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“Existe um desejo entre os palestinos de ir às escolas, mesmo que tudo esteja destruído”, relata jornalista de Gaza

Em entrevista ao Extra Classe, o jornalista palestino Mohammed Omer relata como é o dia a dia da população na Faixa de Gaza desde os bombardeios de 2014, que ele testemunhou e registrou em livro. E critica a opressão imposta aos palestinos pelo Estado de Israel: “apenas nos deem paz. Isso é pedir muito?”, indaga.

Extra Classe – O senhor afirma que a eleição de Barack Obama para a presidência dos EUA em 2012 representou para muitas pessoas em Gaza a esperança de paz e justiça, depois frustrada. Como vê a era Trump?

Mohammed Omer – Como eterno otimista sempre espero e rezo por mudanças e efeitos positivos por aqueles que trabalham duro para ter uma vida melhor e garantir o futuro das próximas gerações. Acredito que a maioria das pessoas é boa na essência, e quero acreditar que alguém com poder as defenderá quando estiverem subjugadas pela miséria e dor. O presidente Obama representou uma face de esperança e mudança para muitos. Uma mensagem de união e boas-vindas para a humanidade. Não estou certo de que o presidente Trump possa unir as pessoas positivamente. Mas, ele está no palco agora, o mundo está assistindo, então vamos ver!

A narrativa do terror na faixa de gaza

EC – Como explicar para o Ocidente a influência norte-americana na região e o seu apoio incondicional a Israel nas suas políticas de massacre ao povo palestino em Gaza?

Omer – A atual influência dos EUA na região remonta o período pré e pós II Guerra Mundial e os planos para colonizar e dividir a Palestina e criar o Estado de Israel. Existem muitos livros escritos por autores renomados sobre a história moderna da criação de Israel às custas da contínua destruição e eliminação de uma Palestina plural e multicultural. Como palestino, sinto grande tristeza e descrença em outra tentativa flagrante de apagar pessoas e culturas. É um anátema (contradição) para minha crença pessoal na tolerância, unidade, paz e verdadeira democracia. Mas, sigo firme no meu otimismo e esperança.

EC – O que representa ter seu livro editado no Brasil?

Omer – Estou satisfeito e orgulhoso de publicar meu livro no Brasil. Espero que o povo brasileiro ouça as vozes do povo palestino, enquanto lutam por sua antiga pátria, identidade e uma vida mais tranquila, com espaço para respirar e chance de desenvolvimento.

EC – Por que o senhor, ao contrário dos demais correspondentes de guerra, optou por permanecer em Gaza durante os bombardeios de 2014?

Omer – Eu sou palestino e, embora assustado – assim como minha família, vizinhos e amigos – não poderia deixá-los sozinhos. Essa foi a minha escolha. E, profissionalmente, senti que era meu dever estar em Gaza para testemunhar em primeira mão o que Israel estava fazendo e relatar os fatos na origem – apesar de estar aterrorizado.

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EC – No livro Em estado de choque – sobrevivendo em Gaza sob ataque israelense (Ed. Autonomia Literária, 2017), o senhor relata o dia a dia dos bombardeios israelenses. O que testemunhou nesses “dias de terror”? Como cidadão palestino, como se sentiu?

Omer – Como eu disse anteriormente, acho difícil acreditar que as tentativas flagrantes e consistentes de eliminar milhões de pessoas de suas terras sejam sancionadas e permitidas. Quando alguém acredita em democracia, liberdade e tolerância, como eu, é difícil compreender como Israel pode infligir tanto sofrimento e dor aos seus vizinhos. Como um povo que sofreu tanto ainda inflige dor a outros? Como pode?

EC – Como foi o período pós-ataques e como vive o povo palestino em Gaza atualmente?

Omer – O período de pós-ataque foi um estado de choque coletivo, quando a vida foi posta em espera novamente. Meus conhecidos e amigos se dedicavam a buscar entes queridos, limpar, colocar as coisas no lugar, reconstruir um pouco de vida e sanidade dentro de uma situação insana em que não podiam se defender contra um poder desproporcional. Em Gaza, as pessoas são unidas no sofrimento e na dor, e mantêm firme sua dignidade, identidade e memórias. Gaza ainda está ocupada por Israel nos céus, nas fronteiras e no mar. Gaza foi relegada a um enclave, um gueto bloqueado para comprimir a esperança das pessoas e a economia, para lentamente fazê-las partir. O fato de o povo palestino persistir na sua terra e manter-se firme na sua tradição, apesar da dor, é, de fato, um testemunho de coragem e orgulho.

 EC – A narrativa se utiliza de entrevistas com pessoas locais. Você teve contato com alguma delas nos anos seguintes à operação Margem Protetora?

Omer – Meu trabalho sempre foi denunciar as vozes das pessoas, vizinhos e amigos para que seus pedidos de ajuda não sejam ignorados. Tento acompanhar os entrevistados e o curso de suas vidas. Conheço e converso com pessoas locais sempre que posso. E eles sabem que podem entrar em contato comigo a qualquer momento. Mas eu também respeito que depois de uma grande dor as pessoas querem estar sozinhas, em paz, pensar, sofrer e silenciosamente seguir a vida.

EC – Como o povo palestino lida com o trauma e o estresse causado pela violência, que atingem especialmente as crianças, conforme relata no livro o médico Ahmed Abu Tawahinah?

Omer – É difícil para quem está fora de uma zona de guerra ou área bloqueada densamente povoada entender como pessoas presas, constantemente vigiadas e esquecidas lidam com as brutalidades, punições e assédio. A capacidade humana para sobreviver a esse trauma sempre me surpreende. Especialmente crianças que, na sua inocência, não têm ódio e só desejam encontrar a felicidade, a normalidade e a simplicidade novamente. Expressar sua tristeza e experiência é vital para lidar com tudo isso. Meu coração fica partido diante de crianças que crescem em meio a tanta dor e trauma, em que a desordem de stress pós-traumático e todos os sintomas que a definem são considerados normais. O coração de uma criança é tão frágil, mas sua capacidade de perdoar é enorme. Ninguém, adulto ou criança, deve ser forçado a uma “norma” de guerra, violência e stress pós-traumático como um sintoma diário. Punição econômica coletiva e sistemática e tortura metódica são inaceitáveis. “Faça aos outros o que gostaria que eles fizessem a você”, certo?

EC – Como é a educação das crianças em Gaza?

Omer – Gaza se esforça para tentar manter uma alta qualidade de educação e alfabetização, apesar das circunstâncias de bloqueio impostas. As crianças e os jovens ainda valorizam, assim como os pais e avós, o desempenho acadêmico como uma porta de entrada para o sucesso, segurança econômica, opções e escolhas mais amplas na vida, como a maioria das pessoas no mundo. Mas, quando as escolas e faculdades de Gaza são bombardeadas, os materiais escolares não podem ser levados e os cortes de energia significam estudar à luz de velas, lápis e pedaços de papel. Você pode imaginar o quão frustrante é isso para estudantes ambiciosos e inteligentes que só querem prosperar? A educação é um direito universal. Pessoalmente, sou orgulhoso dos estudantes de Gaza por lutarem contra as adversidades.

EC – As escolas estão funcionando?

Omer – Sim, as escolas estão funcionando – a esperança de Gaza é com sua geração jovem. A qualidade da educação é excelente, a maioria das escolas é administrada pela Agência de Socorro e Obras das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina (UNRWA). Existe um desejo imutável entre os palestinos de ir às escolas, não importa como, mesmo que uma casa seja bombardeada. Eu já vi crianças procurando por mochilas nas ruínas de suas casas para ir à escola. É a resiliência.

EC – O senhor afirma que Gaza poderia ser o vizinho perfeito para Israel. Por quê?

Omer – Essa é uma grande questão. Realmente acredito que Israel e Palestina poderiam ser os vizinhos perfeitos. A Palestina, sob o mandato antigo ou moderno, era multicultural e pluralista. Todos os credos viviam lado a lado, até mesmo casamentos entre as religiões aconteciam, e as famílias compartilhavam as antigas terras, culturas, benefícios e lucros. Tudo isso está documentado e comprovado. Se um acordo razoável pudesse ser alcançado para dividir justamente a terra e as fronteiras para beneficiar a todos, mutuamente, sem divisão religiosa, acredito que a Palestina poderia ser uma bandeira regional de tolerância, democracia e prosperidade para todos. O Oriente Próximo, a África do Norte e o Oriente Médio seriam, mais uma vez, uma rota comercial rica e uma atração turística histórica, aderente à paz e unidade, não à guerra e divisão. As culturas do judaísmo, cristianismo e islamismo, nesta terra, têm uma riqueza profunda em comum. Isso deve ser unido como um orgulho multinacional e investido no futuro comum. Palestina e Israel podem ser mais fortes juntas, em paz, com respeito e dignidade. Devemos estar acima do ódio e da dor presentes, e ver um horizonte pacífico mais amplo, onde o sol brilha sobre todos nós. Pode me chamar de sonhador, mas acho que é um realismo possível, com comprometimento otimista.

EC – O que desejam os palestinos da Faixa de Gaza?

Omer – Como palestino de Gaza sei que as pessoas querem viver suas vidas livremente, em paz e com dignidade, acordar sem medo, assim como ditam os direitos humanos universais. Os palestinos em Gaza só querem ser livres de vigilância de drones, conflitos armados, paredes, cercas, postos de controle, torres de vigia, bombardeios e constantes intimidações, opressões e repressão. Os palestinos desejam poder respirar, rir, continuar suas vidas, desenvolver sua economia, pescar, cozinhar, acender as luzes, ter água para lavar roupa, dar as boas-vindas aos seus vizinhos globalmente e não ter que ver Israel coberta de bombas, helicópteros e aviões de combate. A Palestina não deve ser punida pelos medos de Israel. Apenas nos deem paz. Isso é pedir muito?

*Tradução do inglês: Grazieli Gotardo.

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