encontramos hoje. Embora devamos ao capitalismo por ter reduzido todas as distinções de classes ao abismo entre proprietários e não-proprietários, Marx e Engels querem nos fazer perceber que o capitalismo não é suficientemente desenvolvido para sobreviver às tecnologias que ele gera. É nosso dever romper com a antiga noção de meios de produção privados e forçar uma metamorfose, que deve incluir a propriedade social do maquinário, da terra e dos recursos. Atualmente, quando novas tecnologias são introduzidas em sociedades vinculadas pelo primitivo contrato de trabalho, o que se segue é miséria por atacado. Nas palavras inesquecíveis do Manifesto: “a sociedade burguesa moderna que gerou, como por encanto, meios de produção e de troca tão poderosos assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue dominar as potências demoníacas que evocara”.

O feiticeiro sempre pensará que os seus aplicativos, motores de busca, robôs e sementes geneticamente modificadas trarão riqueza e felicidade à todos. Mas, uma vez soltas em sociedades rachadas entre trabalhadores assalariados e proprietários, essas maravilhas tecnológicas empurrarão os salários e os preços a níveis que geram lucros baixos para a maioria das empresas. São somente as gigantes da tecnologia, a grande indústria farmacêutica e as poucas empresas que detêm um poder político e econômico excepcionalmente grande sobre nós que realmente se beneficiam disso. Se continuarmos a assinar contratos de trabalho entre empregador e empregado, os direitos de propriedade privada irão governar e irão conduzir o capital para fins desumanos. Somente com a abolição da propriedade privada dos instrumentos de produção em massa e através da sua substituição por um novo tipo de propriedade comum que trabalhe em sincronia com as novas tecnologias, diminuiremos a desigualdade e encontraremos a felicidade coletiva.

De acordo com a teoria da história em 15 palavras de Marx e Engels, o atual impasse entre trabalhador e proprietário foi sempre garantido. “Igualmente inelutáveis”, declara o Manifesto, são a “queda (da burguesia) e a vitória do proletariado”. Até agora, a história não realizou essa previsão, mas os críticos se esquecem que o Manifesto, como qualquer instrumento de propaganda digno desse nome, apresenta a esperança na forma de certeza. Assim como o Lorde Nelson motivou suas tropas antes da Batalha de Trafalgar anunciando que a Inglaterra “esperava” que eles cumprissem o seu dever (mesmo que ele tivesse sérias dúvidas de que o fariam), o Manifesto concede ao proletariado a expectativa de que cumprirá o seu dever para consigo mesmo, inspirando os proletários a se unirem e se libertarem uns aos outros das amarras da escravidão assalariada.Eles o  farão? Na forma atual, parece improvável.

Por outro lado, tivemos que esperar que a globalização aparecesse na década de 1990, antes que a avaliação do Manifesto sobre o potencial do capital pudesse ser plenamente justificada. Não seria possível que o novo proletariado mundial, cada vez mais precário, precisasse de mais tempo para poder desempenhar o papel histórico que o Manifesto antecipou? Enquanto o júri delibera, Marx e Engels nos dizem que, se temermos a retórica da revolução, ou tentarmos nos distrair do nosso dever uns para com os outros, nos encontraremos presos em uma espiral vertiginosa na qual o capital satura e descolore o espírito humano. A única coisa de que podemos ter certeza, segundo o Manifesto, é que, a menos que o capital seja socializado, estamos nos encaminhando rumo a acontecimentos distópicos.

Sobre o tema da distopia, o leitor cético se animará: o que do Manifesto sugeriria cumplicidade na legitimação de regimes autoritários e fortalecimento do espírito dos guardas dos gulags? Em vez de responder defensivamente, apontando que ninguém culpa Adam Smith pelos excessos de Wall Street, ou o Novo Testamento pela Inquisição Espanhola, podemos especular como os autores do Manifesto poderiam ter respondido a essa acusação. Acredito que, com o benefício da retrospectiva, Marx e Engels confessariam um erro importante em sua análise: reflexividade insuficiente. Isto é para dizer que eles falharam em dar pensamento suficiente, e mantiveram um silêncio criterioso, sobre o impacto que sua própria análise teria sobre o mundo que eles estavam analisando.

O Manifesto contou uma história poderosa em linguagem intransigente, destinada a tirar os leitores da apatia. O que Marx e Engels não previram foi que textos poderosos e prescritivos têm a tendência de obter discípulos, crentes — até mesmo um sacerdócio — e que esses fiéis podem usar o poder conferido a eles pelo Manifesto em proveito próprio. Com isso, eles podem abusar de outros camaradas, construir sua própria base de poder, ganhar posições de influência, acampar com estudantes impressionáveis, assumir o controle do Politburo e prender qualquer um que resista a eles.

Da mesma forma, Marx e Engels não conseguiram estimar o impacto de suas escritas sobre o próprio capitalismo. Na medida em que o Manifesto ajudasse a desenhar a União Soviética, seus satélites do leste europeu, a Cuba de Castro, a Iugoslávia de Tito e vários governos social-democratas no Ocidente, esses acontecimentos não causariam uma reação em cadeia que frustraria as previsões e análises do Manifesto? Depois da revolução russa e depois da Segunda Guerra Mundial, o medo do comunismo forçou regimes capitalistas a adotarem sistemas de aposentadoria e pensões, serviços nacionais de saúde e até mesmo a ideia de fazer os ricos pagarem aos estudantes pobres e pequeno-burgueses para frequentar universidades liberais. Enquanto isso, hostilidade raivosa à União Soviética provocou paranoia e, assim, criou um clima de medo que se mostrou particularmente fértil para figuras como Joseph Stalin e Pol Pot.

Acredito que Marx e Engels teriam lamentado não antecipar o impacto do Manifesto nos partidos comunistas que ele previa. Eles estariam chutando a si mesmos que ignoravam o tipo de dialética que gostavam de analisar: como os estados operários se tornariam cada vez mais totalitários em sua resposta à agressão capitalista do Estado e como, em sua reação ao medo do comunismo, esses estados capitalistas cresceriam cada vez mais civilizado.

Abençoados, é claro, são os autores cujos erros resultam do poder de suas palavras. Ainda mais abençoados são aqueles cujos erros são autocorrigidos. Em nossos dias atuais, os estados operários inspirados pelo Manifesto quase desapareceram, e os partidos comunistas debandaram ou desorganizaram-se. Libertado da competição com regimes inspirados pelo Manifesto, o capitalismo globalizado está se comportando como se estivesse determinado a criar um mundo mais bem explicado pelo Manifesto.

O que torna o Manifesto verdadeiramente inspirador hoje é sua recomendação para nós no aqui e agora, em um mundo onde nossas vidas estão sendo constantemente moldadas pelo que Marx descreveu em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos anteriores como “uma energia universal que quebra todos os limites e todos os vínculos e se posiciona como a única política, a única universalidade, o único limite e o único vínculo ”. De motoristas e ministros de finanças da Uber a executivos do setor bancário e aos miseráveis e pobres, todos nós podemos ser desculpados por nos sentirmos sobrecarregados por essa “energia”.

O alcance do capitalismo é tão difundido que às vezes parece impossível imaginar um mundo sem ele. É apenas um pequeno passo de sentimentos de impotência para ser vítima da afirmação de que não há alternativa. Mas, surpreendentemente (afirma o Manifesto), é precisamente quando estamos prestes a sucumbir a essa ideia que abundam as alternativas.

O que não precisamos neste momento são sermões sobre a injustiça de tudo, denúncias de desigualdade crescente ou vigílias para a nossa desaparecida soberania democrática. Nem deveríamos aguentar atos desesperados de escapismo regressivo: o grito de retornar a algum estado pré-moderno, pré-tecnológico, onde podemos nos apegar ao seio do nacionalismo. O que o Manifesto promove em momentos de dúvida e submissão é uma avaliação clara e objetiva do capitalismo e seus males, vistos através da luz fria e dura da racionalidade.

O Manifesto argumenta que o problema com o capitalismo não é que ele produz muita tecnologia, ou que é injusto. O problema do capitalismo é que é irracional. O sucesso do Capital em espalhar seu alcance via acumulação por acumulação está fazendo com que trabalhadores humanos trabalhem como máquinas por uma ninharia, enquanto os robôs são programados para produzir coisas que os trabalhadores não podem mais pagar e os robôs não precisam.

O capital falha em fazer uso racional das máquinas brilhantes que ele engendra, condenando gerações inteiras à privação, a um ambiente decrépito, ao subemprego e ao lazer real zero da busca do emprego e da sobrevivência em geral. Até mesmo os capitalistas são transformados em autômatos angustiados. Vivem em permanente temor de que, a menos que mercantilizem seus semelhantes, deixarão de ser capitalistas — se unindo às fileiras desoladas do proletariado-precariado em expansão.

Se o capitalismo parece injusto, é porque escraviza a todos, ricos e pobres, desperdiçando recursos humanos e naturais. A mesma “linha de produção” que produz uma riqueza incalculável produz profunda infelicidade e descontentamento em escala industrial. Então, a nossa primeira tarefa — de acordo com o Manifesto — é reconhecer a tendência dessa “energia” que tudo conquista se enfraquecer.

Quando perguntado por jornalistas que ou qual é a maior ameaça ao capitalismo hoje, eu desafio suas expectativas respondendo: o capital! É claro que essa é uma ideia que venho plagiando há décadas no Manifesto. Dado que não é possível nem desejável anular a “energia” do capitalismo, o truque é ajudar a acelerar o desenvolvimento do capital (para que ele queime como um meteoro correndo pela atmosfera) enquanto, por outro lado, resistir (através do racional, ação coletiva) a tendência do dito-cujo para tratorar nosso espírito humano. Em resumo, a recomendação do Manifesto é que levemos o capital a seus limites enquanto limitamos suas consequências e nos preparamos para sua socialização.

Precisamos de mais robôs, melhores painéis solares, comunicação instantânea e sofisticadas redes de transporte verde sofisticadas. Mas igualmente, precisamos nos organizar politicamente para defender os fracos, capacitar muitos e preparar o terreno para reverter os absurdos do capitalismo. Em termos práticos, isso significa tratar a ideia de que não há alternativa com o desprezo que merece, rejeitando todos os apelos por um “retorno” a uma existência menos modernizada. Não havia nada ético sobre a vida sob as formas anteriores do capitalismo. Programas de TV que investem maciçamente em nostalgia calculada, como Downton Abbey, devem nos deixar felizes de viver quando o fazemos. Ao mesmo tempo, eles também podem nos encorajar a soar o acelerador da mudança.

O Manifesto é um daqueles textos emotivos que falam a cada um de nós de forma diferente em diferentes momentos, refletindo nossas próprias circunstâncias. Alguns anos atrás, eu me considerava um marxista libertário errático e era muito menosprezado por não-marxistas e marxistas. Logo depois, me encontrei investido em uma posição política de certa proeminência, durante um período de intenso conflito entre o então governo grego e alguns dos agentes mais poderosos do capitalismo. Reler o Manifesto com o propósito de escrever esta introdução foi um pouco como convidar os fantasmas de Marx e Engels a gritarem, uma mistura de censura e apoio, bem no meu ouvido.

Adults in the Room (N. de T. — próximo livro de Varoufakis que será publicado, em alguns meses, pela Autonomia Literária), minhas memórias do tempo em que eu servi como ministro das Finanças da Grécia em 2015, conta a história de como a Primavera Grega foi esmagada por uma combinação de força bruta (por parte dos credores da Grécia) e uma frente dividida dentro do meu próprio governo — da forma mais honesta e precisa que eu poderia fazer. Visto da perspectiva do Manifesto, no entanto, os verdadeiros agentes históricos estavam confinados a meras aparições ou ao papel de vítimas quase passivas. “Onde está o proletariado em sua história?” Eu quase posso ouvir Marx e Engels gritando para mim agora. “Eles não deveriam ser os que enfrentam o capitalismo mais poderoso, com você os apoiando dos bastidores?”

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Felizmente, reler o Manifesto também ofereceu algum consolo, endossando minha visão dele como um texto liberal — até mesmo libertário. Onde o Manifesto critica as virtudes liberais burguesas, o faz por causa de sua dedicação e até amor por elas. Liberdade, felicidade, autonomia, individualidade, espiritualidade, desenvolvimento autoguiado são ideais que Marx e Engels valorizam acima de tudo. Se eles estão zangados com a burguesia, é porque a burguesia procura negar à maioria qualquer oportunidade de ser livre. Dada a aderência de Marx e Engels à ideia fantástica de Hegel de que ninguém é livre enquanto uma pessoa estiver acorrentada, sua briga com a burguesia é que ela sacrifica a liberdade e a individualidade de todos no altar de acumulação do capitalismo.

Embora Marx e Engels não fossem anarquistas, eles detestavam o Estado e seu potencial de ser manipulado por uma classe para reprimir a outra. Na melhor das hipóteses, eles viam isso como um mal necessário par viver num bom e pós-capitalista porvir, coordenando uma sociedade sem classes. Se esta leitura do Manifesto faz sentido, a única maneira de ser comunista é ser libertário. Atender ao apelo do Manifesto para “Unir-vos!” é, de fato, incoerente com se tornar um stalinista com síndrome de dono da bola — ou em tentar refazer o mundo à imagem de regimes comunistas agora extintos.

Quando tudo é dito e feito, então, qual é a pedra de toque do Manifesto? E por que alguém, especialmente o jovem de hoje, deveria se preocupar com história, política e afins?

Marx e Engels basearam seu Manifesto em uma resposta tocantemente simples: a autêntica felicidade humana e a liberdade genuína que deve acompanhá-la. Para eles, estas são as únicas coisas que realmente importam. Seu Manifesto não se baseia em invocações germânicas estritas do dever, ou apela para responsabilidades históricas para nos inspirar a agir. Não moraliza nem aponta seu dedo. Marx e Engels tentaram superar as fixações da filosofia moral alemã, e também das causas do lucro capitalista, com um apelo racional, embora apaixonado, aos próprios fundamentos de nossa natureza humana compartilhada.

A chave para a análise deles é o abismo sempre crescente entre aqueles que produzem e aqueles que possuem os instrumentos de produção. O nexo problemático do capital e do trabalho assalariado nos impede de desfrutar do nosso trabalho e dos nossos artefatos, e transforma patrões e trabalhadores, ricos e pobres, em peões trêmulos que estão sendo feitos marchar, rumo a uma existência sem sentido, por forças além de nosso controle.

Mas por que precisamos de política para lidar com isso? A política não é estupidificante, especialmente a política socialista, aquela que Oscar Wilde uma vez afirmou que “rouba demasiados entardeceres”? A resposta de Marx e Engels é: porque não podemos acabar com essa idiotice individualmente; porque nenhum mercado pode emergir sem que se produza um antídoto para essa estupidez. A ação política coletiva e democrática é nossa única chance da liberdade e do prazer. E para isso, as longas noites parecem um pequeno preço a pagar.

A humanidade pode conseguir arranjos sociais que permitam “o livre desenvolvimento de cada um” como a “condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas, novamente, podemos acabar na “ruína comum” da guerra nuclear, do desastre ambiental ou do descontentamento agonizante. No nosso momento atual, não há garantias. Podemos nos voltar para o Manifesto em busca de inspiração, sabedoria e energia, mas, ao final, o que prevalece depende de nós.

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