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Os EUA de Trump: todos os demônios do presidente

A Síria e o mundo voltam a pegar fogo enquanto as atenções se concentram no bufão e tragicômico Trump, mas Patrick Cockburn alerta que há personagens muito mais perigosos do que ele em Washington

Por Patrick Cockburn, no The Independent (Tradução de Hugo Albuquerque e Manuela Beloni)

Durante o regime de Saddam Hussein, as pessoas nos cafés de Bagdá estavam sempre preocupadas em não derramar suas xícaras sobre a primeira página do jornal que encontravam abertos nas mesas. Elas tinham boas razões para esta ansiedade, pois naquela época os jornais do Iraque traziam sempre na sua capa uma foto de Saddam — e fazer qualquer coisa contra a imagem de Saddam poderia ser interpretado como uma falta de respeito, uma crítica ou até mesmo uma traição ao grande líder.

Saddam Hussein claramente se tornou uma estrela na imprensa iraquiana, mas ele mesmo estaria impressionado com o modo surpreendente como as palavras, e ações, de Donald Trump têm monopolizado as notícias. Dia após dia, dentre as quatro histórias mais lidas no New York Times e na CNN, três estão direta ou indiretamente relacionadas a Trump. E, diferentemente de Saddam, esta cobertura é proposital em grande parte dos meios de comunicação e da crítica.

Cockburn é autor da mais importante obra sobre a guerra civil na Síria e Iraque publicada no Brasil. Adquira seu exemplar em loja virtual.

Os insultos ultrajantes e as mentiras de Trump tem tido um sucesso: desde que ele declarou sua candidatura à presidência em 2015, os holofotes estiveram voltados para ele o tempo todo. Seja como for, ele é raramente pedante, diferentemente de muitos de seus rivais e oponentes derrotados, os quais acreditavam que seus defeitos e falhas o fariam naufragar.

Um dia eles podem se provar certos, mas este dia ainda vai demorar para chegar: a clara aversão a Trump por parte de grande parte da mídia norte-americana é curiosamente inútil porque é repetitiva e, na verdade, nenhum grande desastre atingiu os Estados Unidos durante o seu primeiro ano na presidência. Comentaristas perceberam também que, apesar de todo o seu discurso bélico, ele não começou realmente nenhuma guerra — ao contrário de seus predecessores republicanos, retrocedendo até o presidente Ford¹.

A constante demonização de Trump traz outro perigo que é subestimado e que pode realmente produzir um desastre mundial. A mídia dos EUA o culpa por tudo e retrata respeitosamente os generais que ocupam os principais cargos de sua administração: o chefe de gabinete John Kelly, o secretário de Defesa Jim Mattis e o assessor de segurança nacional HR McMaster — como se estes fossem os únicos adultos na sala². Entretanto, pode vir à tona que estes e outras figuras como o Secretário de Estado, Rex Tillerson, e o chefe da CIA, Mike Pompeo, são mais propensos a iniciar uma guerra do que o próprio Trump.

O quão pobre é a capacidade de julgamento das pessoas que deveriam ser a força de contenção sobre Trump foi mostrado no mês passado, quando Tillerson cometeu um erro clássico, que pode ter resultados negativos para os EUA pelos próximos anos. Em 17 de janeiro, ele anunciou que as forças armadas norte-americanas permaneceriam no nordeste da Síria após a derrota do Estado Islâmico (ISIS), tanto para enfraquecer o Irã quanto o presidente Bashar al-Assad. Três dias depois, no dia 20 de janeiro, a Turquia, previsivelmente irritada com o que parecia ser uma garantia americana a um Estado curdo de fato, enviou suas forças pela fronteira da Síria para invadir o enclave curdo de Efrin³.

Tillerson tinha involuntariamente iniciado uma nova fase no conflito sírio, no qual Washington está se isolando e a Turquia, Rússia, Irã e Assad estão cada vez mais próximos. Os curdos em Efrin, um dos poucos lugares da Síria que não foi devastado pela guerra, têm tido que se esconder em cavernas como consequência do resultado desta nova iniciativa norte-americana.

O isolacionismo de Trump pode ser menos arriscado do que o neo-intervencionismo de seus consultores. Os relatórios de Washington sugerem que a decisão de se envolver cada vez mais na guerra civil síria foi contrária ao que o próprio Trump queria. Pela sua vontade, ele teria preferido usar seu Discurso sobre o Estado da União para anunciar que a missão dos EUA na Síria tinha acabado em triunfo com a derrota de ISIS — e que ele estava retirando as forças terrestres dos EUA. Em vez disso, a decisão foi para o outro lado, enquanto McMaster e Mattis, apoiados por Tillerson, defenderam com êxito a manutenção de forças terrestres dos EUA na Síria e no Iraque

Esses altos funcionários apenas defendiam a opinião consensual do establishment da política externa dos EUA, como foi rapidamente demonstrado pelos analistas da mídia. Mesmo quando os tanques turcos estavam entrando na Síria, um editorial no Washington Post estava aplaudindo Tillerson por ter “reconhecido, sem rodeios, a verdade que o presidente Trump e o presidente Barack Obama tentaram se esquivar”, de que os EUA precisam de uma presença política e militar na Síria.

Turcos no Curdistão (Getty Images)

Do que Trump e Obama estavam realmente se esquivando era de repetir o erro pós 11 de Setembro: os EUA buscarem empreendimentos militares de prazo indeterminado, contra múltiplos inimigos, em países fragmentados como o Afeganistão e o Iraque, nos quais não houve vitória. No caso de Obama, esse senso de cautela e habilidade para ver o que pode dar errado foi cuidadosamente calculado. No caso de Trump, o cuidado é instintivo e nem sempre funcional, mas o resultado final foi o mesmo.

Apesar de toda a condenação de Trump sobre a suposta fraqueza de Obama, sua estratégia no Afeganistão, no Iraque e na Síria não diferiu muito de seu antecessor — isto é, até seus principais funcionários de segurança mudarem para uma política intervencionista na Síria no mês passado.

A política tradicional de confiar na força para superar todos os obstáculos, ou o que Obama chamou de “o script chave de Washington”, parece estar de volta aos negócios. Ele condenou, em particular, o establishment da política externa dos EUA por ter se juntado com aliados duvidosos como a Arábia Saudita e o Paquistão na busca de objetivos ambiciosos.

O poder norte-americano no mundo estava retrocedendo antes de Trump, embora a natureza divisória e volátil de sua presidência esteja acelerando o declínio. Em todos os continentes, um vácuo de poder se abriu, o que está sendo preenchido por muitos candidatos ansiosos. Eles geralmente têm os mesmos ingredientes do populismo, da demagogia, do autoritarismo e do nacionalismo em maior ou menor grau, mas certamente tornam o mundo um lugar mais perigoso porque não conhecem os limites de seu próprio poder.

De Manila a Varsóvia, temos visto o surgimento dos mini-Trumps que tendem a conhecer bem a política de seu próprio país, mas são perigosamente ignorantes no que envolve o resto do mundo. É da natureza de governantes autoritários que reprimiram a crítica nacional, como o Príncipe Herdeiro Mohammed bin Salman da Arábia Saudita, perseguir ambições extravagantes que os fazem se mover sobre uma camada de gelo que é — sempre — mais fino do que imaginam.

O poder dos EUA no mundo está em declínio, tendo alcançado seu pico entre a queda da União Soviética em 1991 e o início da guerra do Iraque em 2003. Dois perigos estão surgindo: uma é a natureza descuidada da administração Trump, a qual atua como uma espécie de bola de demolição fora de controle. Embora, felizmente, o dano feito seja limitado pela baixa capacidade de atenção de Trump e divisões em Washington.

Um segundo perigo é o establishment da política externa dos EUA que, sem ter aprendido nada de novo com as falhas do passado, gostaria de restaurar o poder que os EUA possuía sem entender que isso não pode mais ser feito. Este é “script chave de Washington”, que Obama veio a ridicularizar e ignorar, mas que é tão perigoso quanto qualquer coisa que o Trump possa fazer.

[1] De fato, o ex-presidente republicano Gerald Ford,  cujo curto mandato durou entre 09 de agosto de 1974 e 20 de janeiro de 1977, não começou nenhuma guerra, embora tenha se envolvido em várias missões de retirada de tropas e evacuação de cidadãos americanos não apenas no Sudeste Asiático, sobretudo Camboja e Vietnã, e também do Chipre, assim como apoiou a manobra de retirada de belgas e franceses e do Congo, além de uma ligeira tensão na península coreana. Ford, que assumiu o poder depois da renúncia de Richard Nixon e de seu vice Spiro Agnew, teve o menor mandato de um presidente que não morreu durante o no mandato, e era deputado à época da queda do presidente e vice, sendo nomeado pelo Congresso por força da 25ª emenda à Constituição. Depois dele, todos os outros presidentes republicanos, Reagan, Bush pai e Bush Filho iniciaram guerras ou operações ofensivas. Isso inclui, contudo, também todos os presidentes democratas que lhe sucederam como Carter, Clinton e Obama. Antes dele, houve belicismo por parte de todos os presidentes do pós-guerra em virtude da Guerra Fria e suas guerras quentes colaterais. Ford, a bem da verdade, é mais um hiato do que o último dos moicanos.

[2] Tradução literal de Adults in the Room jargão comum à política de Washington para se referir às eminências pardas que controlam um governo, mas que funcionam justamente como os adultos na supervisão de um líder infantil.

[3] Embora em inglês o nome dessa cidade-enclave curda seja comumente grafada como Afrin, em português o mais correto, até por razões fonéticas, é Efrin.

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